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Fuga para duas voces
Fuga para duas voces
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E-book281 páginas3 horas

Fuga para duas voces

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Sobre este e-book

A história de Fuga para duas vozes acontece em passagens por Paris e São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, estabelecendo paralelos culturais e pessoais de duas personagens intrigantes e conflitivas: Dora e Teo.
A dupla narrativa, no melhor estilo de Carlos Hiran Goes de Souza, leva o leitor a interpretações diversas na medida em que avançam pelos capítulos do livro de maneira surpreendente. Essa é a história de uma separação conturbada contada sob o ponto de vista individual. Um tema de amor doentio retratado sob o ângulo dos impactos emocionais e pessoais de cada uma das personagens. Uma trama construída com relatos que distorcem os sentidos dos fatos, ao mesmo tempo que evidenciam os frequentes desequilíbrios psicológicos do casal.
Nesse livro, o autor trabalhou elementos da cultura francesa e brasileira em contrapontos que atraem a nossa atenção e curiosidade. Fuga para duas vozes perpassa aspectos culturais dos cultos indígenas, dos mistérios dos chás alucinógenos, da pajelança, de perfumes naturais, e tem na música o pano de fundo que justifica o seu título. A influência da música sobre o comportamento humano está presente por toda narrativa, enfocando a dependência psíquica conhecida por Musicofilia e os aspectos inerentes à terapia através da música - Musicoterapia.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de ago. de 2019
ISBN9788468539362
Fuga para duas voces

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    Fuga para duas voces - Carlos Hiran Goes de Souza

    Fuga

    para duas vozes

    ROMANCE

    Carlos Hiran Goes de Souza

    © Carlos Hiran Goes de Souza

    © Fuga para duas vozes

    Julho 2019

    Capa ideada por Túlio Cerquize

    Penas: Shutterstock / Tramont_Ana

    ISBN papel: 978-84-685-3933-1

    ISBN ePub: 

    Impresso em Portugal / Printed in Portugal

    Editado por Bubok Publishing S.L.

    Reservados todos os direitos. Salvo exceção prevista pela lei, não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, nem a sua incorporação a um sistema informático, nem a sua transmissão em qualquer forma ou por qualquer meio (eletrónico, mecânico, fotocopia, gravação ou outros) sem autorização prévia e por escrito dos titulares do copyright. A infração de ditos direitos implica sanções legais e pode constituir um delito contra a propriedade intelectual.

    Dirija-se a CEDRO (Centro Espanhol de Direitos Reprográficos) se precisa de fotocopiar o digitalizar algum fragmento desta obra (www.conlicencia.com; 91 702 19 70 / 93 272 04 47).

    Ao meu irmão Luis Ivan

    Bravo!

