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Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo: Direitos Fundamentais, Políticas Públicas e Protagonismo Judiciário
Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo: Direitos Fundamentais, Políticas Públicas e Protagonismo Judiciário
Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo: Direitos Fundamentais, Políticas Públicas e Protagonismo Judiciário
E-book1.205 páginas17 horas

Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo: Direitos Fundamentais, Políticas Públicas e Protagonismo Judiciário

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Sobre este e-book

Neoconstitucionalismo e Neoprecessualismo. Direitos Fundamentais Políticas Públicas e Protagonismo Judiciário contesta a dogmática jurídica, a partir da potencialização da leitura constitucional do direito infraconstitucional. Na linha do póspositivismo, versa sobre a efetivação dos direitos fundamentais no Brasil. Busca revisitar o princípio da separação dos poderes para trazer os contornos da jurisdição constitucional no Estado Democrático de Direito. Faz uma leitura crítica do Novo Código de Processo Civil para que as técnicas processuais facilitem à tutela dos direitos fundamentais, notadamente os sociais, cuja implementação dependem da eficiência das políticas públicas. Revela pela crítica a posicionamentos jurisprudenciais e doutrinários fundamentos que permitam conceber o direito como um importante meio de transformação social. Dessa forma, inspira os integrantes do sistema de justiça a lutar pelos valores democráticos e aperfeiçoar a cidadania necessária ao desenvolvimento humano, político, social e econômico brasileiro.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de mai. de 2019
ISBN9788584931156
Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo: Direitos Fundamentais, Políticas Públicas e Protagonismo Judiciário

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    Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo - Eduardo Cambi

    Neoconstitucionalismo e

    Neoprocessualismo

    DIREITOS FUNDAMENTAIS, POLÍTICAS PÚBLICAS E PROTAGONISMO JUDICIÁRIO

    2016

    Eduardo Cambi

    logoalmedina

    NEOCONSTITUCIONALISMO E NEOPROCESSUALISMO:

    DIREITOS FUNDAMENTAIS, POLÍTICAS PÚBLICAS E PROTAGONISMO JUDICIÁRIO

    © Almedina, 2016

    AUTOR: Eduardo Cambi

    DIAGRAMAÇÃO: Almedina

    DESIGN DE CAPA: FBA

    ISBN: 978-85-8493-115-6

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)


    Cambi, Eduardo

    Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo :

    direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário / Eduardo Cambi. -

    São Paulo : Almedina, 2016.

    Bibliografia

    ISBN 978-85-8493-115-6

    1. Direito - Filosofia 2. Direito constitucional

    3. Direito processual 4. Direitos fundamentais

    I. Título.

    15-09785                 CDU-340.12


    Índices para catálogo sistemático:

    1. Neoconstitucionalismo: Filosofia do direito 340.12

    2. Neoprocessualismo: Filosofia do direito 340.12

    Este livro segue as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro, protegido por copyright, pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida de alguma forma ou por algum meio, seja eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenagem de informações, sem a permissão expressa e por escrito da editora.

    Janeiro, 2016

    EDITORA: Almedina Brasil

    Rua José Maria Lisboa, 860, Conj.131 e 132 | Jardim Paulista | 01423-001 São Paulo | Brasil

    editora@almedina.com.br

    www.almedina.com.br

    A virtude das grandes almas é a justiça.

    AUGUST GRAF VON PLATEN-HALLERMUND

    AGRADECIMENTOS

    Escrever exige dedicação. Tempo que se retira do convívio daqueles que mais amamos. Algumas páginas deste livro foram escritas depois de muitas das luzes da casa serem apagadas ou quando, distante do aconchego do lar, outro conforto não havia senão refletir ideias e digladiar com palavras.

    Agradeço a Deus pela minha família, sem a qual este intenso trabalho não seria possível. Dedico esta obra à minha esposa, Maria Paula, pessoa admirável, com quem compartilho os melhores momentos de minha vida. Sou grato pela companhia, lealdade, companheirismo e, especialmente, pela incansável dedicação na educação e na formação de nossos filhos. Pedro e Davi: são uma benção em nosso lar, dão sentido às nossas vidas, além de serem fonte de orgulho e felicidade. Aos meus pais, que me ensinaram mais por exemplos que por palavras; ao meu irmão, pela amizade.

    Ainda, aos meus colegas Professores e alunos, de modo especial aos dos programas de Mestrado em Direito da Universidade Estadual do Norte do Paraná e da Universidade Paranaense, onde a troca de ideias é sempre um permanente estímulo para o aperfeiçoamento jurídico e social. Do mesmo modo, agradeço aos amigos do Ministério Público, do Judiciário e da Advocacia, com quem aprendo constantemente.

    NOTA DO AUTOR

    Após o término da terceira edição de Neconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário, surgiu a necessidade de revisão integral de seu texto para adequar às mudanças doutrinárias, jurisprudenciais e legislativas ocorridas nos últimos anos, em especial a edição no Novo Código de Processo Civil.

    Agradeço aos leitores da obra que cobraram a sua atualização e a Editora Almedina que acreditou na trajetória vitoriosa deste livro e permitiu que suas ideias continuassem vivas no debate acadêmico e profissional.

    Sou grato, também, pela revisão do texto original, ao Professor Alencar Frederico Margraf.

    Sumário

    Introdução

    1. Neoconstitucionalismo

    1.1 Conceito moderno de Constituição

    1.2 Função da Constituição: caráter transformador

    1.3 Constituição e contrato social

    1.4 Aspectos históricos e dimensões, horizontal e vertical, dos direitos fundamentais

    1.5 Afirmação histórica dos direitos humanos fundamentais

    1.6 Direitos fundamentais e patrimoniais

    1.7 Constitucionalismo inclusivo e o direito fundamental à inclusão social

    2. Direito e Constituição

    2.1 Constitucionalização dos direitos infraconstitucionais

    2.3 Constitucionalismo mundial e multiculturalismo emancipatório

    3. Neopositivismo

    3.1 Introdução

    3.1 Características do positivismo jurídico

    3.2.2 A completude do ordenamento jurídico (não admissão de lacunas)

    3.2.3 Não reconhecimento dos princípios como normas

    3.2.4 Dificuldade para explicar os conceitos indeterminados

    3.2.5 A identificação entre vigência e validade da lei

    3.2.6 Formalismo jurídico

    3.2.7 Identificação da legalidade com a legitimidade

    3.3 Características do neopositivismo

    3.3.1 Introdução

    3.3.2 Superação do legalismo

    3.3.3 Constituição, normatividade, valores e sistema jurídico ideal

    3.3.4 Diferenças entre regras e princípios

    3.3.5 Direitos fundamentais são sempre princípios?

    3.3.7 Método concretista da norma jurídica

    3.3.8 Superação do formalismo jurídico (e processual)

    3.3.9 Rejeição do império do silogismo judicial

    3.3.10 Interpretação e argumentação: pretensão de verdade ou de correção

    3.3.11 Normatividade e solução de casos concretos

    3.3.12 Fim da rígida separação entre o direito e a moral

    3.3.13 Conteúdo da norma e legitimidade do direito

    3.3.14 O problema da racionalidade da jurisprudência e dos precedentes

    3.3.14.1 As reformas constitucionais e processuais

    3.3.14.2 A uniformização judicial do direito

    3.3.14.4 A vinculação do juiz aos precedentes

    3.3.14.5 A importância dos precedentes jurisprudenciais como fonte do direito

    4. Expansão da jurisdição constitucional

    4.1 Revisão do princípio da separação dos poderes no Estado Contemporâneo

    4.1.1 O princípio da separação dos poderes no Estado Liberal

    4.1.2 O princípio da separação dos poderes a partir do Estado do Bem-Estar Social e de seus desdobramentos contemporâneos (Estado Pós-Social)

    4.1.3 A crise da democracia representativa

    4.1.4 Crise da democracia representativa, revitalização dos partidos políticos e desenvolvimento da democracia brasileira

