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Lutar com a floresta: uma ecologia política do martírio em defesa da Amazônia
Lutar com a floresta: uma ecologia política do martírio em defesa da Amazônia
Lutar com a floresta: uma ecologia política do martírio em defesa da Amazônia
E-book330 páginas4 horas

Lutar com a floresta: uma ecologia política do martírio em defesa da Amazônia

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Sobre este e-book

O interior do Brasil tem sido objeto da cobiça de colonialistas internos e externos desde a Conquista. Ainda hoje, grileiros continuam a roubar terras na Amazônia, substituindo a floresta por gado e soja para exportação. Mas os povos indígenas e os posseiros resistem. E uma forma de resistência tem sido o combate à produção destrutiva por meio da instalação de reservas agroextrativistas, que reproduzem a vida através da extração duradoura da borracha ou da castanha-do-brasil, entre outras dádivas da natureza. Desde Chico Mendes, assassinado em 1988, há muitos exemplos de resistência popular contra a depredação da Amazônia. Maria e José Cláudio defenderam a floresta até a morte com verdadeira ousadia, sem ganância e com um altruísmo apaixonado pelos outros seres vivos. Este livro narra os fatos e explica os valores sociais e ecológicos em jogo no assassinato do casal — mais um dos muitos atentados que vitimam os verdadeiros ambientalistas: pobres, subalternos, indígenas, a vanguarda da preservação, os quais o trabalho de Felipe Milanez eleva a símbolo e exemplo.
— Joan Martínez-Alier
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de mai. de 2024
ISBN9786560080232
Lutar com a floresta: uma ecologia política do martírio em defesa da Amazônia

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    Lutar com a floresta - Felipe Milanez

    1 Luta e ousadia

    A luta de Maria e José Cláudio estava inserida no contexto dos movimentos camponeses do Pará, uma luta coletiva pela reforma agrária. A proposta de criação do PAE Praialta Piranheira remete a reuniões que aconteceram no início dos anos 1990 e se intensificaram depois do Massacre de Eldorado dos Carajás, reunindo o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR), a cooperativa Correntão, o Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (Cepasp), o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) [hoje, Conselho Nacional das Populações Extrativistas], a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar no Estado do Pará (Fetagri) e a CPT. A ideia de uma reforma agrária em áreas de castanhais para o uso de trabalhadores da floresta já estava presente no primeiro encontro do CNS, em 1985, mais especificamente no debate para a criação de uma reserva no chamado Polígono dos Castanhais (Allegretti, 2002).

    Houve uma ampla discussão sobre qual modalidade de assentamento seria mais adequada para proteger os castanhais e acolher as famílias agricultoras. O Incra havia recém-recategorizado os projetos de assentamentos extrativistas em uma nova modalidade, a agroextrativista. Eles foram criados em 1987, por meio da Portaria 627, de 30 de julho, a partir da reivindicação dos seringueiros, como uma alternativa aos projetos de assentamento dirigido (PAD), de 1980, que tinham o objetivo de instalar colonos sem-terra em lotes de cerca de cem hectares na Amazônia, para promover a reforma agrária-ecológica ou legalizar a situação fundiária de comunidades tradicionais. Eram uma alternativa às reservas extrativistas (Resex).

    A principal diferença entre essas modalidades reside nas instituições que as supervisionam: o Incra para os PAE, e, para as Resex, o órgão ambiental federal ou estadual (na época, o Ibama; hoje, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade [ICMBio], ligado ao Ministério do Meio Ambiente [MMA]). Essa diferença administrativa muda o foco e os objetivos das modalidades, já que os órgãos ambientais têm uma perspectiva mais conservacionista e de fiscalização, enquanto o Incra visa promover a ocupação e a regularização fundiária na Amazônia. Os PAE, assim, destinam-se à exploração de áreas dotadas de riquezas extrativas, através de atividades economicamente viáveis, socialmente justas e ecologicamente sustentáveis, a serem executada pelas populações que ocupem ou venham ocupar as mencionadas áreas (Portaria no 268, de 23 de outubro de 1996). Posteriormente, outras modalidades surgiram, tanto de assentamento como de desenvolvimento sustentável, em que não há parcelas individuais, ou de reservas ligadas aos órgãos ambientais. A portaria definia que o regime de ocupação seria de concessão de uso, em regime comunial, segundo a forma decidida pelas comunidades concessionárias — associativista, condominial ou cooperativista; para isso, seria necessário criar uma associação de moradores para decidir sobre a ocupação.