    Índice

    Prólogo EXPOSIÇÃO DO SUJEITO

    Sequência A CONTRA-EXPOSIÇÃO

    Capítulo 1 A CONTRA-RESPOSTA

    Capítulo 2 SEGUNDA RESPOSTA

    Capítulo 3 TERCEIRA RESPOSTA

    Capítulo 4 QUARTA RESPOSTA

    Capítulo 5 QUINTA RESPOSTA

    Capítulo 6 SEXTA RESPOSTA

    Capítulo 7 A SÉTIMA RESPOSTA

    Capítulo 8 OITAVA RESPOSTA

    Capítulo 9 A NONA RESPOSTA

    Capítulo 10 DÉCIMA RESPOSTA

    Capítulo 11 DÉCIMA PRIMEIRA RESPOSTA

    Capítulo 12 DÉCIMA SEGUNDA RESPOSTA

    Capítulo 13 DÉCIMA TERCEIRA SEQUÊNCIA

    Capítulo 14 DÉCIMA QUARTA SEQUÊNCIA

    Capítulo 15 DÉCIMA QUINTA SEQUÊNCIA

    Capítulo 16 DÉCIMA SEXTA SEQUÊNCIA

    Capítulo 17 DÉCIMA SÉTIMA SEQUÊNCIA

    Capítulo 18 DÉCIMA OITAVA SEQUÊNCIA

    Capítulo 19 DÉCIMA NONA SEQUÊNCIA

    Capítulo 20 VIGÉSIMA SEQUÊNCIA

    Capítulo 21 VIGÉSIMA PRIMEIRA SEQUÊNCIA

    Capítulo 22 PAUSA INSTRUMENTAL

    Capítulo 23 VIGÉSIMA TERCEIRA SEQUÊNCIA

    Capítulo 24 VIGÉSIMA QUARTA SEQUÊNCIA

    Capítulo 25 VIGÉSIMA QUINTA SEQUÊNCIA

    Capítulo 26 VIGÉSIMA SEXTA SEQUÊNCIA

    Capítulo 27 VIGÉSIMA SÉTIMA SEQUÊNCIA

    Capítulo 28 VIGÉSIMA OITAVA SEQUÊNCIA

    Capítulo 29 VIGÉSIMA NONA SEQUÊNCIA

    Capítulo 30 TRIGÉSIMA SEQUÊNCIA

    Capítulo 31 TRIGÉSIMA PRIMEIRA SEQUÊNCIA

    Capítulo 32 TRIGÉSIMA SEGUNDA SEQUÊNCIA

    Capítulo 33 TRIGÉSIMA TERCEIRA SEQUÊNCIA

    Capítulo 34 TRIGÉSIMA QUARTA SEQUÊNCIA

    Capítulo 35 TRIGÉSIMA QUINTA SEQUÊNCIA

    Capítulo 36 TRIGÉSIMA SEXTA SEQUÊNCIA

    Capítulo 37 TRIGÉSIMA SÉTIMA SEQUÊNCIA

    NOTAS DO AUTOR

    Prólogo

    EXPOSIÇÃO DO SUJEITO

    Quando o solista tenor desacompanhado canta o início da fuga

    Ao curvar a cabeça sobre a mesa, ouvi os primeiros acordes do prelúdio do meu dramma giocoso. As taças da maison Baccarat, sonoramente, quebravam-se aos estilhaços sobre os pratos de porcelana de Sévres, e os talheres repercutiam o som metálico da prata ao tocarem no chão. Ao movimento de abertura, seguiu-se um coro polifônico em que vozes independentes entravam sucessivamente e prosseguiam de maneira entrelaçada como se fugissem umas das outras. Meus tímpanos, mesmo ensopados pelo vinho, conseguiam reconhecer uma típica cantiga dolente sendo cantada em forma de Fuga. E mesmo na iminência de perder todos os sentidos, enquanto o suor de Rá se esparramava e avermelhava a toalha branca, identifiquei os pretensos tenores, baixos e barítonos no meio daquele coro sem nenhum acompanhamento instrumental.

    - Caboclo Jauautina é caçador, Caboclo Jauautina é curador!

    O mais interessante é que, na minha súbita transposição de realidades, experimentei, simultaneamente, o que Richard Strauss sempre almejou dos admiradores da sua música: Senti cheiros, tive visões e a sonoridade me sugeriu uma variedade enorme de cores. A única diferença, naquele meu momento inusitado e inesperado, era o estilo bem mais para o popular, em nada comparável com a produção do compositor impressionista.

    Sem direito a apartes, fui trocado de lugar, num possível transtorno psíquico.

    O déjà-vu aconteceu muito rápido, e a nitidez do vagueio foi impressionante. Diria, de forma exagerada, que foi sobrenatural.

    Na reviravolta involuntária, revisitei um lugar muito querido do meu avô Julião. Uma comunidade de gente simples que vivia do rio, e onde o morenão fortão era adorado por todos. Eu estava onde vovô se fez marcar por suas fantásticas histórias de pescador, por seu vozeirão envolvente e pela viola que não largava nem para um abraço gostoso do neto.

    Pois, durante o flashback, revi aquele lugar e o seu povo bronzeado que tanto me fascinava.

    Não sei dizer o que aconteceu ao certo, mas, os mesmos caboclos do interior, que se achavam os cantores mais afinados da Amazônia estavam ali, bem perto de mim, dando a alma para harmonizar um canto coral na minha intenção. Na hora do sufoco, a turma cruzou pela minha cabeça, cantando e rezando à moda deles, querendo, porque querendo, me reanimar de qualquer jeito. Acho que foi eu tontear e tombar de nariz, e eles correram para acudir o neto do mestre cantador mais admirado da seara da Cachoeirinha.

    No campo natural, enquanto o filme antigo era projetado na minha tela mental, a síncope, que me derrubava, tinha interrompido o nosso jantar e atrapalhava todos os outros que aconteciam nas mesas ocupadas ao nosso redor.

    - Filho de Seu Jauautina não cai!

