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CPT e MST: e a (in)justiça agrária? experiências de luta da CPT e do MST
CPT e MST: e a (in)justiça agrária? experiências de luta da CPT e do MST
CPT e MST: e a (in)justiça agrária? experiências de luta da CPT e do MST
E-book574 páginas7 horas

CPT e MST: e a (in)justiça agrária? experiências de luta da CPT e do MST

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Sobre este e-book

Este livro apresenta a atuação histórica da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e analisa duas experiências de luta pela terra, acompanhadas pela CPT e pelo MST: em Campo do Meio, sul de Minas Gerais, a luta pela terra que gerou a conquista dos assentamentos Primeiro do Sul (1997 a 2021), Santo Dias, em Guapé, Nova Conquista II e mais 11 acampamentos, que juntos formam o Quilombo Campo Grande, em Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, MG. O Acampamento Dom Luciano Mendes (2006 a 2015), que levou à conquista dos Assentamentos Dom Luciano Mendes, Irmã Geraldinha e do Acampamento Ouro e Prata. A pesquisa aborda a luta pela terra em dois espaços com contextos bem específicos de lutas na relação com os sujeitos coletivos que os acompanham. Assim, a CPT, na sua perspectiva de luta pela terra como "luta profética e a ocupação como um meio". O MST, como ação de "ocupar, resistir e produzir" à "ocupar, resistir e produzir de forma agroecológica".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de jul. de 2021
ISBN9786525203096
CPT e MST: e a (in)justiça agrária? experiências de luta da CPT e do MST

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    CPT e MST - Gilvander Luís Moreira

    CAPÍTULO 1. A LUTA PELA TERRA INTERROGADA EM CONTEXTO DE INJUSTIÇA AGRÁRIA

    INTRODUÇÃO

    Em pleno globocolonial ⁴ século XXI, no Brasil, vige uma nova fase de reprodução e ampliação do capital, embasado na propriedade capitalista da terra combinando expropriação camponesa da terra e superexploração das trabalhadoras e dos trabalhadores na cidade. No artigo A luta por direitos no campo e na cidade ⁵, de 2016, afirmamos:

    A Reforma Agrária, entendida como uma reestruturação da propriedade, da posse e do uso da terra, possibilitando aos trabalhadores acesso aos meios de produção, tecnologias, créditos, etc., embora tão necessária e almejada por uma parcela da sociedade, nunca foi feita no Brasil. A política adotada pelos governos brasileiros de resolver conflitos fundiários é meramente paliativa, isto é, aparece onde se estabelece um grave conflito agrário apenas para apaziguar. Somente a iminência de massacre leva as autoridades públicas a fazerem alguma coisa em prol dos Sem Terra (MOREIRA, 2016b, p. 222).

    Vivemos tempos temerosos, agravados por uma conjuntura política onde há o acirramento da criminalização, dos conflitos e da violência simbólica e física sobre o campesinato e toda a classe trabalhadora colocando em questão direitos sociais, humanos e territoriais contemplados na Constituição de 1988. Contexto que tem provocado intensas e perversas ações de agentes do Estado, de empresários do agronegócio, da polícia militar, entre outros, que nos fazem perguntar se ainda somos humanos! Ou o que ainda temos de humanos em nós.

    Inspirando-nos na Ecologia Política⁶ que através da categoria ‘injustiça ambiental’⁷ demonstra a imposição desproporcional de agressões e violências ambientais submetidas pelas grandes empresas aos mais diversos grupos integrantes da classe camponesa e à classe trabalhadora, compreendemos o contexto de luta pela terra como um contexto de injustiça agrária. Referimo-nos à categoria ‘injustiça agrária’ como a avalanche colossal de conflitos e violências agrárias que se abatem sobre o campesinato brasileiro imposta pelo sistema do capital e pelo agronegócio que usa e abusa da propriedade capitalista da terra reproduzindo de forma crescente a concentração fundiária no país e a consequente expropriação da terra dos camponeses, seguindo-se a expulsão dos camponeses para a cidade e, às vezes, o seu aniquilamento.

