Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Como viver no limite
Como viver no limite
Como viver no limite
E-book350 páginas4 horas

Como viver no limite

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

As mulheres da família de Cayenne têm um longo histórico de morrerem jovens.

Cayenne mal se lembra da mãe, que morreu de câncer de mama quando tinha quatro anos. Certa de que terá o mesmo destino, Cayenne acredita que deve aproveitar a vida enquanto pode, e isso vai desde pular de penhascos com o namorado até simplesmente fazer piadas para irritar a irmã mais nova.
Quando as duas irmãs recebem uma série de mensagens de vídeo e presentes que a mãe deixou para elas antes de morrer, Cayenne não tem certeza se quer recebê-los. Por que desenterrar o passado? Ela superou a morte da mãe, e sua tia Tee foi quem de fato a criou. Mas um dia, Tee testa positivo para uma mutação do gene BRCA — o mesmo que condenou a mãe de Cayenne — e decide fazer uma mastectomia eletiva para reduzir o risco de câncer. Enquanto ajuda a tia a se preparar para a cirurgia, Cayenne se vê atraída pelas mensagens reflexivas de sua mãe sobre amor, perda e perseverança. Pela primeira vez, a garota se questiona sobre feminilidade, família e o que significa viver a vida ao máximo, mesmo quando a morte está escrita em seu DNA.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de mai. de 2024
ISBN9786553930377
Como viver no limite

Relacionado a Como viver no limite

Ebooks relacionados

Juvenil para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Como viver no limite

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Como viver no limite - Sarah Lynn Scheerger

    1

    Há uma maldição sobre as mulheres da minha família. Nós morremos jovens.

    Nas últimas duas gerações, nenhuma mulher da família da minha mãe passou dos trinta e sete anos. Tia Tee ainda está viva e bem, e os médicos dizem que ela é uma mulher de trinta e dois anos perfeitamente saudável, mas duvido que ela passe incólume pela maldição da família Silk.

    Assim como duvido que isso aconteça comigo.

    O que significa que quase metade da minha vida acabou.

    Pretendo aproveitá-la.

    ***

    Sinto as vibrações em meus dentes. Estou com os pés apoiados sobre os trilhos do trem, ansiosa pelo que está por vir. Meu cérebro registra os sons das rodas girando claque-claque como um ruído branco, estranhamente reconfortante, como os sons das ondas do mar ou de chuva forte.

    Enfrentar trens assusta as pessoas. Elas acham que sou suicida ou estou em uma viagem psicodélica. Não, eu não tenho um desejo de morte. Mas as pessoas não entendem, e é uma dor real tentar explicar isso. Então agora eu faço isso sozinha. Só eu e o trem. Às vezes, dou nome às locomotivas para ter uma companhia. Esta, batizei de Betty.

    O trilho abraça uma curva de montanha bem perto da praia. Este é o meu lugar. Se fico na curva à sombra da montanha, o maquinista não consegue me ver quando o trem se aproxima e não pisa no freio.

    Whir-whir-whir-whir.

    Imagino a Morte estendendo sua mão ossuda. Eu a aceito, colocando-me voluntariamente em suas mãos. Sei que são as vibrações do trem que sinto através dos pés, mas imagino a Morte estremecendo de ansiedade.

    Whir-whir-whir-whir.

    Entendo por que isso pode parecer preocupante — uma garota esperando para desviar de um trem de trocentas toneladas que está se movendo a oitenta e poucos quilômetros por hora, tudo isso enquanto imagina uma interação com a própria Morte. Mas juro que estou perfeitamente lúcida. Acontece que tenho uma imaginação hiperativa e um instinto de autopreservação subdesenvolvido.

    Whir-whir-whir-whir.

