P.S. Ainda Existe Amor em São Paulo
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P.S. Ainda Existe Amor em São Paulo - Vitória Cristina
Capítulo I
O sol está baixo no
céu, colorindo o horizonte em tons de rosa e laranja que se misturam a vastidão azul do mar, criando um cenário digno de uma tela em aquarela ou um selo de cartão postal. A areia ainda conserva o calor da tarde que aos poucos cede a vez para uma brisa manhosa.
Mesmo em época de baixa temporada, a praia tem banhistas suficientes para render lucro aos quiosques beira-mar. Guarujá, desdenha do outono, prometendo a melhor diversão de um fim de feriado de Páscoa.
Algumas famílias com crianças estão acenando para que os pequenos deixem a água e se enrolem nas toalhas secas que os aguardam. A visão me traz boas lembranças da infância de quando Simone — ou mamãe — era uma mulher ativa que gostava de mar tal como um peixe.
Mais ao extremo da costa é possível se deparar com as expressões sorridentes de um grupo de adolescentes agitados que ensaiam acender uma pequena fogueira. Tem um quê de magia em reunir os amigos em volta do crepitar da fogo, ao som de violão e o movimento hipnotizante do ir e vir da maré.
Digito um SMS apressado para Márcio:
Luau no seu aniversário. Tenho certeza que a Mi já teve alguma ideia melhor, mas você pode convencer ela a topar.
Abs, idiota apaixonado
Conheci Márcio no primeiro dia de aula do ensino médio. A família dele é emigrante da Venezuela, e por tendência — como um imã magnético — os dois excluídos se juntaram e viraram melhores amigos. É incrível como uma vida mediana tem um glow up da noite para o dia quando se tem alguém para comparilhar as piadas sem graça.
O relógio do celular aponta seis da tarde, e calculo que tenho tempo para um mergulho. Á essa altura do dia, a temperatura da água já reduziu bruscamente, como se o cosmo tivesse desligado os aquecedores.
O impacto do meu corpo com o mar cria ondulações, e balanço as pernas para emergir. Em um gesto automático coloco as mãos na cabeça para afastar o cabelo comprido e demoro alguns segundos para me familiarizar com a sensação áspera da cabeça recentemente raspada.
Imagino que se o espírito humano faça alusão a um elemento da natureza, o meu é a terra. Firme e constante. O oposto da água que é instável, e por isso exerce uma atração sobre mim.
Estou pronto para ir embora. O céu escureceu e está pontilhado de estrelas e constelações que não são visíveis na cidade.
O caminho da van até o metrô parece à despedida de um refúgio de paz, mas esse é o ponto chave de fugir da realidade: uma hora é preciso voltar.
Compro um bilhete, entro no vagão e me apoio na porta. Passam duas estações e o número de pessoas diminui destacando os passageiros restantes. Sento-me no assento mais próximo e fecho os olhos pensando em meditar até a estação com acesso ao ônibus com destino a minha cidade.
Sinto um cutucão na costela e meu tempo de silêncio não dura muito quando a garota do meu lado desata a movimentar os lábios:
— Sua mochila caiu no chão e o zíper está aberto. Você estava dormindo? Te acordei? O cutucão foi muito forte? — Ela emenda uma palavra na outra e o conteúdo se embaralha no meu cérebro. — Tá tudo bem com você?
Os olhos são de um tom claro de castanhos e ao mesmo tempo em que seu olhar é doce e preocupado tem um toque de dureza como se ela cogitasse me bater caso eu demorasse demais para responder a pergunta.
— Você pode repetir? E mais devagar, por favor. — Peço.
— Sua mochila está aberta. — Ela diz alongando cada sílaba e dessa vez é fácil ler as palavras.
Fecho o zíper da mochila e por pouco não perco um dos meus livros favoritos que estava metade para fora.
— Obrigado. — Digo. — Seria muito estressante tentar encontrar a mochila nos achados e perdidos da estação.
Ela sorri com o canto da boca e não parece disposta a prolongar a conversa. Pluga fones roxos no celular e mesmo sem ter certeza imagino que o som vaza dos ouvidos.
Desde criança tenho um tique de morder a parte interna da bochecha em situações de estresse e percebo o ato quando minha boca fica quente e com o gosto da gota de sangue.
Sociabilidade não é meu ponto forte, mas odeio a sensação de outras pessoas me achando estranho ou antipático. DEZ MINUTOS — minha mente grita. Tudo o que preciso são de dez minutos diários de coragem insana. Sem pensar nas chances de erro ou risco de parecer idiota.
Cutuco a menina no mesmo ponto que ela usou para chamar minha atenção. Dá para ver que ela abaixa o volume da música, mas não tira os fones.
— Desculpa atrapalhar. — Falo indicando o aparelho celular. — Não queria parecer rude por ter te pedido para repetir e falar mais devagar. — Percebo que ela vai dizer algo como sem problemas
, mas continuo falando. — Também não quis ser indelicado em olhar para sua boca enquanto falava. — A essa altura ela tirou os fones e tenho sua total atenção. — Sou portador de deficiência auditiva e me comunico através da leitura labial.
Com uma sobrancelha arqueada, ela rebate:
— Mas você fala. — É uma afirmação que soa como uma pergunta.
Interiormente reviro os olhos porque não é primeira vez — e infelizmente duvido que a última — que ouço algo do tipo.
— Surdez e mudez são deficiências diferentes. Não significa que por ter uma necessariamente vai ter a outra.
— Desculpa. — Encolhe os ombros para demonstrar sinceridade.
— Normal. A maioria das pessoas comete esse tipo de equívoco. Não é como se fosse um assunto amplamente discutido.