    Uma avalanche de injustiça agrária vem deixando um rastro avassalador no Brasil, país com estrutura fundiária latifundista. A concentração fundiária no Brasil tem características sem igual na história mundial, em nenhum momento da história da humanidade se encontrou propriedades privadas com a extensão que se encontra no Brasil (OLIVEIRA, 2007, p. 132). Ancorados em teorias insuficientes, e/ou idealistas, e/ou positivistas, e/ou estruturalistas, muitos desqualificam a luta pela terra e pela reforma agrária como algo anacrônico, atrasado e fadado ao fracasso. Alardeiam a inutilidade da luta dos camponeses pobres, melhor dizendo, empobrecidos. Mas no meio do fogo do latifúndio, o capitalismo - atualmente mundializado e em crise estrutural desde a década de 1970 -, ao avançar sobre os territórios, expropriando os camponeses, acabou por impor a luta pela terra, em um país transformado em imensas pastagens e imensas monoculturas de cana, de eucalipto, de café, de capim etc. Muitos insistem em manter grande parte do povo brasileiro como rebanho a ser tocado como gado, conforme diz a música Vida de gado, de Zé Ramalho: Eh, ôô, vida de gado / Povo marcado, ê /Povo feliz / Eh, ôô, vida de gado / Povo marcado, ê / Povo feliz. Assim, com ironia, em meio a festa, a luta segue rompendo cercas. Nois sofre, mais nois goza, diz o povo camponês que resiste para existir. Ainda em 1989, José de Souza Martins atestava:

    Os pobres da terra, durante séculos excluídos, marginalizados e dominados, têm caminhado em silêncio e depressa no chão dessa longa noite de humilhação e proclamam, no gesto da luta, da resistência, da ruptura, da desobediência, sua nova condição, seu caminho sem volta, sua presença maltrapilha, mas digna, na cena da História (MARTINS, 1989, p. 12-13).

    Ano a ano, no planeta Terra⁸, nossa única casa comum, o ser humano e toda a biodiversidade⁹ estão em perigo crescente de um apocalipse provocado pelo capitalismo com seu atual modo de produção devastador socioambientalmente em progressão geométrica. Em sua etapa monopolista, o capitalismo no campo com seus complexos industriais de produção agropecuária tem colocado questões inéditas e desafiadoras para a luta pela terra, pois esse processo contínuo de industrialização do campo traz na sua esteira transformações nas relações de produção na agricultura, e, consequentemente, redefine toda a estrutura socioeconômica e política no campo (OLIVEIRA, 2007, p. 8).

    O futuro da humanidade e de todas as espécies vivas está ameaçado como nunca esteve. Como uma cruel máquina de destruir vidas humanas e ecológicas, com cerca de 500 anos de história, contando o período da acumulação primitiva, o capitalismo está se mostrando cada vez mais feroz e destruidor, atualmente em forma de imperialismo global hegemônico capitaneado pelos Estados Unidos e pelas empresas transnacionais. Acontecimento que incomoda igual urtiga e tira o sono da classe dominante, a luta pela terra, com uma longa história, já foi muito forte e expressiva no Brasil.

    No livro Pedagogia do Movimento Sem Terra, Roseli Salete Caldart afirma:

    Lutar pela terra é lutar pela vida em sentido direto, literal, sem mediações. A terra que se quer conquistar é, ao mesmo tempo, o lugar de trabalhar, de produzir, de morar, de viver e de morrer (voltar à terra), e também de cultuar os mortos, principalmente aqueles feitos na própria luta para conquistá-la (CALDART, 2012, p. 358).

    Quem já participou do início de uma ocupação de um latifúndio improdutivo que não cumpre sua função social em uma madrugada escura e fria? Quem já se dispôs a fazer a experiência de viver sob lonas pretas e gravetos – em condições similares aos animais no meio do mato, ou em condições piores do que nas favelas? Quem já viveu à beira das estradas, em lugares ermos e remotos, sujeitos aos ataques noturnos repentinos? Quem já permaneceu em um acampamento do MST por mais de um dia, observando o que comem (e, sobretudo, o que deixam de comer), o que lhes falta, como são suas condições de vida? Quem já viu o desespero das mães procurando, aos gritos, pelos filhos enquanto o acampamento arde em fogo às 3 da madrugada, atacado por jagunços? Quem já compartilhou com os Sem Terra do MST os momentos dramáticos de um despejo realizado pelo poder judiciário e pela polícia militar que submete todos, sob a mira de fuzis e metralhadoras, a uma tempestade de tiros de balas de borracha e a bombas de gás lacrimogêneo que asfixia todos que, sob o instinto de sobrevivência, não têm outra alternativa a não ser correr em busca de oxigênio para respirar?