    Meu Deus, a expectativa é intensa. As vibrações e o barulho de Betty se intensificam à medida que ela se aproxima da curva. Abro bem os braços, deixando o vento passar pelo meu cabelo. Sei como cronometrar. Sou capaz de fazer isso pela sensação, pelo som, pela intuição. Para o tipo certo de onda de adrenalina, o trem precisa se aproximar o suficiente. Fecho os olhos e, sem poder enxergar, meus outros sentidos entram em ação. O vento e eu somos uma coisa só.

    Em momentos assim, eu me sinto viva. Cada célula do meu corpo está alerta, os pelos dos braços se arrepiam, e meu cérebro está inundado de endorfinas. Minhas entranhas vibram de expectativa, como se eu estivesse colhendo o mel de uma colmeia de abelhas. Meu coração bate tão forte que posso senti-lo pulsar nas têmporas.

    Whir-whir-whir-whir.

    Meu contato com a realidade se afrouxa, e posso visualizar a Morte, posso ouvir o que ela me diria se pudesse falar. Seu senso de humor é meio estranho. Não posso culpá-la. Olha o que ela faz para viver.

    Você gosta de bolo de carne?

    Não exatamente.

    Então, qual é a sua com essas tentativas incessantes de se transformar em carne moída?

    Ela é traiçoeira, sempre ansiosa para me confundir, para me distrair, sabendo que um atraso de alguns segundos é tudo de que precisa para me devorar.

    Ela estreita os olhos. Se você calcular o tempo errado, tudo o que encontrarão serão seus dentes, espalhados na areia. O impacto vai dizimá-la.

    Bela imagem, digo. Mas pare de me distrair. Não vou deixar que ela dite meu destino. Com ou sem maldição, no momento sou eu que estou no controle.

    Sinto o trem se aproximando e dobro as pernas. Como sempre, meu instinto é pular cedo demais. Meus órgãos querem desesperadamente fugir através da pele, mas eu me contenho.

    Pelo tanto que o coração está batendo, juro que ele para tão de repente que parece que meu cérebro está enviando um comando, pisando no freio. Interromper batimentos cardíacos. Bloquear fluxo sanguíneo para as células. Exatamente como programado, como mágica, o medo me suga, me dizendo que está quase na hora.

    O claque-claque da Betty está tão alto que mal consigo pensar. Ainda não. Ainda não. Ainda não… Agora!

    Salto. Quando faço isso, o trem passa voando, e a força do vento me joga para frente com tanta força, que perco o fôlego. Rolo na areia até cair de costas, olhando para o céu. Inicialmente, meu corpo fica em choque, como sempre. A colmeia de abelhas faz uma revoada dentro de mim, batendo em órgãos e umas nas outras, um caos total. Talvez desta vez eu tenha me posicionado um pouco perto demais, e há uma possibilidade clara de que eu não esteja respirando.

    A Morte suspira, girando preguiçosamente como se estivesse me entretendo com seu próprio minitornado. Quando vai se cansar desse jogo ridículo de gato e rato?

    Não antes do fim. Você sabe que todo mundo torce pelo rato.

    Talvez. Mas o gato sempre vence. A Morte balança a cabeça com uma expressão desamparada, então se desintegra em nada.

    Bum! Meu coração começa a bater de novo, cada batida encostando na seguinte, lutando pelo primeiro lugar na fila. Faço um esforço consciente para inspirar. No começo, a respiração retém muito pouco oxigênio, mas gradualmente o ar viaja pelo sangue até os órgãos, acalmando as abelhas em minhas entranhas.

    Passo as mãos cuidadosamente pelos braços, o rosto, as pernas, verificando se há partes faltando ou sangue. Perdi a camada superior de pele na parte inferior dos dois braços. Tenho areia na boca e nas dobras dos olhos, mas não me importo. Enganei a Morte mais uma vez. Nada faz com que eu me sinta mais viva.

    2

    Minha irmã mais nova, Saffron, enfia a cabeça pela porta do nosso banheiro compartilhado, onde estou de pé, sem blusa, desinfetando os braços ensanguentados.