    4.1.5 Democracia e direitos fundamentais

    4.1.6 Desneutralização política do Judiciário

    4.1.7 Judiciário e democracia

    4.2 Princípio da supremacia da Constituição e controle da constitucionalidade

    4.3 Direito fundamental à tutela jurisdicional

    4.3.1 Introdução

    4.3.2 Judicialização da política

    4.3.3 Efetivação judicial dos direitos fundamentais sociais

    4.3.4 Direito fundamental à tutela jurisdicional célere, adequada e efetiva

    4.3.5 Devido processo legal substancial e a cláusula de proibição de retrocesso social

    4.3.6 Controle jurisdicional da discricionariedade administrativa

    4.3.7 Protagonismo judiciário

    4.3.8 Proteção jurisdicional das omissões inconstitucionais

    5. Críticas à expansão da jurisdição constitucional

    5.1 Legitimidade democrática dos juízes

    5.1.1 Introdução

    5.1.2 Direito e política

    5.1.3 Liberdade judicial e controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário

    5.2 Procedimentalismo versus substancialismo

    5.3 Judiciário como legislador positivo ou negativo

    5.4 Decisões judiciais, baseadas em princípios, com conteúdos morais

    5.5 Reserva da consistência

    5.6 Dever de motivação das decisões judiciais e teoria da argumentação jurídica

    5.6.1 Motivação judicial como exigência racional do Estado Democrático de Direito

    5.6.2 Decisão correta ou suficientemente motivada

    5.6.3 Racionalidade e correção das decisões judiciais

    5.6.4 Direitos fundamentais e dever de motivação

    5.6.5 Provas estatísticas

    5.6.6 Teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova

    5.7 Reserva do possível e mínimo existencial

    5.7.1 Processo e cidadania

    5.7.2 Os custos da realização dos direitos

    5.7.3 Aspectos orçamentários

    5.7.4 Direito fundamental à liberdade e mínimo existencial

    5.7.5 Conceito de mínimo existencial

    5.7.6 Mínimo existencial versus reserva do possível

    5.7.7 Vetores hermenêuticos para invalidar decisões políticas inconstitucionais

    5.7.8 Políticas públicas minimamente eficientes: direito às informações adequadas e conhecimento multidisciplinar

    5.7.9 Controle judicial do orçamento público

    5.7.10 Universalização das políticas públicas, conteúdo dos direitos fundamentais sociais e argumentação jurídica

    5.7.11 Técnica da ponderação

    5.7.12 Postulado da concordância prática

    5.7.13 Proporcionalidade e razoabilidade

    5.7.14 A fórmula do peso de Robert Alexy

    5.7.15 Alcance da reserva do possível em países de modernidade tardia

    5.7.16 Legitimação e criatividade judiciais

    5.7.17 Consequências jurídicas do controle judicial das políticas públicas e outras formas de combater a corrupção para melhor efetivar os direitos fundamentais sociais

    5.8. Estratégia nacional de prevenção e de redução de litígios

    5.9. Métodos de solução consensual de conflitos no Novo Código de Processo Civil e na legislação específica

    5.10. Ministério Público Social e proteção dos direitos fundamentais sociais

    5.11. Exclusão social, cidadania, combate à corrupção e efetividade dos direitos fundamentais sociais

    5.11.1. Os fascismos e a exclusão social

    5.11.2. Cidadania ativa e solidária

    5.11.3. Política cidadã

    5.11.4. Corrupção e educação

    5.11.5. Repressão da corrupção sistêmica no Brasil para a melhor efetivação dos direitos fundamentais sociais

    6. Generalização dos Direitos Fundamentais

    7. A obtenção de respostas corretas/adequadas à Constituição e a necessidade de superação dos casuísmos judiciários

    Referências Bibliograficas

    Introdução

    O tempo presente é marcado por muitas mudanças. A sociedade tecnológica e de consumo transforma tudo rapidamente. O direito vive uma crise existencial, tendo dificuldades de promover valores essenciais como a segurança e a justiça.¹

    Surgem diversas teorias novas que, sob o rótulo dos prefixos neo e pós, pretendem renovar o estudo do direito. Não obstante o momento requeira cautelas, já que o direito está assentado na boa tradição e as novidades precisam ser bem refletidas, para que não se confundam com os modismos passageiros da estação, é certo que a Constituição, nas últimas décadas, foi colocada no ápice do ordenamento jurídico, adquirindo força normativa capaz de justificar a releitura de todos os ramos do direito.

    Novas perspectivas foram abertas, não se podendo reproduzir, sem nenhum comprometimento social, as velhas teorias para as novas realidades.

    Os direitos fundamentais, previstos na Constituição Federal de 1988, reclamam maior efetividade. Aliás, é importante, desde já, distinguir a eficácia da efetividade das normas.² A eficácia diz respeito à concretização do programa condicional, isto é, do vínculo se-então, abstrata e hipoteticamente previsto na norma legal. Já a efetividade concerne à implementação do programa finalístico que orientou a atividade legislativa ou a concretização do vínculo meio-fim que decorre, abstratamente, do texto legal. Por exemplo, uma lei, destinada a combater a inflação, será efetiva, quando a inflação for reduzida, relevantemente, por força da sua eficácia (observância, aplicação, execução, uso). A mesma lei pode ter eficácia sem efetividade (v.g., a lei ser observada, mas não gerar nenhuma modificação significativa no aumento dos preços) ou ter eficácia e ser antiefetiva (v.g., ser observada, mas provocar alta de preços). Com efeito, eficácia e efetividade são conceitos relativos e graduais: há falta de vigência social da lei ou de carência de normatividade do texto legal quando as expectativas normativas das pessoas e dos órgãos estatais, de forma generalizada, não se orientam pelos dispositivos legais.

    A consolidação do Estado Social, em países da periferia do capitalismo, exige a concretização dos direitos fundamentais sociais e, para tanto, das políticas públicas indispensáveis à sua realização. Nesse sentido, é preciso revisar parcela significativa da doutrina e da jurisprudência que, baseadas no princípio da separação dos poderes e na discricionariedade administrativa, restringem o alcance do controle judicial de políticas públicas (v.g., por intermédio da interposição de ação civil pública), impedindo a discussão sobre a destinação específica de recursos públicos, inclusive sob o fundamento superado, agora pelo Novo Código de Processo Civil, da impossibilidade jurídica da demanda.³-⁴

    As categorias da impossibilidade jurídica do pedido ou da falta de interesse processual não podem ser utilizadas para fortalecer o formalismo processual. Isto é, ao se conferir racionalidade extrema às formas processuais, acaba-se por cultuar excessivamente aspectos procedimentais, fazendo prevalecer regras processuais sobre o direito material. Com isto, elabora-se modelo processual que se desvirtua quanto ao seu fim precípuo de instrumento destinado a efetivar direitos, tornando-se incapaz de tutelá-los.

    Por força do art. 1.º, IV, da Lei 7.347/1985, que autoriza o ajuizamento de ações coletivas para a defesa judicial de interesses transindividuais, a categoria da impossibilidade jurídica da demanda, de há muito abandonada pelo seu criador⁵ e moldada para direitos individuais, não pode impedir que o processo seja um instrumento para a efetivação dos direitos coletivos e difusos.⁶ Felizmente, a referida condição da ação foi abolida pelo Novo Código de Processo Civil brasileiro.

    A efetivação da Constituição exige a superação do positivismo jurídico e do formalismo processual. Em países de modernidade tardia, como o Brasil, é urgente o despertar do sono dogmático, para forjar o pensamento crítico indispensável para fazer avançar o estudo do direito.

    O neoconstitucionalismo, ao propor uma nova metodologia jurídica, e o neoprocessualismo, ao incorporar a necessidade de compreender e utilizar as técnicas processuais, a partir das bases constitucionais, trazem novas ideias que permitem revisar posições tradicionais, incapazes de transformar a realidade pela via jurídica.⁸ Nesse sentido, a Lei 13.105, de 16 de março de 2015, procurou incorporar diversas novidades ao processo civil brasileiro, na tentativa de simplificar e racionalizar o uso das formas processuais para melhor assegurar a proteção do direito fundamental à tutela jurisdicional adequada, célere e efetiva.

    Enfim, o objetivo deste livro é fomentar, com apoio no discurso filosófico,⁹ o diálogo crítico entre os direitos constitucional e processual, a fim de buscar a reorganização ética de alguns pontos de vista que permeiam o pensamento jurídico contemporâneo, para poder enfrentar os problemas da hipercomplexa sociedade pós-moderna. Advirta-se, todavia, que a perspectiva pós-moderna não é inovadora, pois já remonta à década de cinquenta do século passado, quando o historiador Arnold Joseph Toybee, em seu livro A Study of Story, previu que as transformações da modernidade apontavam para a emergência de novas formas societais, denominadas sociedades pós-modernas.¹⁰ Com décadas de atraso, o direito brasileiro, nos últimos anos, procura enfocar o tema da pós-modernidade na conjunção entre a Constituição e o processo.