    Sentindo-nos na pele dos Sem Terra, para iniciar nossa pesquisa qualitativa sobre a luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana, faz-se necessária uma apresentação sintética, em perspectiva quantitativa sobre o tamanho do conflito – e sua complexidade - que envolve a luta pela terra no Brasil e especificamente em Minas Gerais.

    A terra vem sendo aprisionada pelas forças e estruturas do capital que, em um processo avassalador, avança de forma ilimitada sobre o Campo e a Cidade. Karl Marx, Boaventura Sousa, István Mészáros e tantos outros teóricos da filosofia e da sociologia fazem críticas que nos ajudam a elucidar a opressão de classe que impõe, de forma renhida, a redução da terra a mercadoria. Entretanto, a luta pela terra pode ser uma força mobilizadora de grande intensidade na luta dos Movimentos Populares do campo e da cidade (MOREIRA, 2015a, p. 159).

    1.1 O PESQUISADOR E O TEMA-PROBLEMA

    A CPT e o MST têm uma longa história de luta pela terra no campo, porque acreditam, pensam e sonham coletivamente que esta luta seja em alguma medida emancipatória, mas suspeitamos que ela não é necessariamente e nem automaticamente um fator de emancipação. Incomodados com os destinos da luta pela terra e, especificamente, preocupados com o futuro do campesinato sem-terra ou Sem Terra, debruçamo-nos a pesquisar a luta pela terra na busca de compreender em que medida, - até que ponto, como, se é que é, - essa luta envolve e desenvolve uma pedagogia da emancipação humana.

    Referir-me a um pouco da minha origem, da minha formação e da minha atuação pode facilitar a compreensão de análise feita nesta pesquisa que se transformou em dois livros, sendo este o primeiro. Trarei à baila alguns flashes da minha história pessoal inserida em condições históricas de exploração pelo capitalismo, condições materiais que me determinaram até aqui. Meu pai, José Moreira de Souza, filho primogênito de oito irmãos, ficou órfão de pai aos dez anos e de mãe, aos doze anos. Meu avô paterno e minha avó paterna morreram de repente, provavelmente vítimas do vírus trypanosoma cruzi, transmitido pelo barbeiro que grassava na região do Alto Paranaíba, MG, nas décadas de 1930 a 1950. No sítio Pindaíba, no município de Rio Paranaíba, região do Alto Paranaíba, MG, meu pai, com apenas 12 anos, tornou-se arrimo de seus outros sete irmãos, ao perder pai e mãe antes da velhice, vítimas da endemia de barbeiro na região, situação árdua enfrentada por parte da população brasileira. Minha mãe, Leontina Rosa de Souza, ao lado de outros seis irmãos e irmãs, também ficou órfã de pai quando ainda era criança. Meu avô materno morreu enquanto trabalhava na roça, vítima de um raio em meio a trovoada e chuva forte. Eram camponeses pequenos sitiantes. Trabalhavam na terra, em regime familiar, plantando para a sobrevivência.

    No contexto da iminência do golpe militar-civil-empresarial de 1964, nasci dia 2 de outubro de 1963, no campo, como a maioria do povo brasileiro na época. Quase morri ao nascer, pois minha mãe de pequena estatura teve muita dificuldade para me dar à luz. Meu pai foi a cavalo buscar o médico na cidadezinha de Rio Paranaíba, MG, mas somente chegou com o médico após 24 horas. Com apenas quatro anos de idade, em 1967, virei migrante em busca de terra e de uma vida melhor. Assim, comecei ainda em tenra idade a participar do fenômeno da migração por falta de condições materiais para viver com dignidade. Mudei com minha família para o município de Unaí, no noroeste de Minas Gerais. Lugar de muitas matas e de terras férteis, Unaí era na década de 1960 um dos eldorados da época. Fomos morar como agregados na região da Fartura no latifúndio do fazendeiro Fernando e tocamos lavoura à meia durante sete anos: primeiro, na região da Fartura – onde nasceu meu irmão Silvânio - nas fazendas de Fernando, depois de Brás Bueno – fazendeiro poderoso na época - e, por último, na fazenda Capa, no município de Arinos, também no noroeste de Minas, tendo como patrão Afonso Emídio. Como milhares de famílias camponesas perambulávamos de fazenda em fazenda em busca de uma vida melhor. O jeito era migrar até conquistar um pedaço de terra.