    Com amplo apoio nacional do movimento camponês e a participação de 77 agricultores extrativistas, em junho de 1997 foi fundada a Associação de Pequenos Produtores do Projeto Agroextrativista Praialta Piranheira (Apaep). José Cláudio foi eleito o primeiro presidente da associação, com a responsabilidade de liderar o primeiro assentamento dessa modalidade no país, criado em agosto daquele ano. O PAE Praialta Piranheira tinha 22 mil hectares, que deveriam servir ao uso de quase quatrocentas famílias. Um dos principais desafios, desde o início, era acolher migrantes em busca de terra que vinham de diferentes formações e territorialidades. Pesquisas realizadas pelas entidades que apoiaram a criação do projeto identificaram que a maioria dos moradores do PAE, bem como as famílias assentadas, acreditavam no agroextrativismo como uma possibilidade de desenvolvimento sustentável (Lumiar, 1999). Ele foi formado sobre seis fazendas, e sempre houve resistência e sabotagens, com permanente omissão do Incra na regularização fundiária, bem como pressão daqueles que tinham interesse em sabotar a proposta, como madeireiros donos de serrarias, fazendeiros, pecuaristas e carvoeiros, que fomentavam oposições internas. Até mesmo o prefeito de Nova Ipixuna à época, um grande fazendeiro, agiu ativamente para sabotar o projeto.

    Uma das atribuições da associação seria distribuir a ocupação e regularizar o uso dos recursos existentes, o que deveria ser feito por meio do plano de uso do assentamento. A associação deveria identificar a adequação de camponeses em busca de terra ao modelo, ajudar a distribuir o uso coletivo do espaço do PAE e zelar pela sua proteção, sendo a ponte com os aparelhos do Estado na fiscalização do uso dos recursos naturais.

    Quando o PAE foi criado — como vimos, em 1997 —, 36% de seu perímetro já era desmatado. Em 2014, ele possuía 54,04 quilômetros quadrados de floresta e apresentava 134,23 quilômetros quadrados de área desmatada, mais de 70% do total (Araújo et al., 2019). Por falta de implantação de políticas públicas, alguns assentados que participaram das mobilizações iniciais acabaram sendo levados a vender seus lotes. A chegada de novos ocupantes trouxe desafios para o desenvolvimento do agroextrativismo, bem como evidenciou o limite da prática extrativista em pequenos lotes individuais. Um estudo da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater)do Pará, realizado depois dos assassinatos de José Cláudio e Maria, identificou ocupantes do PAE vindos de onze estados, sendo a grande maioria (37,8%) do Maranhão.

    A pressão externa se intensificou ao longo dos anos, primeiro com fazendeiros e grileiros, depois com madeireiros e, em seguida, carvoeiros. Esses interesses externos agiam ativamente para sabotar o modelo agroextrativista. Tal é a lembrança relatada por um agricultor: Espalhavam mensagens contrárias, falavam das desvantagens, que iria ser controlado pelo governo, e que essa questão ambiental era uma necessidade dos países que não tinham mais mata, que a estavam impondo ao Brasil.

    A proposta do PAE pressupõe um compartilhamento de funções e responsabilidades entre a comunidade e o poder público, como uma parceria. Caberia aos moradores, através da Apaep, realizar a fiscalização e, quando as irregularidades fossem consideradas graves, informar os aparelhos do Estado. Cabia ainda à associação aprovar a entrada de novos assentados, tendo que verificar se o perfil dos pretendentes se encaixaria na proposta. Em um texto sem data (reproduzido à folha 383 do processo judicial relativo aos homicídios), Maria expunha seu desacordo com o Incra, que descumpria os princípios de compartilhamento de responsabilidade estabelecidos no estatuto de criação da Apaep. Além de descrever a destruição, ela criticava a compra e venda de lotes para outras classes (empresários), para empresários de carvoarias, e o pior, pessoas que são financiadores de carvão, concentração de terras, todas essas problemáticas acima citadas estão acontecendo. Maria escreveu que a informação da concentração de terras foi passada para um servidor do Incra, o senhor Celso Trajano Borges, e o mesmo não repassou para a Associação tal situação de retomada. Enquanto o crime de compra e venda ilegal beneficiava um certo fazendeiro José Ribamar, colocava na mira desse fazendeiro e de seus pistoleiros seis famílias que ocupavam os lotes de acordo com as normas da associação.