    -

    ¹ Luis Roberto Barroso (Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil), ao buscar sentido para os prefixos neo e pós, bem sintetiza o tempo presente: "Vivemos a perplexidade e a angústia da aceleração da vida. Os tempos não andam propícios para doutrinas, mas para mensagens de consumo rápido. Para jingles, e não para sinfonias. O Direito vive uma grave crise existencial. Não consegue entregar os dois produtos que fizeram sua reputação ao longo dos séculos. De fato, a injustiça passeia pelas ruas com passos firmes e a insegurança é a característica da nossa era. Conclui, pois, o constitucionalista carioca: Na aflição dessa hora, imerso nos acontecimentos, não pode o intérprete beneficiar-se do distanciamento crítico em relação ao fenômeno que lhe cabe analisar. Ao contrário, precisa operar em meio à fumaça e à espuma. Talvez esta seja uma boa explicação para o recurso recorrente aos prefixos pós e neo: pós-modernidade, pós-positivismo, neoliberalismo, neoconstitucionalismo. Sabe-se que veio depois e que tem a pretensão de ser novo. Mas ainda não se sabe bem o que é. Tudo é ainda incerto. Pode ser avanço. Pode ser uma volta ao passado. Pode ser apenas um movimento circular, uma dessas guinadas de 360 graus". Sobre o neconstitucionalismo, verificar, entre outros: Miguel Carbonell (coord.), Neoconstitucionalismo(s); Miguel Carbonell (coord.), Teoría de neoconstitucionalismo. Ensayos escogidos; Paolo Comanducci. [http://www.acaderc.org.ar/doctrina/articulos/artconstitucionalizacionyteoriadelderecho]. Acesso em: 18.05.2009; Paolo Comanducci, [http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/90250622101470717765679/isonomia16/isonomia16_06.pdf], acesso em 18.05.2009; Gustavo Ferreira Santos. Neoconstitucionalismo e democracia, p. 45-55; Daniel Sarmento. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades, p. 9-49, Luis Prieto Sanchís. El constitucionalismo de los derechos, p. 23-60; Écio Oto Ramos Duarte e Susanna Pozzolo. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico; Lúcia Jales. Neoprocessualismo. Reflexos neoconstitucionais.

    ² Cf. Marcelo Neves. A constitucionalização simbólica. p. 47-48.

    ³ É bastante frequente serem ajuizadas ações civis públicas em face de um ente estatal qualquer que signifiquem, na prática, a imposição de uma destinação específica dos recursos públicos. Assim, muitas vezes os autores dessas demandas coletivas, com pretextos dos mais variados, pretendem invadir o campo da discricionariedade administrativa. Nesses casos, a demanda será juridicamente impossível (Pedro da Silva Dinamarco. Ação civil pública. p. 190).

    ⁴ Nesse sentido, já decidiu o STJ: a) Administrativo. Processo civil. Ação civil pública. (...). 2. Impossibilidade de o juiz substituir a Administração Pública determinando que obras de infraestrutura sejam realizadas em conjunto habitacional. Do mesmo modo, que desfaça construções já realizadas para atender projetos de proteção ao parcelamento do solo urbano. 3. Ao Poder Executivo cabe a conveniência e a oportunidade de realizar atos físicos da Administração (construção de conjuntos habitacionais etc.). O Judiciário não pode, sob o argumento de que está protegendo direitos coletivos, ordenar que tais realizações sejam consumadas. 4. As obrigações de fazer permitidas pela ação civil pública não têm força de quebrar a harmonia e independência dos Poderes. 5. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário está vinculado a perseguir a atuação do agente público em cabo de obediência aos princípios da legalidade, da moralidade, da eficiência, da impessoalidade, da finalidade e, em algumas situações, o controle de mérito. 6. As atividades de realização dos fatos concretos pela administração depende de dotações orçamentárias prévias e do programa de prioridades estabelecidos pelo governante. Não cabe ao Poder Judiciário, portanto, determinar as obras que deve edificar, mesmo que seja para proteger o meio ambiente (REsp 169.876-SP, 1.ª T., j. 16.06.1998, rel. Min. José Delgado, DJU 21.09.1998, p. 70); b) Constitucional. Administrativo. Ação civil pública. Poder discricionário da Administração. Exercício do juiz. Impossibilidade. Princípio da harmonia entre os poderes. O juiz não pode substituir a Administração Pública no exercício do poder discricionário. Assim, fica a cargo do Executivo a verificação da conveniência e da oportunidade de serem realizados atos de administração, tais como, a compra de ambulâncias e de obras de reforma de hospital público. O princípio da harmonia e independência entre os Poderes há de ser observado, ainda que, em tese, em ação civil pública, possa o Município ser condenado à obrigação de fazer (AGREsp 252.083-RJ, 2.ª T., j. 27.06.2000, rel. Min. Fátima Nancy Andrighi, DJU 26.03.2001, p. 415).

    ⁵ Cf. Enrico Tullio Liebman. Manual de direito processual civil. vol. I, p. 155.

    ⁶ Cf. Rodolfo de Camargo Mancuso, Jurisdição coletiva e coisa julgada: teoria geral das ações coletivas, p. 406-407; Hugo Nigro Mazzilli, A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor e outros interesses difusos e coletivos, p. 121.

    À literatura jurídica ainda falta, no Brasil, iluminar-se pelos ciclos da experiência, fazer seu o distrato com o dogmatismo sem sepultar a dogmática como expressão de necessária racionalidade sistematizadora, e apresentar os custos de liquidação da porosidade do ordenamento clássico. Enfim, tentar entender o que passa à volta, na realidade, e não apenas nas fontes escritas pelo conhecimento formal (Luiz Edson Fachin. Direito civil: sentidos, transformações e fim, p. 87).

    ⁸ Cf. Eduardo Cambi. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. p. 662-683; Cândido Rangel Dinarmarco. Nova era do processo civil. p. 24-26.

    O filósofo deve sempre estar atento ao diálogo, ouvir as outras filosofias que lhe enfrentam e se não for possível refutá-las, emendar e reorganizar a sua posição (Ariani Bueno Sudatti. Raciocínio jurídico e nova retórica. p. 159).

    ¹⁰ Cf. José Joaquim Gomes Canotilho. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. p. 6-7.

    1. Neoconstitucionalismo

    Sumário: 1.1 Conceito moderno de Constituição – 1.2 Função da Constituição: caráter transformador – 1.3 Constituição e contrato social – 1.4 Aspectos históricos e dimensões, horizontal e vertical, dos direitos fundamentais – 1.5 Afirmação histórica dos direitos humanos fundamentais – 1.6 Direitos fundamentais e patrimoniais – 1.7. Constitucionalismo inclusivo e o direito fundamental à inclusão social.

    1.1 Conceito moderno de Constituição

    A Constituição deve ser concebida como um sistema de princípios e regras – formais e substanciais – que tem como destinatários os titulares do poder.

    A Revolução Francesa, cuja deflagração ocorreu simbolicamente com a queda da Bastilha em 1789, foi o grande marco histórico do Estado Moderno. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão inaugurou a nova ideologia, fundada na Constituição, na separação dos poderes e nos direitos fundamentais.¹¹

    Segundo o art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), toda sociedade em que a garantia dos direitos não está assegurada, nem a separação dos poderes está determinada, não tem Constituição.

    Deste dispositivo, depreendem-se dois elementos essenciais, que estão no núcleo do conceito das Constituições Modernas: a separação de poderes (ou a limitação jurídica do poder estatal) e os direitos fundamentais.

    Tal concepção de Constituição se amoldou a uma organização política liberal e garantista, sendo concebida como um limite ao poder político, a fim de assentar que os Estados Liberais seriam constitucionais, porque tinham Constituição, enquanto os Estados despóticos não seriam constitucionais, porque careciam de Constituição.¹²

    Mesmo que esse modo de utilizar o termo Constituição esteja em desuso e ainda que se rejeite a concepção liberal do constitucionalismo, em favor de uma concepção mais democrática, é consenso reconhecer que a inexistência da observância, pelos Estados, da separação de poderes ou dos direitos fundamentais implica a não caracterização do Estado Constitucional ou a ausência de Constituição.¹³

    1.2 Função da Constituição: caráter transformador

    A Constituição é um instrumento limitativo do poder. Ao regular a organização e o modo de exercício do poder político, serve de limite e de vínculo da maioria.