    Aos cinco anos de idade, comecei a ir com o papai para a lavoura tocada à meia com o patrão. Enquanto a mamãe fazia o almoço para o papai e os companheiros que trabalhavam por dia (diaristas) ou por empreitada, eu tratava dos porcos no chiqueiro e alimentava as galinhas no quintal. Diariamente eu limpava o cocho dos porcos e o enchia com água limpa, carregada com lata d’água nas costas, retirada da cisterna no saril, na força dos braços. O milho para os porcos era por nós debulhado e colocado de molho antes de ser servido no cocho do chiqueiro. Esse era meu trabalho ao amanhecer e ao entardecer de segunda a segunda. Após tratar dos porcos, eu ia a pé com a mamãe levar almoço em marmitas para o papai e companheiros na lavoura distante uns três quilômetros. Assim, integrei a época em que as crianças criadas no campo eram educadas convivendo e trabalhando junto com pai e mãe.

    Aprendi a capinar, a roçar com a foice e a plantar milho, feijão e arroz na matraca quando ainda tinha estatura pouco maior do que a matraca. Por isso não podia enchê-la para não ficar pesada demais. Quase perdi o dedão do pé esquerdo ao aprender a plantar, pois, inexperiente, acabei metendo a matraca em cima do dedão que quase foi decepado. Dos cinco aos doze anos, trabalhei no cabo da enxada de sol a sol sob sol escaldante, com formiga mordendo meus pés. Quando chovia não podíamos parar de capinar para a lavoura não morrer no mato. Com a chuva, um enxame de mosquitinhos vinha beliscar nossos ouvidos. Sob a trovoada, não podíamos nos esconder debaixo das árvores porque havia risco de raios fulminantes.

    Sou o que faço como práxis e faço o que faço, em grande parte, porque nasci em uma família sem-terra. Na minha infância, por pertencer à classe do campesinato trabalhando no sistema de parceria, experimentei o que significa ser expropriado. Comecei a sentir na própria pele a injustiça quando, junto com minha família, ao tocar lavoura no regime à meia, via o patrão-fazendeiro levar 50% da nossa safra e quase a outra metade também para pagar a dívida que tínhamos acumulado do plantio à colheita comprando na venda da sede da fazenda o que era necessário para nossa subsistência, o que não produzíamos com nosso trabalho: sal, açúcar, café, querosene, remédios, botina, enxada, foice, machado e algo mais necessário à casa ou ao trabalho. Indignado ao ver o patrão levar a quase totalidade da nossa produção, gritava dentro de mim: Isso não é justo. Deus não quer isso.¹⁰ O fazendeiro ficar com quase toda nossa produção só porque dizia ser o dono da terra?! Eu desconfiava que isso não fosse justo. O suor derramado no trabalho de sol a sol era muito para ficar só com um pouquinho da produção. O fazendeiro, por ser dono da terra, entrava com a semente e nós com o trabalho e na colheita, metade para ele e metade para nós. Isso contratualmente, pois na prática o fazendeiro tomava quase toda nossa produção, por causa da dívida que contraíamos comprando na ‘venda’ da sede da fazenda.

    Fui criado no campo no meio da minha família e das famílias agregadas ao latifúndio. Na fazenda Capa, por exemplo, éramos vinte e nove famílias tocando lavoura à meia para um único patrão. Nossa diversão era aos domingos visitar os vizinhos, jogar baralho (truque), jogar futebol e participar das festas que volta e meia aconteciam em alguma casa da vizinhança. A fraternidade entre as famílias camponesas agregadas era cultivada pela ajuda mútua, seja em um mutirão para limpar a lavoura que estava prestes a morrer no mato, emprestando o dinheiro quando podia, ou ajudando na hora da doença. Quando em nossa casa, tocando lavoura à meia, o papai matava um porco, antes de cozinhar a carne e o toucinho e colocar em latas de 20 litros para armazenar e ir comendo aos poucos, a mamãe retirava um quilo de carne para cada família da vizinhança e eu ia de casa em casa entregando. O mesmo era feito pelos vizinhos quando matavam um porco. De modo que quando alguma família da vizinhança matava um porco toda a vizinhança comia carne, porque partilhar e se ajudar mutuamente fazia parte da nossa cultura camponesa no noroeste de Minas, no início da década de 1970.