    Ao assumir a presidência da Apaep, José Cláudio já era um dos maiores interessados na ideia agroextrativista e, com Maria, assumiu a responsabilidade de liderar o desenvolvimento do projeto, mesmo diante dos desafios da regularização fundiária e da falta de apoio do Estado. Com a visibilidade e as responsabilidades, passaram a ser foco de violência. Assim relata José Cláudio:

    Eu era fora de movimento social. Eu não fazia parte de movimento social. Eu cuidava da minha vidinha, eu fazia minha roça, eu criava meu porco, eu vivia no meu cantinho. Em 1995, começou a discussão. Essa discussão já vem há mais tempo, desde os anos 1990 que já tem a discussão para a criação de um projeto aqui. Aí, ficava: Criava um projeto tradicional? Não… Vamos criar uma modalidade diferente. Aí, criaram um PAE, que é um projeto de assentamento extrativista. Aí, eu comecei a me envolver… Aqui tem um vizinho, o Zé Ribamar, e ele começou a me convidar para as reuniões… E eu: Ah, rapaz, eu não vou para essa reunião, não…. Mas aí, eu comecei a ir e comecei a me interessar pelo discurso dos outros. […] E aí, eu comecei a me interessar pelo papo de preservação, porque eu já era meio ambientalista. Mesmo sem saber, mas eu era, né? Porque eu vivia… Não estava desmatando, eu estava vivendo dos produtos da floresta. E aí… Eu sei que, mexe e vira, em 1997, criamos o projeto de assentamento e criamos uma associação aqui dentro, e me botaram como presidente dessa associação. Aí, devido ao que eu tinha aprendido já nas discussões e ao meu ideal, começaram [as ameaças]… Aí, foi o tempo também em que começaram a vir as indústrias madeireiras, que foram se instalando por aí. E aí, começou o ataque à floresta. E aí, começou o meu embate com eles. E aí, começou a perseguição. E aí, começou nego querer meu pescoço.

    Nesse processo de formação política e de luta, os assentados assumiram o protagonismo de seus destinos, do controle da força de trabalho, da produção de subsistência e da proteção da floresta. No papel de lideranças, José Cláudio e Maria começaram a lutar para desenvolver o PAE. Mas, muito além, dedicaram-se a promover o convívio sustentável com a floresta e a expandir a proposta política do agroextrativismo.

    Trajetória extrativista

    Castanhais são as grandes concentrações de árvores de castanha localizadas em áreas de terra firme. Castanha é, tecnicamente, a amêndoa da semente. As sementes se acoplam dentro do fruto, popularmente conhecido como ouriço. Ele é lenhoso, tem formato esférico e mede entre quinze e vinte centímetros. Cada ouriço contém dez a quinze sementes. As flores se abrem na transição do período da seca para a chuva, geralmente em outubro e novembro. São amarelas e brancas, e cobrem o chão embaixo da árvore como um tapete. São polinizadas pelo besouro mangangá e levam de doze a quinze meses para germinar e se desenvolver, até o período de chuvas do ano seguinte, entre dezembro e março, quando acontece a coleta. As árvores medem em média cinquenta metros de altura, podendo atingir até sessenta metros, dominando o dossel. É a excelsa. O nome Bertholletia excelsa foi dado em 1907 pelo naturalista alemão Alexander von Humboldt e por Aimé de Bonpland, em homenagem ao químico L. C. Berthollet.

    Do alto do lote onde vivem Laisa e José Gomes Sampaio (Zé Rondon), seu marido, é possível observar de maneira privilegiada o dossel da floresta da Reserva Isabel Ribeiro, como se chamava o lote de José Cláudio e Maria, atual Reserva Zé Cláudio e Maria. O que marca essa vista são as folhas das castanheiras, especialmente a predominância da Majestade, cuja copa é bastante larga, e de outras castanheiras ao lado dela, todas as árvores mais altas que dominam a paisagem. José Cláudio me contou que essa área era um paiol, o lugar onde os castanheiros cortavam os ouriços que haviam recolhido. Talvez essa seja uma das razões da grande concentração de castanheiras que hoje vivem ali — ele estimava haver 180 castanheiras no lote de 22 alqueires.