    Ahn, privacidade?, lembro a ela. A ardência dos lenços umedecidos com álcool está me deixando irritada. Há mais sangue do que pensei que haveria. Os arranhões na parte inferior do braço esquerdo lembram vagamente o Havaí. "Este é um banheiro, sabe."

    Saffron balança a cabeça fazendo cara de nojo enquanto considero mencionar a infinidade de coisas mais nojentas que eu poderia estar fazendo ali. Ela entra e fecha parcialmente a porta atrás de si para que possa apontar para a pequena fechadura. Cayenne, gostaria de apresentar a você uma fechadura de banheiro. Fechadura, conheça minha irmã, Cayenne. De alguma forma, ela chegou ao último ano do Ensino Médio sem conhecer você.

    Muito engraçada, você. Olho para meus braços, consequência do meu enfrentamento do trem. Não sou fresca, mas gosto de manter minhas blusas sem manchas de sangue. Você tem um top preto de manga comprida que possa me emprestar? De preferência que valorize meus peitos?

    Saff ignora a referência aos meus seios. Como assim? Você não quer exibir sua última façanha para nossos convidados do jantar? O que foi desta vez, Cay? Ela não espera que eu responda. Diga a Axel que, se ele trouxer você para casa em um caixão, ele será o próximo. Eu mesma me encarregarei disso.

    Abano a mão diante do meu braço, tentando secá-lo. O Axel nem estava comigo. Por que você o culpa por tudo?

    Talvez porque você não fizesse nenhuma dessas coisas antes de começar a namorar com ele. Isso é verdade. E Axel estava comigo na primeira vez que enfrentei um trem, mas, sinceramente, acho que ele ficou apavorado. Não quis fazer de novo, dizendo que o trem poderia descarrilhar se o maquinista tentasse pisar no freio. Agora, enfrentar trens é uma atividade solo.

    Ainda assim, preciso dar crédito a Axel por despertar essa ideia de que posso olhar a Morte de frente e desafiá-la. De que posso assumir o controle da maldição da minha família. De que ela não precisa me definir, de que eu posso defini-la. Esse tipo de poder é viciante. Sem mencionar a maravilhosa adrenalina decorrente disso.

    Saffron desaparece por um momento e volta para me entregar um top escuro. Esta discussão não acabou. Apenas cubra-se e pare de exibir seus ativos.

    Pego a blusa enquanto dou uma olhada para mim mesma no espelho. Não posso levar todo o crédito. Estou usando meu sutiã favorito.

    Você é o máximo… eu não mereço você.

    Ela deve concordar, porque demonstra seu desdém abertamente. Decido que ela não fica bem assim.

    ***

    Tia Tee está perseguindo as Minions (também conhecidas como minhas primas de quatro anos) em círculos, tentando prender os cabelos delas com laços. Ela aparentemente esqueceu a regra de dividir para conquistar nas disputas entre as gêmeas.

    Agarro o braço de Missy quando ela passa. Espere aí, Florzinha. Eu me ajoelho ao lado dela e giro seus ombros para que ela fique de frente para mim.

    Meu nome não é Florzinha, ela diz, dando aquela risadinha que quer insinuar que sou uma boba.

    Recebi ordens de sua fada madrinha, sussurro no ouvido dela. Tee capturou Maggie pelo sofá e está tentando colocar uma presilha com um laço nela.

    Os olhos de Missy se arregalam e brilham. Ela adora fazer de conta. O que ela disse? Está tentando sussurrar, mas não leva muito jeito para isso. Todo mundo na sala pode ouvi-la.

    Ela me pediu para decorar seu cabelo para nossa celebração real.

    Ela tem um presente para mim? Missy sabe entrar na brincadeira, e sou obrigada a amá-la por isso. Ela toca o nariz no meu, ficando tão perto que seus olhos congelam em um só, o equivalente óptico de uma monocelha. Suspeito de que meu ciclope Minion tenha provado a cobertura do bolo daquela noite. A doçura açucarada no hálito e a língua roxa a traem.