    O princípio da maioria não equivale à prepotência nem pode traduzir-se na imunidade do Poder Legislativo ou do Executivo perante as violações da Lei fundamental.¹⁴ É preciso apreender com a história, a qual está repleta de exemplos de maiorias totalitárias (v.g., o nazismo e o fascismo), a exigir a observância de direitos fundamentais de todos, façam eles ou não parte da maioria.

    O princípio da maioria não está assentado no absolutismo da maioria ou na opressão das minorias. O conceito de democracia não pode ser reduzido ao governo da maioria. O direito da maioria deve respeitar o das minorias, pois, em uma democracia, uma minoria pode, ocasionalmente, tornar-se maioria.

    As Constituições modernas preveem valores e opções políticas fundamentais com o escopo de se formar um consenso mínimo a ser observado pelas maiorias, pois a democracia exige mais do que apenas a observância da regra majoritária.¹⁵ Isto retira a discricionariedade da política ordinária, vinculando o grupo político que detém o poder, a fim de garantir a realização dos direitos de todos.

    Quanto mais Constituição, mais limitação ( deveres negativos) ou mais imposição de tarefas (deveres positivos). Aliás, uma boa Constituição deve ser compreendida tanto como uma ordem-quadro, quanto uma ordem-fundamental.¹⁶ Enquanto ordem-quadro, a Constituição deve impor limitações, em determinadas matérias, mediante ordens (isto é, o que resulta ordenado pela Constituição mostra-se, constitucionalmente, necessário) e proibições (ou seja, o que resulta proibido, pela Constituição, mostra-se impossível), à atuação do legislador (por isso, estabelece um quadro), confiando aos poderes públicos, em outras matérias, consideradas não essenciais, aberturas ou margens de ação (discricionariedade). O que a Constituição atribui à discricionariedade do legislador mostra-se apenas constitucionalmente possível; ou seja, não é nem necessário, nem impossível. Por outro lado, a Constituição deve ser também uma ordem-fundamental, impondo, para a sociedade, mediante mandatos e proibições, questões essenciais ou um sistema de valores (no qual se incluem os direitos fundamentais, além de outros princípios como o do Estado Democrático e Social de Direito) que servem não como limites, mas como fundamentos, fins ou tarefas que devem nortear a atividade estatal ou não,¹⁷ por intermédio de deveres de proteção.

    Neste último aspecto, a Constituição, como ordem fundamental, pode ser compreendida em sentido quantitativo ou qualitativo.¹⁸ No sentido quantitativo, uma Constituição é uma ordem fundamental, quando não estabelece posições discricionárias (nada confia ao legislador); em outros termos, para tudo tem um mandato ou uma proibição. Percebe-se, destarte, que é impossível que a Constituição seja, ao mesmo tempo, uma ordem-quadro e uma ordem-fundamental, em sentido quantitativo. Já em sentido qualitativo, a fim de pensar em um modelo de Constituição capaz de conciliar-se com aquele que a estabelece como uma ordem-quadro, é uma ordem fundamental, quando resolve as perguntas fundamentais para a comunidade, embora deixe sem respostas outras perguntas (não ordena nem proíbe), para as quais serve apenas como uma ordem-marco, confiando na discricionariedade dos poderes públicos.

    A relação entre o princípio da maioria e da constitucionalidade é ambivalente, na medida em que, de um lado, a Constituição limita o exercício do legislador ordinário e, de outro lado, é a expressão do princípio da maioria, fundante e constituinte da comunidade política.¹⁹

    Os direitos fundamentais formam um consenso mínimo oponível a qualquer grupo político que ocupe o poder. Vinculam às maiorias, porque, além de constituírem elementos valorativos essenciais à existência do Estado Democrático de Direito, descrevem exigências indispensáveis ao funcionamento adequado de procedimentos de deliberação democrática.²⁰

    Logo, ter um direito fundamental, em um Estado Democrático de Direito, equivale a ter um trunfo em um jogo de cartas.²¹ A carta de trunfo é aquela que prevalece sobre as demais, mesmo aquelas que tenham valor facial mais elevado. Ter um trunfo contra o governo democraticamente legitimado, baseado na regra da maioria, significa, ao final, que ter um direito fundamental é um trunfo contra a maioria.

    Atualmente, não basta falar em Estado de Direito ou o Estado sob o regime do Direito, conceito este desenvolvido a partir do século XIX, em oposição ao Estado Policial ou o Estado sob o regime de Polícia, característico do século XVII, uma vez que, no Estado de Direito, era suficiente o respeito à lei, sem se preocupar com o seu conteúdo: a lei se impunha mesmo se redundasse em medidas pessoais, concretas e retroativas, que poderiam coincidir com a vontade de um ditador ou de um partido político.²² No atual estágio de desenvolvimento jurídico, os direitos fundamentais representam os elementos definidores e legitimadores de todo o ordenamento jurídico positivo, proclamando um concreto e objetivo sistema de valores de aplicação imediata e de vinculação do poder público. Definem uma cultura jurídica e política, limitando o poder do Estado. Por isso, o moderno Estado de Direito democrático e constitucional deve ser denominado de Estado de Direitos Fundamentais. O Estado de Direito é uma categoria interdependente dos direitos fundamentais, porque somente são soberanas as leis que constituam manifestação externa das exigências de racionalidade e de liberdade, não da vontade arbitrária daqueles que detêm o poder.²³

    O conteúdo da lei e do direito deve ser protegido pelo Estado de Direito Constitucional. Pelo princípio da supremacia da Constituição, os direitos fundamentais tornam-se posições jurídicas tão importantes que a sua garantia não pode ser deixada ao alvitre das maiorias parlamentares, não retirando do cidadão, amparado por tais direitos, a sua posição jurídico-prestacional.²⁴ Enfim, a função básica da Constituição é suprimir certas decisões do processo político.

    Quando a Constituição coloca direitos acima das decisões da maioria, faz do sistema de direitos fundamentais o critério último de validade de todo o ordenamento jurídico.²⁵ Com isso, não se limita o âmbito de deliberação democrática, mas, ao contrário, impõe-se a devida atenção democrática aos interesses humanos fundamentais, os quais poderiam restar negligenciados no processo político ordinário.²⁶

    Dessa forma, se as Constituições não são documentos sagrados nem um conjunto de políticas, devem continuar fornecendo as exigências constitucionais mínimas, prevendo direitos e liberdades definidores da cidadania, pessoal, política e econômica, os quais são intocáveis pelas maiorias governamentais. A Constituição traça a perspectiva mínima da legitimidade moral e material, servindo de garantia contra o desmoronamento ético dos direitos fundamentais, por intermédio de reformas legislativas, desregulações, flexibilidades e liberalizações.²⁷ Cabe à Constituição estabelecer os fundamentos da teoria da justiça, definindo as estruturas básicas da sociedade, incorporando um projeto emancipatório que não seja indiferente às condições particulares dos excluídos. Ao se criar condições jurídicas diferenciadas de promoção dos direitos daqueles que merecem proteção especial (crianças e adolescentes, idosos, deficientes, consumidores, trabalhadores etc.), permite-se a maior inclusão social, além de exprimir refrações morais no âmbito do contrato social constitucional.²⁸

    As Constituições modernas, ao instituírem direitos fundamentais, reconhecem a supercomplexidade da sociedade e assimilam o pluralismo jurídico. Fornecem categorias críticas para a compreensão da sociedade, o que evita a propagação de concepções totalitárias e, por isso, inadequadas à complexidade social contemporânea.²⁹ Com isso, é possível responder às exigências do livre desenvolvimento da pessoa humana, reduzir os excluídos da justiça e construir uma sociedade mais solidária.

    Entretanto, essas Constituições preveem valores e expectativas muito altas, podendo ser consideradas até utópicas. São utopias de direito positivo, porque jamais se realizam de forma plena.³⁰ Malgrado não possam ser realizadas integralmente, trazem metas colocadas, pelo Direito, para a transformação da sociedade.³¹

    Desse modo, se a Constituição brasileira de 1988 prevê como objetivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3.º, I), tal desiderato deve ser buscado, intensamente, pelo Estado e pela própria sociedade.