    Após a chegada do MST no noroeste de Minas Gerais, em Arinos, a fazenda São Miguel do Mulungu - conhecida como Capa - com área de 2468 hectares, de propriedade de Afonso Luiz da Mota, foi ocupada pelo MST e no ano de 2000 se tornou o Assentamento Carlos Lamarca, com 85 famílias.

    Ainda em tenra idade, eu ouvia meu pai dizer e repetir com frequência: Minha maior paixão é não ter podido estudar. Farei o possível e o impossível para dar estudos para meus filhos, pois estudo é riqueza que ladrão não rouba. Não vou me preocupar em deixar herança para vocês (José Moreira De Souza, nas décadas de 1960 e 1970). Só pude começar a estudar aos nove anos. Antes não podia largar o cabo da enxada para não faltar o feijão na panela para o nosso sustento. Minha mãe me ensinou a ler enquanto cozinhava à beira do fogão à lenha. Ela me ensinava a ler o que estava escrito nas latas na cozinha.

    Após cursar o terceiro ano fundamental em Escola Rural, tive que ir para a cidadezinha de Arinos para continuar os estudos a partir da quarta série. Fui morar na casa da dona Honória. Papai pagava 200 cruzeiros por mês para custear meu sustento naquela casa. Muitas vezes comi feijão carunchado e/ou azedo. Quando minha irmã Rosimar foi também para lá a fim de iniciar a quarta série primária, meu pai alugou um barraco para morarmos. Muitas vezes comíamos somente arroz e macarrão. Comida regrada e escassa. Somente quando cursava a 7ª série fundamental pude assistir à televisão pela primeira vez na casa de um colega da escola.

    Ainda na 7ª série criamos um grupo de jovens na igreja. Fazíamos reuniões semanais, visitas aos pobres na periferia e campanhas do quilo e do cobertor. Alegando que eu era desinibido e lia bem, fui convidado para coordenar o culto dominical aos domingos na igreja, pois o padre só celebrava uma vez por mês e, às vezes, a cada três meses. Seguindo a paixão do papai, que era estudar, na escola, aprendi a gostar de estudar. Esforçava-me para tirar a nota máxima em todas as disciplinas, o que quase sempre se tornava realidade. Percebendo que o caminho para melhorar de vida seria estudar, fazer uma faculdade, comecei a pensar: vou lutar para fazer uma faculdade, mas qual? Ser advogado não queria, porque o advogado que havia na cidadezinha só defendia os ricos. Ser médico também não, porque o médico de Arinos tratava bem as pessoas ricas, mas humilhava as pessoas pobres. Pensei em ser padre, porque tinha a ideia de que como padre poderia ajudar o próximo, ser solidário e lutar por justiça social, agrária, ambiental, urbana etc.

    Recordo que, em 1971, no município de Arinos, MG, meus tios Ageu Moreira de Souza e Eurípedes Moreira de Souza compraram um trator, marca Valmet, e começamos a usá-lo na colheita do feijão e do milho. Antes, era tudo na força das mãos e dos braços: arrancar o feijão e transportá-lo para um terreiro na lavoura, bater, à mão, os feixes no porrete para separar a casca e os gravetos, com uma pá limpar o feijão jogando-o para o ar para que o vento levasse os ciscos e, após, ensacar. Quanto trabalho! Quanto suor derramado! Quantos calos nas mãos! Quanta coluna arrebentada durante o arranquio do feijão! Com a chegada do trator foi uma festa, pois com o trator e carreta carregávamos mais rápido o feijão e o milho. Em vez de bater o feijão no porrete, passávamos o trator em cima dos feixes de feijão para descascá-lo. Depois, com uma máquina ligada no trator, era só jogar os feixes de feijão na máquina e o feijão limpinho já caía direto no saco de linhagem. Assim era também com o milho. Com o trator e sua tralha a colheita era feita com maior velocidade, com menos desgaste de força de trabalho. Vivi isso e registro esse testemunho aqui para dizer que o advento da mecanização da lavoura foi algo tremendamente sedutor para os trabalhadores camponeses também. Não percebíamos ali todas as mazelas que estavam iniciando: substituição da mão de obra, expulsão de milhões de trabalhadores camponeses para as periferias das cidades, mercantilização da terra etc. O milho híbrido, quando começamos a plantá-lo, também era sedutor: cheiro agradável e grãos selecionados. Entretanto, ao replantar o milho fruto do milho híbrido percebemos que era parcialmente estéril, pois só produzia bem no primeiro plantio. Não dava para suspeitar que ali estava nascendo um projeto do capital para controlar as sementes e, de forma sorrateira, exterminar as sementes crioulas.