    Para mim, não tinha passado nem um minuto do tonteio, vagueio e tombo, e o pronto-socorro espiritual abriu passagem para os socorristas de plantão no SAMU. Pelo o que eu ainda tinha condições de ver à minha volta, três ou quatro paramédicos branquelas, educadamente afobados, pediam licença e afastavam as mesas para atender o mameluco que quase quebrou a cara de pau mal lavada pelo Château Bouscassé. Semilúcido, eu percebia todo o movimento dos caras, mas não conseguia mexer um dedo. Estava completamente entravado da cabeça dura aos meus pés gelados. Se eu me visse de fora, certamente, veria um peixe-boi abatido por um arpão e cercado de água na boca por todos os lados. Seguramente, preparavam-me para ser levado, ainda fresco, direto para o talho e dali virar mixira. Mas o histriônico chefe da equipe de urgência coordenava as ações do meu salvamento, enquanto não davam o peixão em extinção por morto. Tudo acontecia no fundo do salão do restaurante, onde o bafafá danado estava formado.

    Sem direito a apartes, fui trocado de lugar, numa possível confusão local.

    De olhos caídos, senti quando esticaram o meu pescoço e quase me engasgaram com um colar cervical. Minhas costas pareciam coladas numa tábua dura. A voz grave e alta de um dos meus salvadores, sem noção de que eu não estava surdo, conferiu os procedimentos realizados e disse que o sujeito aqui estava pronto para ser transportado.

    - Atenção! No três, por favor! Um, dois e...

    Levantaram a maca comigo colado e iniciaram o transporte num ritmo compassado, marcado pelas pisadas no assoalho de pinho de Riga. Durante o cortejo, os espíritos dos encantados mantiveram a corrente de fé cantada em tonalidades vocais diferentes. No trajeto, entre o lugar do súbito faniquito e a ambulância que me aguardava na Avenida de La Bourdonnais, abri os olhos e enchi os pulmões para fazer uma pergunta.

    - Será que eu saio dessa, maninha?

    O vulto mignon de Dorinha flutuava, cheiroso, como sempre, ao meu lado.

    Esperei pela resposta que ela não deu. Mas não posso avaliar se os meus ouvidos tinham sido tamponados durante o pronto socorro ou se a pirraça costumeira da minha mulher é que tinha emudecido a manhosa de vez. E pensando friamente, ainda que fosse a minha surdez momentânea ou a manha dela, do jeito que eu estava esbodegado, a diferença era nenhuma. Naquele estado de obnubilação e de fraqueza crescente, eu não tinha a menor condição de botar banca. Era evidente que eu tinha perdido o rumo do estar mal e já estava no caminho do péssimo. Tanto a desgraça não era pouca, que na passagem por entre as mesas, as bufas de catinga podre danaram a se soltar espontâneamente. Na melhor das hipóteses, eu chegava ao fim de um homem. O dia em que não se consegue, sequer, controlar o esfíncter anal. Pelas caras dos curiosos, o fedor medonho se espalhou livremente por uma longa extensão. Não havia quem estivesse, minimamente, aceitando aquela situação vexatória.

    Dorinha estava perto, mas parecia desapegada até do meu mau cheiro.

    Era notório que a dor dela estava num tom acima do menor dó que ela pudesse sentir por um cara do meu tipo naquela hora. Mas o aparente desprezo pelo o que acontecia comigo era, na verdade, um aperto na corda. Ela queria que eu me sufocasse de vez e me danasse todo até o caroço. A tinhosa não dizia nada, mas eu entendia tudo muito bem entre as suas mensagens subliminares. Dorinha, no fundo, queria que eu fosse me encontrar com o curupira na baixa da égua e que perguntasse ao capeta o que ele estava achando de tudo aquilo. A reação da baixinha parecia ser uma grande forra do cascudo que eu tinha dado nela poucos minutos atrás. E eu que aguentasse com o tranco. A revanche, das mais cruéis, passava zimpada¹ pela minha frente.

    Mas, como todo mundo sabe que quem tem pés de barro não anda na chuva, não esperei nem mais um passo do cortejo e joguei uma flor branca para o vulto mudo.

    - Maninha, olha o céu de Paris!

    Chegávamos na calçada da avenida.

    O céu ainda azul e sem nuvens ofuscou mais um pouco a minha visão. Pensei que ela iria rir se ouvisse uma firulinha no meio do salve-o quem puder, mas calculei mal. A nanica purgou e andou o mais rápido que pode, sem me dar o menor texto. E, pensando bem, quem me daria conversa naquela situação? Quem me ouvia com um barulho daqueles? Nem ela e nem ninguém.

    Foi quando eu perdi a paciência, e deu no que deu.