    Tão importante quanto a realização plena destes objetivos são os constantes esforços para que essas metas sejam atingidas. Se a cada dia, a sociedade, pelo exercício da cidadania e pela atuação dos governantes, fica melhor, isto basta para que a utopia de ontem seja a realidade de hoje e a transformação do amanhã.³²

    A política jurídica utópica, também, é direito. Os sonhos dos filósofos do direito estão latentes no direito contemporâneo. Cada sonho pode ser o direito do futuro: o direito de hoje deve ser desafiado com as possibilidades de amanhã.³³

    Com efeito, há uma relação de inclusão recíproca entre o ideal e o real. O ideal, que a teoria do discurso concebe como a forma das condições de argumentação racional, funde suas raízes na realidade e não teria nenhuma força sem o real.³⁴ O real, por sua vez, não seria a forma de vida dos seres dotados de razão, se não incluísse o ideal.³⁵

    O direito, antes de ser regra e instituição, é discurso, cujo significado está em suspensão, pois se articula entre as coisas: entre a regra (que nunca é, inteiramente, normativa) e o fato (que jamais é, completamente, fático), entre a ordem e a desordem, entre a letra e o espírito, entre a força e a justiça.³⁶

    As Constituições modernas exercem um papel relevante na modificação da realidade, pois se caracterizam pela existência de metarregras (direito sobre direito),³⁷ isto é, são dotadas de normas superiores (supremacia da Constituição), justamente para vincular os poderes públicos (inclusive para impor limites aos interesses da maioria), a fim de transformar o direito na direção da realização dos direitos fundamentais de todos.

    O neoconstitucionalismo está voltado à realização do Estado Democrático de Direito, por intermédio da efetivação dos direitos fundamentais. Aposta no caráter transformador das Constituições modernas, pois, como utopias de direito positivo, servem como norte capaz de orientar as necessárias mudanças sociais. Neste sentido, não se pode ignorar a advertência de Macpherson: Só sobreviverão as sociedades que melhor possam satisfazer as exigências do próprio povo no que concerne à igualdade de direitos humanos e à possibilidade de todos os seus membros lograrem uma vida plenamente humana.³⁸

    Todavia, as aspirações reformistas começam pela educação dos cidadãos, os quais precisam compreender, criticamente, a sociedade e os possíveis mecanismos para a sua transformação.

    1.3 Constituição e contrato social

    Constituição, no sentido clássico, era concebida, por Aristóteles, como sendo a ordem na pólis (politeia), podendo os conceitos de Constituição e Estado serem equiparados.³⁹

    Com as revoluções burguesas do final do século XVIII, houve uma significativa alteração semântica e normativa no conceito de Constituição, que passou a ser concebida como carta de liberdade ou pacto de poder, para ressaltar a sua função constituinte de poder.⁴⁰

    O Estado Moderno possui natureza contratual (Hobbes) e, por isto, não é um fato natural, mas um fenômeno artificiale convencional, construído pelas pessoas para tutelar as suas necessidades e direitos.

    A noção de contrato social foi, inicialmente, identificada por John Locke, no Capítulo II de seu Segundo Tratado sobre o Governo, de 1690, em três direitos fundamentais – vida, liberdade e propriedade –, os quais justificariam o contrato social.⁴¹

    Essa posição prevaleceu no art. 2.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, ao prever: O fim de toda associação política é a defesa dos direitos naturais e imprescindíveis do homem. Estes direitos são a liberdade, a propriedade e a resistência à opressão.

    O contrato social serve para justificar, moralmente, o poder exercido na forma do direito positivo. Afinal, trata-se de um contrato em que cada indivíduo, autônomo, juntamente com os demais indivíduos autônomos e, portanto, com o assentimento não forçado de todos, regulam sobre algo que, razoavelmente, redunde no bem de cada um.⁴²

    Jürgen Habermas, baseando-se na ideia de ética universalista de Karl Otto Apel, afirma que as normas somente podem ser justificadas se forem observadas por todos.⁴³ O propósito da ética é a eliminação dos conflitos por meios não coercitivos; cabe à ética a tarefa de apresentar os princípios para eliminar os conflitos por intermédio do discurso.⁴⁴ Porém, como não se pode esperar que todos os sujeitos observem espontaneamente as normas jurídicas, tal observância somente é exigível quando há obrigatoriedade jurídica.⁴⁵

    As Constituições modernas, como expressão do contrato social, representam a grande metáfora da democracia constitucional, buscando conciliar a democracia política ou formal (a legitimidade do poder público se funda no consenso dos contratantes; ou seja, decorre do princípio da maioria, em vez de ser ditada de cima para baixo, pela vontade do soberano) com a democracia substancial (o consenso está condicionado à observância dos direitos fundamentais de todos; em outros termos, há limites e vínculos impostos à maioria).⁴⁶

    Assim, a democracia formal ou política disciplina as formas de decisão que asseguram a expressão da vontade da maioria.⁴⁷ Já a democracia substancial se preocupa com o conteúdo ou o significado e, portanto, com a validade e a legitimidade destas decisões, isto é, se elas correspondem aos direitos fundamentais ou aos princípios axiológicos neles estabelecidos. A democracia substancial não questiona quem decide ou como se decide, mas o que se decide. Impõe a quem decide a proibição de decidir contra os direitos fundamentais ou a não efetivação de tais direitos. Logo, quando se refere a direitos fundamentais, se subtrai da maioria ou do mercado a liberdade de decidir.

    Nenhum contrato pode dispor da vida; tampouco, nenhuma maioria política pode dispor dos direitos fundamentais, por exemplo, decidindo que uma pessoa pode ser condenada sem provas, ser privada arbitrariamente da sua liberdade pessoal ou de seus direitos civis ou políticos ou, ainda, ter que morrer sem assistência médica ou social, bem como viver sem condições mínimas de dignidade. Por isso, a democracia constitucional não é apenas uma forma de governo, fundada no poder do povo ou mesmo um método para a tomada de decisões coletivas, marcado por limitações substanciais ao exercício do poder, pela maioria. É também um ideal igualitário, não podendo a democracia, em sentido formal, ser separada da democracia substancial.

    A Constituição não é só a explicação do contrato social, devendo realizar os valores emanados desse contrato social (a sua força normativa deve constituir a ação do Estado).⁴⁸ Ao constituir a ação, esta não é apenas algo que se interpõe entre o Estado e a Sociedade, mas é o elo entre o político e o jurídico da sociedade, não podendo significar a opção pelo cumprimento de dispositivos menos significativos e o descumprimento sistemático do que é mais importante, isto é, do núcleo essencial-fundamental.⁴⁹ O contrato social, enquanto metáfora da democracia substancial, não representa um acordo vazio de conteúdos, devendo tutelar os direitos fundamentais, pois a sua violação por parte dos soberanos legitima a ruptura deste pacto e o exercício do direito de resistência.⁵⁰

    Portanto, a justificação do Estado, pensado por Thomas Hobbes, criado para superar o belum omnium do Estado de Natureza e garantir a paz, está fundada na proteção dos direitos à vida, à liberdade pessoal, à dignidade humana, enfim, dos direitos fundamentais que são o significado concreto do pacto constituinte do Estado Moderno.

    1.4 Aspectos históricos e dimensões, horizontal e vertical, dos direitos fundamentais

    As Constituições Modernas, como contratos sociais na forma escrita e positiva, têm a finalidade de limitar e vincular os poderes que, de outro modo, seriam absolutos.

    As Constituições, dignas desta concepção de contrato social (como a norte-americana e a francesa),⁵¹ representaram uma ruptura com o passado, mostrando o caminho a ser construído no futuro (dirigismo constitucional). Também refundaram as bases da convivência civil e representaram o fim do absolutismo.

    Consagraram conquistas sociais e democráticas, porque não foram concedidas de maneira espontânea pelo detentor do poder,⁵² nem foram elaboradas em uma mesa por juristas. Em contexto caracterizado pela exclusão e marginalização sociais, pelo crescimento das diferenças entre ricos e pobres, pelo descumprimento reiterado dos direitos consagrados, pelo aumento da corrupção e pela ineficiência das políticas públicas, são as manifestações coletivas que representam uma das poucas ferramentas de participação política.⁵³

    A efetivação dos direitos humanos fundamentais é resultado de duras e difíceis conquistas sociais. Não traduzem uma história linear, nem a história de uma causa perdida, mas a história da luta dos direitos a partir da superação das graves diferenças entre os sujeitos de direitos, discriminados, indevidamente, como objetos (como na escravidão dos negros) ou seres de menor dignidade (como foram ou são as práticas do nazismo, do sexismo, do racismo, da homofobia, da xenofobia e de outras formas de intolerância).⁵⁴

    A afirmação dos direitos fundamentais, destarte, decorreu de muitas lutas, às vezes sanguinárias, e pela negação dos antigos regimes.⁵⁵ Vale recordar, neste sentido, a célebre frase de Santayana, no museu do campo de concentração de Dachau, perto de Munique, na Alemanha: Aqueles que não se recordarem do passado são condenados a revivê-lo.