Ela assente.
— Você sabe falar libras? Conta como um segundo idioma, certo?
— Na verdade só sei o básico. Consigo falar oralmente…
— … E ler os lábios. — Fico um pouco envergonhado quando ela completa.
— É, isso também. — Murmuro.
— Agora é minha vez de correr o risco de ser indelicada: como é ser surdo? Tipo você escuta um zumbido ou é apenas som nenhum?
Tenho vontade de rir, mas não faço isso porque ela está séria e gosto do fato de as perguntas não soarem como ofensa porque ela diz tudo de forma leve.
— Depende do grau de perda da audição. Para mim é a falta total de som.
Antes que ela torne a falar o veículo desacelera e o vermelho no painel pisca em cima do nome da estação Armênia
.
— É aqui que eu paro. — Levanto.
— Anota meu número. Rápido!
Graça aos deuses o celular está fácil de pegar no bolso da bermuda. Ela dita uma sequência de nove números que digito enquanto tento não perder a leitura do número seguinte.
— A propósito meu nome é Vênus. — Ela fala um segundo depois de eu ter saído do vagão, e se não estivesse atento aos seus lábios teria perdido o surgimento de um sorriso amplo que realça a separação dos dentes da frente.
— E meu nome é Júlio. — Grito em resposta, mas as portas já fecharam e ela não deve ter escutado.
A luz da varanda está acesa quando chego em casa. Moro com a minha mãe na região de Guarulhos e da janela do quarto dá para ver um avião decolando da pista. Me enfio debaixo do edredom e adormeço rápido sem nem lembrar do trabalho de história que expira o prazo amanhã.
Capítulo II
Terça-feira foi um dia atípico.
Dormi no primeiro tempo da aula de matemática e demorei o dobro do tempo costume para responder a prova de biologia.
Márcio, empertigado na carteira ao lado tenta olhar por cima da minha prova. Tentei oferecer aulas particulares na matéria, mas uma semana depois percebi que meu amigo simplesmente não é do tipo bom aluno. As notas são suficientes para não repetir o ano e os pais não pegam no pé porque sabem que ele é ótimo nas atividades extracurriculares como a marcenaria — que é a principal fonte de sustento da família. Quando a professora não está olhando, mudo a folha de posição, afastando para ponta da mesa, onde Márcio tem uma visão geral das respostas.
O sinal toca cinco minutos antes do previsto e ninguém reclama. O intervalo dura quinze minutos e temos a opção de ficar no pátio ao ar livre, congelando com o vento matutino, ou no canto do refeitório com o grupo de competições malucas. Hoje é dia de Sudoku. Ganha quem completar mais jogos em cinco minutos. Márcio tenta jogar, mas começa com desvantagem errando um dos números do centro e por consequência repetindo outros números na mesma fileira.
Ele vira de frente para mim de modo que eu consiga fazer a leitura labial.
— Eu e a Mi, discutimos ontem à noite. — Não pergunto o porquê, mas ele me conta. — Ela acha que meus pais não gostam dela pela forma como a gente se conheceu. Mas eu juro que é o pai dela que quase teve um infarto quando eu expliquei o que era Facebook.
Também fiquei surpreso quando meu amigo contou que ia sair com uma garota que conheceu em uma rede social, mas os dois estão juntos há quatro meses e por mais que não admitam que estejam sérios sei que Márcio a chama de namorada
quando os primos e irmãos mais velhos estão por perto.
— E o que você pensa em fazer para resolver o problema? — Questiono.
— Não sei, cara. É por isso que estou contando para você me dar uma luz.
A minha experiência com o sexo feminino é limitada. Já fiquei com algumas garotas, mas os relacionamentos não tiveram um grande peso, e nunca tive que fazer algo para consertar uma briga. Lembro-me de que quando meu pai estava vivo, após uma discussão sempre voltava para casa com um buquê de tulipas brancas que simboliza o pedido de perdão.
— Você pode comprar flores. Acho que toda mulher gosta de flores.
Ele parece refletir e concordar com a ideia.
— Quanto custa um buquê?
— Cara, eu não faço ideia de quanto isso custa.
— Saco. — Fala emburrado. — Tem uma floricultura virando a esquina da rua do mercado. Vou passar lá depois da aula. Vem comigo?
— Para quê?
— Como para quê
? Preciso de ajuda para escolher as flores certas.
— Quer que eu te ajude a escrever um cartão falando o quanto você a ama também? — Desdenho.
Ele fica emburrado.
— Você só está assim porque eu tenho alguém para quem fazer isso e você não tem coragem nem de mandar mensagem para a garota do metrô.
Sabia que não era boa ideia contar sobre Vênus, mas não é todo dia que tenho uma novidade tão bonita para contar.
— Eu não sou medroso, é só que a gente só conversou por dez minutos e talvez ela não queira falar comigo de novo.
Márcio me dá um soco no ombro que era para ser leve, mas machuca um pouco.
— Ela te deu o número do celular. Nenhuma garota faz isso se não quer que você a chame.
Uma parte de mim fica feliz em ouvir isso.
— Você está é com medo. Medo de uma garota. — Ele continua provocando.
— Posso mandar uma mensagem para ela agora, mas nesse caso, em vez de flores você tem que fazer mais pela Mi.
— Tipo o quê? — Ele não acredita que vou cumprir minha parte do trato, e por isso está disposto a aceitar qualquer coisa, mas não pretendo pegar pesado.
— Encomendar alianças de compromisso. — Digo.
— Não posso fazer isso. — Nega. — É muito delicado para apostar. Eu tenho que ter certeza antes.
Reviro os olhos,