    Hmm… deixe-me conversar com a srta. fada Rosetta. Subo no braço do sofá e finjo falar com uma fada invisível. Rosetta é uma fada extraordinariamente alta, explico a Missy. Fingindo ouvir, assinto com a cabeça para o ar. Então, pulo para baixo e sussurro no ouvido de Missy. Chiclete. Isso é tudo o que ela consegue tão em cima da hora.

    Missy envolve os braços suados em volta da minha cintura e fica assim por tempo suficiente para que eu prenda seu longo cabelo para trás. Sempre oportunista, ela se vira e estende a mão em expectativa. Enfio a mão no bolso em busca de um chiclete. Por sorte, crianças de quatro anos não se importam com chicletes ligeiramente quentes e amassados. Ela o agarra e corre até Maggie para compartilhar. A maneira como as Minions se amam derrete até meu coração cansado.

    Tee fala obrigada baixinho para mim. Aceno em resposta. Acontece o seguinte: eu meio que devo a ela. Tee herdou Saff e a mim quando tinha mais ou menos a minha idade, então somos responsáveis por sequestrar a vida dela. Hoje, fazemos o máximo possível para retribuir.

    A campainha toca, e Tee corre para atender. Logo depois, ouço a voz de Nonna, cheia de seu entusiasmo habitual: Não está uma noite linda? A maneira perfeita de terminar a semana!.

    Nonna e Papa Channels são os pais do tio Luke. Saff e eu os chamamos de Chowders,[1] porque, quando éramos pequenas, confundíamos o nome deles com as sopas que Nonna trazia para praticamente todo tipo de reunião de família. Eles aparecem para jantar uma vez por mês, embora eu possa jurar que tenham estado aqui na última sexta-feira.

    Em parte para evitar a Nonna, que é querida, mas meio que demais, vou para a cozinha e começo a cortar pimentões para o famoso chili de Luke. Saff já está trabalhando duro na tábua de cortar, mutilando vegetais com precisão.

    Sinto muito por essa cenoura. Faço uma pausa no meu próprio corte e honro o vegetal com um momento de silêncio.

    Sim, estou canalizando minha raiva. Estou fingindo que ela é o seu rosto. O sarcasmo de Saff mostra que ela está a caminho de me perdoar. Ela nunca consegue ficar genuinamente brava por muito tempo, não importa o tamanho de seu esforço.

    Enquanto estou elaborando a resposta atrevida perfeita, ainda que cativante, Nonna me interrompe com um abraço perfumado por trás. Cayenne! Cada dia mais linda.

    Fico um pouco tensa. Nunca sei o que dizer para Nonna. Tenho a nítida impressão de que ela sente pena de mim, já que não tenho avós. Isso sempre me fez sentir um pouco estranha.

    Luke levanta a sobrancelha esquerda, como se dissesse seja educada. Tento levantar minha sobrancelha de volta, mas tenho certeza de que ambas sobem, como sempre, porque o sorriso de Luke rompe seu cavanhaque. Eu não me importo com Luke. Na maioria das vezes. Ele tem regras saindo pelas orelhas, mas ama a tia Tee e sempre faz com que Saff e eu nos sintamos parte de sua família. Ele merece crédito por isso. Além do mais, o homem faz um pimentão vegetariano incrível.

    Largo a faca e me viro para cumprimentar Nonna e sua comitiva. Nonna, Papa e Ryan Channels estão todos em nossa cozinha. Papa traz um enorme pão de alho, e Ryan carrega uma bandeja de frutas. Essa turma vem em todos os eventos esportivos, celebrações e eventos escolares, não importa quão pequenos sejam. Eu não acharia ruim deixá-los de fora de algumas de nossas reuniões, mas Luke é totalmente ligado nessa coisa de família com F maiúsculo, e Tee é totalmente ligada em Luke, então pronto.