    Servem de ilustração: a Constituição Italiana (que nasceu da resistência e da guerra de liberação contra o regime fascista); a Lei Fundamental alemã (fruto do repúdio ao nazismo); as Constituições espanhola e portuguesa (ao romperem com os regimes de Franco e Salazar); a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, ao colocar fim a anarquia das relações entre Estados, no plano internacional, antes baseada na guerra e na sua soberania selvagem; e, ainda, a Constituição Brasileira de 1988, como resposta democrática à ditadura militar. Aliás, no Brasil, os movimentos sociais, nas décadas de 70 e 80, do século XX, anteriores à Constituição Federal de 1988, impediram que o regime militar ampliasse a recessão democrática, imposta à sociedade civil, lutando pela redemocratização do país, pela construção das liberdades e do pluralismo, bem como reivindicavam a normatização e efetivação dos direitos sociais.⁵⁶

    Sob o aspecto histórico, as transformações mais importantes no Direito Constitucional contemporâneo se deram, a partir da Segunda Grande Guerra Mundial, na Europa, devendo ser salientadas a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, e as Constituições italiana (1947), portuguesa (1976) e espanhola (1978).

    Com a derrota dos regimes totalitários (nazifascistas), verificou-se a necessidade de criarem catálogos de direitos e garantias fundamentais para a defesa do cidadão frente aos abusos que poderiam vir a ser cometidos pelo Estado⁵⁷ ou por quaisquer detentores do poder em suas manifestações políticas, econômicas, intelectuais etc.

    Nesse contexto, os direitos fundamentais são princípios que produzem efeitos sobre toda a ordem jurídica, sendo dotados de uma eficácia expansiva que inclui todos os âmbitos jurídicos.⁵⁸ Podem ser analisados na dimensão vertical (Estado-cidadão), mas também na horizontal (isto é, na esfera jurídica privada, entre pessoas e entidades não estatais, as quais se encontram em posição de igualdade formal), toda vez que houver desequilíbrio de poderes entre os particulares.⁵⁹ Afinal, os direitos fundamentais não têm como inimigo exclusivo o Estado, na medida em que a violação a tais direitos podem prover também, e às vezes como maior gravidade, dos poderes privados e dos outros particulares.⁶⁰

    Há, evidentemente, diferenças em ambas as perspectivas. A relação entre Estado e cidadão é uma relação entre um titular de um direito fundamental e um não titular de direito fundamental; por outro lado, a relação entre pessoas e entidades não estatais – presentes, por exemplo, na família, na empresa, no mercado e na sociedade civil – é uma relação entre titulares de direitos fundamentais.⁶¹ Desta maneira, o Estado é juridicamente limitado, enquanto os indivíduos são, essencialmente, livres e a sua autonomia constitucionalmente protegida.⁶²

    Exemplo da eficácia horizontal dos direitos fundamentais é um caso concreto, analisado pelo Tribunal Constitucional alemão, no qual se discutia o direito à antena parabólica. Tratava-se de um cidadão português que ajuizou ação contra o locador de seu imóvel, para poder instalar, na residência, antena parabólica, destinada a captar notícias de seu país. A Corte Constitucional deu-lhe razão, porque, nas relações jurídico-civis de locação, não deve ser aniquilado o direito fundamental à informação (art. 5.º, n. 1, da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha).⁶³-⁶⁴ Outros exemplos poderiam ser cogitados, sem aqui serem analisados, como: o da vedação de estatuto de um clube recreativo que proibisse a agremiação e negasse o direito de negros, judeus ou homossexuais de serem sócios; a expulsão de sócios de um clube ou de sociedade civil, sem fins lucrativos, sem respeitar previamente as garantias da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal;⁶⁵ a cláusula contratual que impedisse determinado artista, contratado por uma emissora de televisão, de participar em programas da emissora concorrente ou a previsão estatutária que impedisse que um jogador de futebol viesse a ser transferido para clube em outro país;⁶⁶ a cláusula em Estatuto de Empresa multinacional que concedesse mais direitos aos funcionários estrangeiros do que para os nacionais;⁶⁷ a determinação de regulamento de condomínio que proibisse os empregados de utilizar o elevador social; a cláusula contratual que impedisse que os compradores brancos de terreno em condomínio fechado os revendessem para pessoas negras;⁶⁸ a não contratação discriminatória de mulheres grávidas, deficientes físicos, portadores do vírus HIV etc. Prevalece, pois, a ideia da hierarquia normativa da Constituição Federal, a qual por ser a lex superior, submete o direito privado, que é direito infraconstitucional, à estrutura da ordem constitucional, ficando vinculado à observância dos direitos fundamentais.⁶⁹

    As dimensões vertical e horizontal são as duas faces dos direitos fundamentais.⁷⁰ Os direitos fundamentais não podem ser compreendidos somente como um sistema de normas; são, também, um sistema de posições e de relações jurídicas. A relação entre Estado e cidadão, como já ressaltado, é uma relação entre um titular de direito fundamental e um não titular do direito fundamental, enquanto a relação entre cidadãos é uma relação entre titulares de direitos fundamentais, isto é, é um problema de colisão. Há diferença entre o desequilíbrio jurídico de poderes, entre o Estado e os indivíduos, e fático de poderes, entre os particulares. Aquele desequilíbrio é presumido, porque o Estado é uma ameaça potencial aos direitos dos indivíduos, devendo ser compensado pela existência dos direitos fundamentais que protegem os cidadãos. Já o desequilíbrio fático de poderes entre os particulares, embora também possa ser presumível (v.g., a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, conforme se depreende do art. 4.º, I, da Lei 8.078/1990), nem sempre é evidente, podendo exigir prova da desigualdade, para não comprometer os princípios da isonomia e da boa-fé.⁷¹

    Nas relações privadas, a diferença entre poderes sociais pode representar grande ameaça ao exercício dos direitos fundamentais. Isto não significa que a eficácia horizontal dos direitos fundamentais somente se coloca quando há manifesta desigualdade entre as partes nas relações jurídicas privadas (v.g., quando uma das partes é uma grande empresa multinacional). Mesmo nas relações paritárias, entre cidadãos comuns, há de se respeitar os direitos fundamentais. A diferença está na ponderação entre a autonomia privada e os direitos fundamentais dos entes envolvidos. Quanto maior for a desigualdade fática entre eles, mais intensa deve ser a proteção do direito fundamental e menor a tutela da autonomia privada; ao contrário, nas relações paritárias, a autonomia da vontade vai receber proteção mais intensa e o direito fundamental, que colidir com ela, poderá ser mais profundamente restringido.⁷²

    A derrota dos regimes totalitários também evidenciou a necessidade de criação de mecanismos efetivos de controle da Constituição, por intermédio do aperfeiçoamento do exercício da cidadania, pela resolução extrajudicial dos conflitos, pela atuação resolutiva do Ministério Público e da Defensoria Pública ou, no limite, pela jurisdição constitucional.

    Em um contexto mais amplo, o estudo concreto dos institutos processuais, a partir da Constituição, inaugura uma nova disciplina, denominada de Direito Processual Constitucional. Está preocupada, de um lado, com a tutela constitucional do processo, a qual inclui o direito de acesso à justiça (ou de ação e de defesa) e o direito ao processo (ou as garantias do devido processo legal), e, de outro lado, com a jurisdição constitucional.⁷³ O Novo Código de Processo Civil, já no seu artigo 1º, deixa clara essa dimensão constitucional, ao determinar que o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.

    É por isso que, nas relações onde há maior desigualdade fática (v.g., direito do trabalho ou do consumidor), a proteção dos direitos fundamentais deve ser mais acentuada e a tutela da autonomia da vontade mais reduzida, ao passo que, em relações paritárias (v.g., contrato de prestação de serviços entre duas grandes empresas), a autonomia da vontade deve ser maior e a preocupação em proteger direitos fundamentais, menor.