    Maria e José Cláudio eram identificados como extrativistas tradicionais entre os ocupantes do PAE, e demonstraram interesse nos temas ecológicos e ambientais desde as primeiras reuniões com os movimentos sociais. Na primeira, em 23 de fevereiro de 1997, foram a convite do STR, e não estavam certos se valia a pena se engajar. Já na terceira reunião, em junho daquele ano, quando foi criada a Apaep, José Cláudio foi eleito presidente. Maria recorda que, quando chegaram para viver na terra que seu marido tinha adquirido, nos anos 1980, tinham uma ideologia bem diferente dessa que temos hoje (Espírito Santo da Silva, 2004, p. 17). De acordo com ela, José Cláudio tinha o pensamento de criar gado; já eu não, quando vi a beleza das castanheiras, e uma mata cheia de recursos naturais, comecei a pensar em preservação. Eles recordavam que já eram meio ambientalista, mesmo sem saber.

    Filha de migrantes do Maranhão, Maria, assim como José Cláudio, relata ter tido um pai biológico e um pai adotivo (Espírito Santo da Silva, 2004). Ela nasceu em São João do Araguaia e passou a infância em um castanhal pelo qual passava o igarapé Ubá. Em 1985, a região foi palco do terror de pistoleiros liderados por Sebastião da Teresona, que promoveu um dos piores massacres registrados nesse período extremamente violento no campo, a chacina do Castanhal Ubá (CPT, 1986; Pereira, 2015). José Cláudio recordava esse período como o horror: Tudo era fazendeiro que mandava matar os posseiros, ou mandava matar sindicalista. Naquele tempo era um horror.

    O pai e a mãe de Maria viviam da coleta de castanha, e batalharam para comprar terra, o que alcançaram com a renda extra que tiveram em subempregos na cidade, quando se mudaram para Marabá.⁷ Como a área ficava longe de Marabá, Maria foi deixada na casa de uma família para seguir os estudos, período que ela recordava como atravessado por sofrimentos, assim como pelo sonho de ler e escrever (Espírito Santo da Silva, 2004). Essa mudança da floresta para a cidade marcou a vida de Maria. Na cidade, onde viveu até os quinze anos, ela trabalhou em casas de famílias, e sua mãe temia que virasse mulher solteira (Espírito Santo da Silva, 2004), o que constituiu um marcador de gênero e classe na sua vida. Casou-se, teve cinco filhos, sofreu violência na relação até conseguir o divórcio. Então, trabalhou em uma escola no distrito de Morada Nova, entre Marabá e Bom Jesus do Tocantins. Em 1986, nesse local, conheceu José Cláudio, quando era mesária da seção em que ele votava; os dois se apaixonaram e foram viver juntos.

    José Cláudio também cresceu e passou sua infância no contexto da economia da castanha. Descendia de migrantes do Maranhão (avô e pai adotivo), de família estabelecida no Pará (seu pai biológico) e de indígenas do povo Kayapó (sua bisavó materna). Seu pai adotivo foi coletor, produtor de farinha e comerciante, ocupando diferentes posições intermediárias no sistema extrativista da castanha. A situação mudou com a chegada de migrantes e a abertura de estradas na ditadura. A família, contudo, conseguiu manter certa autonomia econômica na coleta da castanha, mesmo durante a intensa destruição dos castanhais, nos anos 1980. Nesse período, tal como inúmeros camponeses e trabalhadores da região, José Cláudio teve uma breve passagem, junto de seus irmãos, pelo garimpo de Serra Pelada. Em meados da mesma década, adquiriu de um posseiro a área que viria a ser integrada ao PAE, com 250 hectares divididos entre ele e o pai.

    Nesse contexto, vivenciou a mudança da terra livre — quando o acesso à floresta valia mais que o preço da terra, e os posseiros iam atrás de terra e tomavam a posse pela ocupação — para a terra mercadoria, quando ela passou a valer mais que a floresta e começou a ser grilada e negociada. Na infância, dizia, a terra era abundante, mas o acesso à floresta para realizar a coleta era controlado pela oligarquia da castanha.⁸ A fartura de terra livre com escassez de mão de obra era organizada, explica Octavio Ianni, pelo aviamento, o sistema de produção baseado no endividamento. Ianni (1979, p. 40) observa que nesse tempo não havia a legalização da posse pelo Estado, pois, descreve o sociólogo, o que predominava era o controle efetivo da terra, por meio de instrumentos privados de violência. O pai de José Cláudio foi um pequeno comerciante em uma faixa intermediária entre patrões e coletores de castanha. Quando compraram o lote de floresta na margem direita do Tocantins, área que posteriormente foi incorporada ao PAE, ainda que pensassem em desenvolver a pecuária, para onde eram direcionados os principais incentivos, passaram a se dedicar quase exclusivamente às atividades do sistema da castanha, com a coleta e a compra para revenda em

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