    O irmão mais velho de Luke, que carinhosamente (pelas costas dele) chamamos de Ryan-o-Rejeitado, está conectado de forma permanente aos Chowders. Aparentemente, nunca cortou o cordão. Algumas vezes, Luke e Tee ouviram Saff e eu fazendo brincadeiras sobre Ryan-o-Rejeitado e ficaram muito bravos. Sei que é duro chamá-lo de perdedor, mas o cara tem tipo quarenta e três anos, mora com os pais, é caseiro profissional e praticamente toma banho de colônia. Ele tem o nariz torto de uma fratura feia de anos atrás. Suspeito que tenha se divertido demais na juventude e esteja pagando por isso agora.

    Todos comemos fora, à mesa no quintal, já que o sul da Califórnia está tendo um fevereiro de temperaturas muito agradáveis. Ajudo as Minions a fazerem varinhas mágicas com canudos e mostro a elas como lançar feitiços secretos em todos os membros da família, principalmente para que eu tenha uma desculpa para evitar interagir com os adultos. Luke pode falar sobre seu trabalho de gerente de propriedades por horas seguidas, com os pais atentos a cada palavra, porque a única outra emoção na vida deles envolve a recente expansão de Ryan de seu pacote de caseiro para incluir lavagem de janelas e tosa de animais de estimação.

    Prometo a mim mesma que, mesmo sendo oficialmente adulta há seis meses, nunca serei tão chata quanto o resto deles.

    Depois de jantarmos e lançarmos muitos feitiços envolvendo tempestades de jujubas, Tee manda Ryan buscar o bolo coberto de glacê roxo para a sobremesa.

    Meus braços arranhados doem. Devoro uma fatia de bolo antes de sair discretamente para aplicar um pouco mais de antisséptico. No caminho para o banheiro, vejo um envelope apoiado no balcão da cozinha endereçado a Saff e a mim. Como eu havia deixado aquilo passar?

    Não reconheço a caligrafia. Hmm. Um cartão de Dia dos Namorados antecipado?

    Abro cuidadosamente a aba do envelope e tiro um cartão simples de dentro dele. É um cartão branco, com letras cursivas prateadas na frente. Um presente para vocês duas…

    Queridas meninas,

    Hoje embrulho um presente que nunca verei vocês abrirem. Pedi para minha melhor amiga, Alicia, guardá-lo até a hora certa. Vão até a casa dela para abri-lo o mais rápido possível. Espero que gostem deste presente tanto quanto gostei de prepará-lo para vocês.

    Com um milhão de abraços e beijos,

    Mamãe

    Minhas mãos estão tremendo. Aquela fatia grossa de bolo sobe até a metade da garganta e fica lá, como um caroço duro.

    Minha mãe está morta há catorze anos.


    [1] Tipo de sopa de peixe ou de mariscos feita com leite, tradicional nos Estados Unidos. [N. T.]

    3

    Ainda estou em choque. Saffron tira os chinelos no instante em que entra na Gertrude, meu velho Honda Civic.

    Ah, qual é. Você sabe que mães mortas deixam bilhetes de amor o tempo todo. É algo que se faz. Não consigo conter o sarcasmo. Os Chowders foram embora há uma hora, mas o bolo duro ainda está entalado na minha garganta. Aprendi a engolir a tristeza há muito tempo, só que, de alguma forma, ela sempre fica presa na minha garganta. Pelo menos, desta vez, tem gosto de açúcar de confeiteiro.

    Considerei brevemente amassar o bilhete e fingir que nunca o tinha visto. Mas minha mãe havia tocado naquele papel uma vez, então, eu não podia simplesmente jogá-lo fora. Quando voltei para o pátio, Tee viu o que eu estava segurando e imediatamente começou a explicar.

    Eu ia dar o cartão para vocês nesta noite. O aniversário da sua mãe pareceu um bom momento para isso…

    E foi aí que me lembrei: é 2 de fevereiro. Aniversário da mamãe.