    O neoconstitucionalismo se propõe a superar o paradigma da validade meramente formal do direito, no qual bastava ao Estado cumprir o processo legislativo para que a lei viesse a ser a expressão jurídica. Com isso, o direito deve ser entendido dentro das respectivas relações de poder,⁷⁴ sendo intolerável que, em nome da vontade do legislador, tudo que o Estado faça seja considerado legítimo. Estreitam-se, pois, os vínculos entre Direito e Política, na medida em que conceitos como os de razoabilidade, senso comum, interesse público etc. são informados por relações de poder.

    Porém, qualquer relevante concepção constitucional pressupõe uma determinada percepção do homem. A igual dignidade de todos os homens encontra respaldo na concepção universalista cristã, pela qual há participação da humanidade na divindade (Não há judeus nem gregos; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos sois um em Cristo Jesus – Gálatas 3:28).⁷⁵

    Neste sentido, os campos de concentração de Auschwitz-Birkenau, no sul da Polônia, construídos pelo governo alemão, comandado por Adolf Hitler, representam o símbolo do Holocausto, onde foram exterminados mais de seis milhões de judeus. Auschwitz-Birkenau não é apenas um simples fato histórico, mas um acontecimento que impõe reflexões sobre a autoconsciência da condição humana. Mostra que tais fatos jamais poderiam acontecer, de acordo com a consciência de que temos de nós mesmos, mas também revela que isto ocorreu devido à vontade dos próprios homens. Se na natureza humana está o horror por Auschwitz-Birkenau, ali também estão as causas que o produziram.⁷⁶ Negar o Holocasto é não somente ignorar as evidências históricas, mas cometer crime contra a humanidade, porque retira dela a possibilidade de extrair lições humanistas do genocídio, evitando que os erros do passado sejam repetidos no presente e no futuro.

    A Constituição, antes de qualquer medida protetiva, deve preocupar-se com os seres humanos. A dignidade da pessoa humana tem de ser o núcleo axiológico da tutela constitucional. A ela, há de se atribuir a concepção mais ampla possível, a fim de se extrair a máxima efetividade e aplicabilidade dos casos concretos. Não se restringe ao vínculo entre governantes e governados, estendendo-se para toda e qualquer relação, mesmo entre dois sujeitos privados, em que, pela manifestação do poder, uma destas pessoas tivesse seus direitos violados ou ameaçados de lesão.

    Os reflexos das alterações constitucionais ocorridas na Europa foram sentidas, significativamente, no Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988, que marca, historicamente, a transição para o Estado Democrático de Direito. Após a promulgação da Constituição de 1988, sem embargo das constantes reformas constitucionais operadas no texto original, foi possível construir, paulatina e progressivamente, uma importante cultura jurídica de valorização do sentimento constitucional.

    As sérias crises institucionais surgidas no país, após 1988, como o impeachment de um presidente diante dos gravíssimos indícios de corrupção, o processo do mensalão que atingiu inclusive Ministros de Estado e o escândalo na maior empresa estatal brasileira – a Petrobrás - investigado pela Operação Lava Jato, encontraram na Constituição e na jurisdição constitucional as soluções políticas e jurídicas – criticáveis ou não – para a manutenção da estabilidade democrática.

    1.5 Afirmação histórica dos direitos humanos fundamentais

    Inicialmente, é preciso compreender o sentido dos direitos humanos e sua diferenciação em relação aos direitos fundamentais.

    Os direitos humanos podem ser absolutos e relativos. São absolutos os direitos que todos têm frente a todos (v.g., o direito à vida). São relativos os direitos que todos os membros de toda comunidade jurídica têm na sua comunidade legal (v.g., o direito ao voto). Tanto os direitos humanos absolutos ou relativos são considerados suprapositivos ou morais. Neste sentido, é possível afirmar que os direitos humanos, mesmo antes de serem positivados, constituem uma ordem jurídica superior, objetiva, capaz de servir de fundamento universal para todo o sistema jurídico. Por isso, é possível sustentar, como exemplos de violações dos direitos humanos, os crimes praticados na Alemanha Nazista, o apartheid da África do Sul, a negação das liberdades políticas e sindicais no Chile de Pinochet, apesar de nenhum desses ordenamentos jurídicos positivos reconhecerem tais direitos.⁷⁷ Estão presentes na Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) e nos Tratados Internacionais que versam sobre a matéria.

    Os direitos humanos (absolutos e relativos) se positivam, nas Constituições, como direitos fundamentais. Assim, os direitos fundamentais possuem um sentido mais preciso e estrito, na medida em que descrevem o conjunto de direitos e liberdades jurídica e institucionalmente reconhecido e garantido pelo direito positivo.⁷⁸ O catálogo de direitos constitucionais pode conter, junto dos direitos humanos, outros direitos considerados fundamentais.⁷⁹

    Lembre-se que a história do constitucionalismo é a de uma progressiva expansão das esferas dos direitos: a) Constituições do século XIX: previam direitos de liberdade; b) Constituições do século XX: direitos sociais, econômicos, ao meio ambiente, à paz etc.; c) reformas constitucionais do século XXI: biodireito, direito às informações, respeito ao meio ambiente e à diversidade cultural, proteção dos direitos das gerações futuras etc.

    A nova era de direitos é marcada pelas seguintes características:⁸⁰ a) aumentaram os bens merecedores de tutela (as meras liberdades negativas, de religião, opinião, imprensa etc. deram lugar aos direitos sociais e econômicos, a exigir uma intervenção positiva do Estado); b) surgiram outros sujeitos de direitos, além do indivíduo (singular), como a família, as minorias étnicas e religiosas e toda a humanidade em seu conjunto; c) o próprio homem deixou de ser considerado em abstrato, para ser visto na concretude das relações sociais, com base em diferentes critérios de diferenciação (sexo, idade, condições físicas etc.), passando a ser tratado especificamente como homem, mulher, homossexual, criança, idoso, deficiente físico, consumidor etc.

    Os direitos fundamentais são históricos, porque nascem e se desenvolvem, gradualmente, em certas circunstâncias de lutas sociais e políticas pela defesa de novas liberdades contra velhos poderes (v.g., movimentos liberais, socialistas, feministas, antirracistas, ecológicos, pacifistas etc.).

    Por isso, a tutela dos direitos fundamentais não deve ser buscada, exclusivamente, no texto da Constituição, mas no contexto histórico-social em que se movem.⁸¹ Logo, não é correto limitar a carga protetiva às gerações ou dimensões de direitos fundamentais. Não importa, por exemplo, saber se a tutela contra a biopirataria ou o terrorismo é de quarta ou quinta geração/dimensão. Não há um numerus clausus de dimensões de tutela, porque não há um elenco limitado de perigos a serem combatidos. A compreensão alargada dos direitos fundamentais decorre da sua proteção dinâmica, a que corresponde uma tutela aberta, flexível e móvel.⁸² Para fins metodológicos, a interpretação do ordenamento jurídico deve ser marcada pela força expansiva dos direitos fundamentais.

    Alguns exemplos históricos, no campo da evolução dos direitos das mulheres, servem para fundamentar a perspectiva da historicidade da proteção dos direitos fundamentais:⁸³ a) mesmo na Grécia, berço da civilização Ocidental, entendia-se que os pais deveriam criar um filho homem, o que fazia com que meninas recém-nascidas fossem abandonadas dentro de uma espécie de vaso à beira da estrada; quando não morriam ou eram devoradas por algum animal, acabavam sendo recolhidas por traficantes de escravos que as criavam para se tornarem prostitutas; b) na Roma antiga, a posição da mulher recém-nascida também não diferia daquela presente na Grécia, pois, segundo a Lei das XII Tábuas, o pai tinha o direito de vida e de morte sobre os filhos, podendo matá-los (IV.1 e IV.2)⁸⁴ e vendê-los (III.3);⁸⁵ c) na cultura oriental, a situação não era muito diferente; na Índia, pelo art. 542 do Código de Manu (século II a.C.), o pai deveria ter um filho homem; se tivesse apenas filhas, isto seria motivo de vergonha e de discriminação, permitindo o referido Código que, se uma de suas filhas tivesse filho homem, este se tornava o primogênito, passando a ser o responsável pela divisão da herança, quando da morte do avô; d) ainda, na Índia, mesmo nos dias de hoje, apesar da proibição por uma lei britânica em 1829, existe a prática religiosa do Sati, isto é, quando o marido morre antes da esposa, esta era obrigada a imolar-se com ele: se fosse enterrado, ela era sepultada com ele, apesar de estar viva; se fosse cremado, o mesmo acontecia com ela;⁸⁶ e) na China, era muito comum as mulheres camponesas não terem nome, contando-se, inclusive, que a mãe de Mao Tse-tung era conhecida como a sétima filha do clã Wen; f) no mundo islâmico, além da utilização do véu e da burca dos talibãs, existe a prática monstruosa da excisão, constante em extirpar o clitóris da mulher (clitoridectomia);⁸⁷ g) com a Revolução Francesa (26.08.1789), iniciou a evolução dos direitos das mulheres no Ocidente, embora isto tenha sido posto em prática muitos anos depois, bastando lembrar que, na França, elas somente adquiriram o direito ao voto nos anos quarenta do século vinte,⁸⁸ depois das brasileiras, que podem votar desde 1933, e, na Suíça, país considerado politicamente evoluído, em um dos Cantões, tal direito somente foi conseguido na década de 70.