    Gritei que a minha cabeça estava explodindo, e nem assim o coro dissonante das vozes tropegas dos caboclos encantados se calou. Todos se lixaram, mesmo sabendo que eu não aguentava mais aquele concerto infindo.

    - Porra!

    Meti o respeito no saco e danei a berrar o que me dava na telha. Até palavrão cabeludo saiu, mas ninguém me deu a mínima. Fizeram pior. Foi eu ameaçar partir para a porrada e os branquelas d’urgence me empurraram com toda a sutileza dos ursos polares para dentro da ambulância. Os afobadinhos de plantão tamparam a minha boca e o nariz com uma máscara de plástico para abafar os gritos, e o oxigênio entrou pelas duas narinas com toda força, ardendo feito pimenta murupi, rasgando as mucosas por onde passava.

    Mais uma vez, sem direito a apartes, me transportaram para algum outro lugar.

    E foi aí que o relógio parou, eu me perdi no calendário e danei a trocar completamente as bolas.

    Quando vi, eu já estava no barco do Pequenino que tinha acabado de ficar pronto.

    O motor recauchutado pegou direitinho logo na primeira virada, e nós zarpamos do Rio Sena para o Rio Negro, sem nenhum aperreio de hora. Aquilo me deixou feliz da vida.

    O vulto de Dorinha continuava do meu lado. Ela não arredou o pé nem quando o bicho, novinho em folha, sacudiu na hora da partida.

    - Eita, ferro! Te segura em mim, maninha!

    O gelo da minha mulher continuava o mesmo de minutos atrás. Mas, por essa luz que está me iluminando, eu queria muito que o silêncio bobo da minha mimada fosse aquela pororoca ligeira que tinha nos sacudido há pouco. Até pedi a Deus que a picuinha dela não durasse muito, te juro. Daí, virei a página. Passei a acreditar, piamente, que tudo aquilo que estava acontecendo comigo era uma bilora qualquer, num rito de passagem que seria curto.

    - Esses franceses são uns exagerados, Dorinha! Não demora e eles me trazem de volta pra gente terminar o nosso vinho. Eles são bons nisso, maninha. Espera pra ver!

    Não dá para negar que eu precisava daquela baixinha. Mesmo quieta e calada. Mesmo sendo jogada de um lado para o outro. Entretanto, dali para a frente, eu também sentia que a lucidez não nos faria nada bem. A parada cardíaca do meu amor estava muito recente. Sofremos os dois e, por muito pouco, ela não entrou em coma. Tínhamos passado por um trauma que quase marca o nosso fim. Entretanto, eu mal me lembro da razão, muito menos, se o pior de tudo já era passado, ou se aquele transporte súbito me levaria a ele, no próximo episódio.

    1. Zimpada: o mesmo que rapidamente, dialeto comum na região maueês ou amazonês.

    Sequência

    A CONTRA-EXPOSIÇÃO

    Quando a voz contralto faz a exposição do sujeito em outra tonalidade

    Quem sou eu para re-escrever a história do Teo.

    De qualquer maneira, todo mundo precisa saber que ele não é bom da cabeça, e pelo o que eu sei, nunca foi. Difícil explicar, mas eu acho que o susto provocou um surto psicótico mais longo do que o esperado. Há uma grande possibilidade de o mal súbito ter sido a causa da parada do relógio dele, e ter feito com que ele se perdesse no calendário e saísse a trocar as bolas por aí. Por mais que ninguém possa negar que o cara já andava meio destrambelhado, sem eira nem beira, há alguns outonos, o desequilíbrio mental foi evidente. Por outro lado, eu queria errar, mas nada muda a minha opinião de que ele, em sua plena insanidade, simplesmente caiu das nuvens sem esperar. Digo mais, com todas as letras: o bichinho tomou foi um baita escorregão do acaso e caiu de cabeça mole na dura e cruel realidade.

    Em contrapartida, afirmar que eu não senti nada, é o mais puro juízo falso.

    Muito pelo contrário, senti e sofri bem mais do que deveria. Com sinceridade, fiquei mal e cheia de preocupação, mas sem nenhum peso na consciência. Nem era o caso, porque eu nunca desejei mal para ele. Se houver um santo do céu que diga o contrário, esse não entende nem um terço das minhas preces. Posso provar o meu carinho. Guardo, até hoje, minhas paranoias no fundo dessa minha alma perdida por um homem. Sofri aos tonéis com o desejo de que ele voltasse a ser aquele maridão engraçado. O mesmo carinha que eu conheci, cheio das ideias luminosas e mirabolantes que me entorpeceram. Não foi por acaso que eu extrapolei e gastei sono demais tentando me desapegar do que eu pressentia que seria o nosso fim.