    A indignação diante da injustiça social, experimentada durante minha infância e adolescência, me levou a entrar para o seminário da Ordem dos Carmelitas, querendo ser padre. Pensava no final da década de 1970: Se eu gostar do seminário, beleza. Se não gostar, estarei ganhando estudo. Mas, dentro do seminário, minha vocação se desenvolveu. Fazer um ano de noviciado em Pernambuco, em 1984, me transfigurou da água para o vinho. Em Pernambuco, durante 13 meses, uma semana por mês convivíamos – e trabalhávamos – junto às famílias de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) na zona rural. Com essa experiência, comecei a descobrir a grande injustiça que é a discriminação que há no Sul e Sudeste do Brasil com relação ao povo nordestino. Comecei a entender que as injustiças que se abatem sobre a maioria da população não são por acaso, mas são engendradas como meio para se perpetuar uma sociedade desigual: essa máquina de moer vidas, que é o capitalismo.

    Ainda em 2007, Ariovaldo Umbelino de Oliveira já afirmava:

    A base teórica para se compreender o campo brasileiro, está na compreensão da lógica do desenvolvimento capitalista moderno, que se faz de forma desigual e contraditória. Ou seja, o desenvolvimento do capitalismo, e a sua consequente expansão no campo, se fazem de forma heterogênea, complexa e, portanto plural (OLIVEIRA, 2007, p. 131).

    De 1985 a 1989, cursei Filosofia em nível de licenciatura e bacharelado na Universidade Federal do Paraná (UFPR), curso com ênfase no materialismo histórico-dialético, Escola de Frankfurt, Existencialismo e Filosofia da Libertação. Vários textos de Karl Marx me ajudaram a compreender porque os pobres sofrem tanto e a descobrir pistas de lutas que podem levar à superação das causas da pobreza. Se todos nascem nus, em pé de igualdade substantiva, por que a maioria tem que se debater a vida toda nas raias da pobreza, enquanto uma minoria passa a gozar vida cômoda sem ter que suar a camisa pelo próprio sustento e se tornam ricos cada vez mais ricos? Com os textos de Marx descobri que os pobres são de fato empobrecidos e os ricos, enriquecidos. Logo, a questão não é só de pobreza, como se fosse por causa das mazelas pessoais de cada um/a, mas há pobres, porque há enriquecidos. Portanto, mais do que pobres, marginalizados ou excluídos, são injustiçados.

    Nos anos de Seminário, enquanto estudava Filosofia e Teologia, fui aprofundando minha convivência com o povo de favelas, onde construímos CEBs, de 1985 a 1989, em Curitiba, PR, e de 1990 a 1993, em São Paulo, SP, precisamente no Parque Novo Mundo. Cursei Teologia segundo metodologia da Teologia da Libertação, no Instituto Teológico São Paulo, em São Paulo, SP. O ensinamento e a práxis de Jesus de Nazaré aquecem meu coração com um sonho sonhado em mutirão e acordado: lutar para construir uma sociedade justa e solidária a partir dos injustiçados, começando aqui e agora. O materialismo histórico-dialético nos faz ver de forma crítica a exploração a que é submetida a classe trabalhadora e o campesinato pelo capitalismo e a perceber que por mais revolucionárias que sejam as ideias, elas por si sós não transformam a realidade, pois as mudanças emancipatórias acontecem é no seio das condições materiais objetivas. Criá-las é o desafio da classe trabalhadora e do campesinato. Por coração/paixão, sou cristão; por cabeça/razão, sou marxista. Ideal cristão e marxista: emancipação humana, o que passa pela construção de uma sociabilidade que supere as relações sociais do capital, em que todos os seres humanos e os seres vivos da biodiversidade sejam respeitados e ninguém seja explorado e injustiçado.