    A verdadeira ascensão da mulher, enquanto sujeito de direitos, ocorreu no final dos anos 60 com os movimentos feministas, conquanto mesmo no século XXI tenha havido avanços e recuos, a depender da cultura e do lugar envolvidos,⁸⁹ não estando completa a reivindicação de uma sexualidade independente das funções reprodutoras e da maternidade, já que a mídia ainda procura transformá-la em mercadoria de consumo (o mito da sex-symbol).

    Aliás, segundo Reinéro Antônio Lérias,⁹⁰ a visão da mulher como um dos bens que compõem a propriedade do homem (mercadoria) tem suas raízes no texto bíblico. No livro do Gênesis, que Deus cria Eva a partir da costela de Adão. Leonardo Boff⁹¹ explica que a tradução do texto bíblico se mostra equivocada, pois, em hebraico, a palavra zela significa lado e não costela. Logo, Eva não teria sido tirada da cabeça de Adão, para ser a sua senhora, nem dos seus pés para ser sua escrava, mas de seu lado, do lado do coração, para ser sua companheira. Malgrado se possa fugir de traduções equivocadas, não se pode desconsiderar que, no Gênesis, a mulher fora colocada em outro plano que o homem. Não fosse assim, a mulher não seria considerada como propriedade do homem no Décimo Mandamento (Não cobiçarás a mulher do próximo).

    O art. 1.º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, de 18.12.1979, afirma que a expressão ‘discriminação contra a mulher’ significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo que tenha como objeto ou como resultado comprometer ou destruir o reconhecimento, o gozo ou o exercício pela mulher, seja qual for o seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos do homem e das liberdades fundamentais nos domínios político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro domínio.

    A teoria feminista fez algumas das críticas mais radicais e consistentes à concepção estreita de racionalidade, que subjaz ao paradigma da modernidade, podendo ser associdada ao pós-modernismo.⁹² Afinal, é certo que o direito não é masculino por estrutura e vocação, mas sim por ser, historicamente, elaborado por homens. A reflexão feminista do direito não se resume, pois, apenas à afirmação da igualdade entre homens e mulheres, mas, ao contrário, impõe a rejeição à lógica que obriga que elas tenham que competir nos mesmos moldes e valores masculinos.⁹³ Não se deve criar um sujeito feminino abstrato, mas valorizar as especificidades das características femininas, ressaltando suas diferenças, para se promover o princípio da igualdade em sentido substancial. Isto ocorreu no Brasil, a partir da Lei 11.340/2006, destinada a criar mecanismo para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, com base no art. 226, § 8.º, da CF/1988, bem como na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.⁹⁴ A discriminação antifeminina não está, apenas, no tratamento desigual dado à mulher, considerada como ser inferior ao homem (v.g., nas relações de trabalho), mas também na negação do direito à diferença, isto é, ao desrespeito aos dados biológicos e aos valores culturais que compõem o universo feminino.⁹⁵ As desigualdades devem ser combatidas, porque representam a negação do valor ético do respeito entre todos os membros da comunidade humana; contudo, as diferenças, quando não forem contrárias à dignidade humana, devem ser estimuladas e apoiadas, pois, sem a existência de sexos, raças ou culturas diferentes, a humanidade perderia a sua capacidade criativa e evolutiva.⁹⁶

    A igualdade, a democracia, a paz e a tutela dos mais fracos constituem os pressupostos axiológicos dos direitos fundamentais.⁹⁷

    A isonomia jurídica está baseada na igualdade perante a lei, que é um corolário do governo de leis, em vez do governo de homens: todos são iguais, com base na lei, sendo titulares de liberdades, poderes, obrigações e proibições dispostos de forma universal.⁹⁸ Assim, a igualdade possui duas dimensões: a igualdade nos direitos e a igualdade nos deveres.⁹⁹ A igualdade nos direitos está prevista no art. 1.º da Declaração dos Direitos do Homem e dos Cidadãos, de 1789, a qual preceitua: Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum. Tal definição também consta do art. 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização Mundial das Nações Unidas (1948), a qual dispõe: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão  e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.  A igualdade nos deveres impõe as mesmas proibições previstas nas leis (penais, tributárias etc.).

    O papel dos direitos fundamentais como direitos dos mais fracos visa proteger o indivíduo contra seu ambiente cultural, social ou mesmo familiar (v.g., a mulher contra o pai, o padrasto ou o marido; as crianças e adolescentes contra seus pais ou responsáveis; qualquer pessoa contra as práticas opressivas impostas pela sua cultura, como a prática da clitoridectomia¹⁰⁰ pelos Talibãs ou a justificação do homicídio por causa da honra ferida etc.). Com efeito, nenhuma grave lesão aos direitos fundamentais dos seres humanos mais vulneráveis pode ser justificada pela cultura dominante.¹⁰¹

    Outros tantos exemplos poderiam ser mencionados para contextualizar a afirmação histórica dos direitos humanos e fundamentais. Fiquemos apenas com mais um: a discriminação racial.

    De acordo com a Síntese dos Indicadores Sociais 2007 – Uma análise das condições de vida da população brasileira, divulgada com base nos dados da pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2006, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de negros ou pardos que estão entre os 14,4 milhões de analfabetos é de 10 milhões, o que representa 69,5% do total. Os dados revelam, ainda, que os brancos ganham, em média, 40% a mais que os negros ou pardos, com a mesma faixa de escolaridade. O levantamento apontou também que os negros ou pardos são a maioria entre os pobres, sendo que entre os 10% mais pobres da população contam com 73% deles, enquanto, entre o 1% mais rico, são somente 12%. Por outro lado, em 2006, os brancos eram 26,1% dos mais pobres e 86% na classe mais favorecida.

    O Censo de 2010 destacou a persistência de diferenças na distribuição de renda dos grupos raciais. O IBGE apontou que os rendimentos médios dos brancos (R$ 1.538) e amarelos (R$ 1.574) se aproximaram do dobro do valor relativo aos grupos de pretos (R$ 834), pardos (R$ 845) ou indígenas (R$ 735).

    A exclusão social é escancarada no fenômeno do genocídio da juventude negra. No período de 2002 a 2011, a participação de jovens negros no total de homicídios no Brasil saltou de 63% para 76,9%, enquanto que a participação de jovens brancos diminuiu de 36,7% para 22,8%. Os números mostram, ainda, que a vitimização dos jovens negros, no mesmo período, subiu de 79,9 para 168,6. Portanto, para cada jovem branco assassinado, há 2,7 jovens negros vítimas de homicídio.

    A marginalização de negros e pardos começa pelo acesso à educação. Conquanto muito ainda deva ser feito, os mesmos dados revelam que, em 2006, na faixa etária entre 18 e 24 anos, 56% dos estudantes eram brancos, contra 22% de negros, o que, apesar do enorme déficit, já representa um avanço em relação à última década analisada (1996), quando, nesse mesmo grupo, 78% eram de cor branca, 3,3% de cor preta, e 16,5% pardos.

    A discriminação racial contra os negros é injusta, não porque as pessoas não podem escolher a sua raça, mas porque essa discriminação expressa preconceito.¹⁰²

    Por isso, o Preâmbulo da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial assevera que qualquer doutrina de superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, inexistindo justificativa para a discriminação racial, em teoria ou prática, em lugar nenhum. Já o referido art. 1.º desta Convenção conceitua a discriminação racial como "qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência

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