    Os Chowders não ficaram muito tempo depois disso. Assim que resistimos aos abraços de despedida, Tee prometeu dar a Saff e a mim tempo para processar a mensagem de nossa mãe.

    Sei que eu deveria estar comovida, mas, honestamente, sinto algo mais complicado. Um pavor pesado se instalou em meu peito e está transformando tudo abaixo dele em concreto. Fazendo o máximo de esforço para me livrar dessa sensação, giro a chave na ignição e convenço Gertrude a sair da garagem.

    Coloque o cinto de segurança, por favor?, Saff dispara, alisando o cabelo para trás em um rabo de cavalo. Essa luz de advertência está aí por um motivo.

    Argh. Detesto como os cintos de segurança restringem meus movimentos. "Obrigada, Mamãe."

    Eeeee, silêncio. Porque essas palavras ferem a nós duas. Saffron puxa as mangas sobre o pulso e as mãos, como se estivesse com frio.

    Eu me sinto imediatamente arrependida. Desculpe. Isso não foi legal.

    Saffron olha pela janela em silêncio, mas, depois de um momento, ela se vira para mim. Se você não colocar o cinto de segurança logo, ela diz, com a voz tensa, eu vou sair no próximo sinal e voltar caminhando para casa. Quer fazer isso sozinha?

    Tá bem, tá bem, suspiro enquanto coloco o cinto. Mas, em retaliação, aumento tanto o volume da música, que posso sentir o baixo vibrando no volante.

    Passamos pelas casas de biscoitos, pelo shopping, e saímos em direção às fazendas. Entro em uma longa estrada de terra que fica atrás dos campos de morango. Alicia, Mark e o filho deles, Micah, vivem em uma fazenda de verdade, com vacas e galinhas. Ela não é grande o suficiente para vender produtos para vendedores locais, mas eles vivem principalmente do que cultivam.

    Não viemos aqui desde aquela vez que trouxemos as Minions para ordenhar a vaca. Isso foi há quase um ano?, digo.

    Por aí, responde Saff, concisa, claramente ainda irritada comigo.

    Abro o espelho do quebra-sol e me observo. Passei delineador nos olhos em casa, mas meu brilho labial merece uma segunda camada. Aplico e pressiono os lábios juntos para cobertura máxima.

    Saff, quer passar um pouco de brilho labial?

    Meus lábios estão bem sem o gloss, obrigada.

    Imagino que todas as irmãs se comparem. E, se vou comparar, Saffy é mais bonita e mais miúda, com olhos doces e enormes, mas não tem nenhuma noção de moda. Meu rosto é simples, mas rímel e batom fazem maravilhas, e eu sei como ajustar, fazer camadas e usar acessórios para aproveitar ao máximo o que tenho. Sempre que tento convencer Saff a se arrumar, ela rebate, dizendo que há toda uma indústria da beleza enriquecendo com as inseguranças das mulheres, e se recusa a fazer parte disso. Parece uma desculpa conveniente para ser preguiçosa, mas… enfim.

    Descemos do carro, com poeira girando em torno de nossos pés. Aposto que Saff está se arrependendo de ter escolhido os chinelos.

    Trégua? Estendo uma mão como se ela fosse uma criança. Podemos pelo menos fingir que gostamos uma da outra na frente de Alicia?

    Fechado. Ela aceita minha mão, e vamos juntas tocar a campainha.

    A porta da frente se abre. Meninas! Alicia abre os braços e nos abraça, fazendo o abraço duplo e nos obrigando a nos aproximar mais do que gostaríamos. Há uma suavidade no abraço de Alicia, que dá uma sensação maternal. Sinto o cheiro do xampu de Saffron e das tintas a óleo manchando a camisa de Alicia. Parece que faz uma eternidade desde que vi vocês duas pela última vez.