    Fiz de tudo para não chegar no dia nefasto que quase me mata.

    Na manhã seguinte do desatino dele, foi a minha vez de cair de cara limpa no mundo real.

    Se por um lado foi péssimo, por outro, nem tanto.

    Pesei o pedaço da bosta que tinha na mão e tomei a decisão mais sensata. Desgaste por desgaste, optei por viver com um doente mental até morrer. Isso seria bem melhor do que me sentir morta, conviver com um doido por outra que, em pouco tempo, esqueceria até do meu nome.

    Capítulo 1

    A CONTRA-RESPOSTA

    O contraponto na voz do solista tenor

    Mentalmente eu me entreguei à vagabundice. Pensar passou a ser doloroso. Concatenar os pensamentos, um sofrimento desumano.

    Restava de mim um corpo preguiçoso, sem forças nem sequer para levantar uma pálpebra.

    Com a cabeça recostada, eu ouvia os papocos do motor recém-consertado e toda a zoada da água que o barco velho de guerra empurrava para os lados.

    Na penumbra da mata densa, as árvores rangiam e estalavam os galhos espantando quem passava por baixo ou quem voava por cima delas. Escurecia rápido, e eu pensei comigo que já deveriam ser umas seis horas. Tinha para mim que, se fosse mais, seria muito pouco. Ali onde o meu corpo estava esticado, o sinal da hora provável chegava diretamente da casa dos beiradeiros. Conforme o barco avançava, dava para ouvir os rádios do povo sintonizados na Ave Maria. Então, era de se calcular que estávamos dentro do tempo que eu pensava. Passávamos justo na hora que aquela gente se sentava na porta de casa para rezar, mascar fumo, pitar e conversar fiado na frente da água que nunca para de correr. Isso tudo, tomando seu café preto com tapioca na espera do pirarucu com farinha d’água ficar pronto. Por vontade própria, eu não via nada, mas era quase certo que eles também seguravam seus terços com toda fé e devoção. Seria essa a razão que muitos deles não acenavam com as mãos na medida em que nos viam passar.

    O Dona Santa ganhou força e já deslizava feito uma nau francesa no nosso Rio Negro.

    Dentro dele, éramos eu e mais quatro molongós apertados entre os cestos e outros troços, a tentar manter a pose de nobres da corte de um rei qualquer da França. Sem fru-fru, ninguém queria muito assunto porque o cansaço nos tinha guilhotinado a todos.

    Três cabas e eu íamos jogados pelo melhor canto onde coubesse um ser imprestável. O quinto, era um sonâmbulo com cara de bocó sentado na proa, guiando o leme feito um piloto automático meio escangalhado, mas ainda dando para o gasto.

    A cada metro que ganhávamos na volta para Manaus, as aves e os macacos se agitavam cada vez mais, e aí mesmo é que as árvores danavam a estalar os galhos numa reação natural a toda aquela algazarra. Espertos e atentos ao nosso movimento, os capitães-da-mata, os tanguruparás, os inhambus, xexéus e outros pássaros subiam os tons dos seus piados para nos denunciar aos vigias da beira-rio. Era suposto que dissessem com todo o ar dos seus pulmões:

    - Abram os olhos, seus merdas! - Se não diziam isso, soava algo parecido.

    Eu mesmo ainda não tinha conseguido abrir os meus, até aquela hora. Pudera. No meio de toda aquela zoada, eu procurava por uma outra sintonia. Mas, de longe, eu sabia que um número incontável de olhos graúdos e reluzentes dos caimãos-pretos não nos perdiam da mira. Os grupos de jacarés estão sempre a postos, deitados lado a lado, cumprindo a lei de proteção do rio.

    Naqueles poucos vinte minutos em que estávamos embarcados, o frescor me trouxe ao nariz o cheiro de pirarucu direto das panelas, e aos ouvidos, os versos de Thiago de Mello: O silêncio da floresta é sonoro: os cânticos dos pássaros da noite fazem parte dele, nascem dele, são a sua voz aconchegante.. E, só de pensar, deitado no barco esplêndido, desligado do mundo, eu já tinha quase um Brasil dentro de mim, empurrando minha lucidez para o fundo do sono. Eu estava tão longe, mas tão longe, que tinha para mim que os

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