    Alicia Johnson era a melhor amiga da minha mãe. Elas sobreviveram ao Ensino Fundamental e ao Médio juntas, e depois frequentaram a mesma universidade. Até engravidaram com poucos meses de diferença uma da outra. Depois que mamãe morreu, Alicia se ofereceu para nos acolher, já que ela estava domiciliada e equipada para nos criar. Mas tia Tee disse que poderia fazer isso, que queria fazer isso, embora tivesse apenas dezenove anos na época e trabalhasse no FroYo Heaven por um salário mínimo. (Isso justifica meu vício em iogurte.) Não tenho certeza se ela se arrependeu de ter colocado sua vida em suspenso por nós, mas me lembro de ter sido deixada com Alicia para Tee poder passar alguns dias viajando com amigos. Mas isso foi antes de Luke. Ele certamente fez Tee se acomodar e, quando os dois se casaram, ela trabalhava meio período como gerente de caso para uma casa de repouso sem fins lucrativos. Não sei como ela faz isso, trabalhar com pessoas que estão morrendo e suas famílias o tempo todo, mas ela diz que retribuir é uma cura para ela.

    Então, tudo deu certo para nós, em termos de estabilidade. Agora, só visitamos Alicia uma ou duas vezes por ano. O que é meio bobo, pois ela mora na cidade ao lado da nossa. É um trajeto de no máximo dez minutos de carro. Além disso, ela sabe mais sobre a vida da mamãe do que qualquer outra pessoa. Como era doze anos mais velha do que tia Tee, mamãe estava na faculdade e não morava mais na casa dos meus avós quando Tee tinha seis anos. Por isso, Tee não sabe nenhuma história interessante sobre o passado da mamãe. Ou, se sabe, não conta.

    Eu adorava ouvir as histórias de Alicia sobre mamãe, mas meio que perdi o interesse quando estava no quinto ou sexto ano. Mas isso era antes. Agora é diferente. Mamãe não faz parte do nosso agora.

    É por isso que ir até ali parece uma bobagem: Qual é o sentido? Nenhum presente a tornará menos morta.

    Alicia nos conduz para dentro da casa. Ela é uma mistura intrigante de chique e caipira. Seu cabelo é todo curto e estiloso, complementado por grandes brincos de argola, e ela tem um físico fora de série por conta do dia a dia da fazenda, mas ela se veste como uma agricultora, não usa maquiagem e está quase sempre coberta de tinta.

    Atravessamos a porta da frente. Desculpem a bagunça, Alicia diz, não lamentando tanto quanto deveria. A bagunça dela exige mais do que um pedido de desculpas. Tipo compensação financeira. A bagunça dela seria capaz de deixar uma cicatriz para a vida toda. Ou o cheiro, acrescenta ela enquanto descemos o corredor, passando por pilhas de livros e revistas empoeirados.

    Aposto que vocês sentiram falta do aroma de fertilizantes e tintas a óleo, diz Micah, que está atrás do balcão da cozinha, cortando abacaxi em cubos. Ele está vestindo uma camiseta justa de voluntário do centro médico de Mesa. Os braços dele estão mais firmes, provavelmente por todo o trabalho que faz no quintal. Seus cabelos estão como na nossa infância: sem gel, apenas cachos soltos e revoltos. Sempre digo à mamãe que todos esses gases são os culpados pela minha nota de cálculo. Eles estão matando meus neurônios.

    Ah, tudo bem, simplesmente não vou respirar enquanto estiver aqui. Cubro minha boca. Preciso de todos os meus neurônios. Saffy, como você pode abrir mão de alguns, vá em frente, respire fundo.

    Para constar, diz Alicia, ele só tirou um B em cálculo, o resto é tudo A. Todos deveríamos ter muita sorte. Micah é um verdadeiro idiota, mas, como o conheço desde que nasceu, eu o tolero.

    Micah dá de ombros e sorri meio constrangido. Ele tem o que eu gosto de chamar de covinhas profundas. Quando dá um sorriso leve, elas são sutis. Mas, se

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1