    Fiz mestrado em Exegese Bíblica – Ciências Bíblicas – no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália, concluído em maio de 2000 e reconhecido pela PUC/RS. No mestrado, ao estudar com afinco muitos métodos de hermenêutica bíblica, restou confirmado o método de interpretação bíblica feita pela Teologia da Libertação, que usa o método materialismo histórico-dialético, de Marx e Engels, para compreender a conflitividade tecida na sociedade, o que subsidia uma hermenêutica dos textos bíblicos que mostra o Deus do povo da Bíblia, nas entranhas do humano e da história, tomando opção pelos oprimidos e defendendo-os diante das opressões perpetradas por latifundiários, falsos profetas, sacerdotes, reis e impérios.

    Desde 1985 estou comprometido com muitas lutas das CEBs e da CPT. Meu ‘batismo’ no MST foi participar da Marcha do MST de Governador Valadares até Belo Horizonte, 500 quilômetros, em abril de 1996. Marchávamos de 20 a 30 quilômetros por dia. Uma semana antes do massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, dia 10 de abril de 1996, estávamos chegando à capital de Minas Gerais, cerca de 500 militantes do MST. Enquanto eu tinha ido buscar 500 marmitex no sítio da FETAEMG - Federação dos Trabalhadores na Agricultura do estado de Minas Gerais - para o almoço das companheiras e dos companheiros, eis que a tropa de choque da Polícia Militar de Minas atacou o povo na entrada da capital de Minas. Resultado: 20 presos e outros 20 feridos foram levados para o pronto-socorro. Após o almoço, celebramos culto ecumênico junto com o povo para reanimar e no dia seguinte entramos em Belo Horizonte. Patrus Ananias, então prefeito da cidade, nos encontrou na Av. Cristiano Machado e entregou as chaves da cidade de Belo Horizonte para o MST. A marcha fazia parte de 22 marchas do MST que estavam chegando em 22 capitais brasileiras naqueles dias.

    Além de participar de lutas concretas, contribuí também na assessoria para a formação de lideranças na militância social e eclesial. Com essa atuação experimentei a força de uma pedagogia emancipatória. Também o fiz como professor no curso de Teologia do Instituto Santo Tomás de Aquino, em Belo Horizonte, por 10 anos, de 2002 a 2012, lecionando na área de Ciências Bíblicas. Com essa história pessoal e, incomodado com muitas perguntas, fizemos a pesquisa e escrevemos esta tese que se tornou livro. A seguir problematizaremos a luta pela terra como pedagogia de emancipação humana.

    1.2 TEMA-PROBLEMA: A LUTA PELA TERRA: PEDAGOGIA DA EMANCIPAÇÃO HUMANA?

    A luta pela terra por si só não garante a emancipação do campesinato, mas também sem essa luta, em um Brasil latifundiário e sob as agruras do modo de produção capitalista, nenhuma emancipação é possível. Na luta pela terra e em todas as outras lutas afetas a ela, a história da CPT e do MST tem demonstrado níveis de emancipação conquistados com as próprias mãos ao longo de mais de três décadas.

    Por que pedagogia da emancipação humana? Porque se a revolução não se faz mais pelas armas, se tudo depende de mudança educacional, se estamos apostando em Educação do Campo como um galho necessário do grande tronco que é a luta pela terra, queremos passar no crisol o método pedagógico com o qual estamos lutando pela terra. Referimo-nos ao conceito de revolução como uma contínua e profunda transformação revolucionária de todas as facetas de nossa vida social (MÉSZÁROS, 2007a, p. 78), erradicando as relações sociais de exploração e implementando relações sociais de respeito à dignidade humana e à dignidade de todos os seres vivos. Precisamente referimo-nos à ‘revolução social’, conceito usado por Marx e surgido com Babeuf e seu movimento, em 1789, quando Babeuf foi executado, acusado, junto com seu grupo, de conspiração, porque, na realidade, ele estava exigindo uma sociedade de iguais" (MÉSZÁROS, 2007a, p. 78), o que exige a superação do sistema do capital através do protagonismo das classes trabalhadora e do campesinato, pois por decreto não se emancipa o trabalho assalariado, mas pela autoemancipação das classes oprimidas e superexploradas.

    Na luta pela terra, nosso método, nossas táticas e estratégias estão sendo de fato pedagogia da emancipação humana? Propomo-nos a fazer uma avaliação que nos leve à autocrítica, a reconhecer nossos limites, ambiguidades e contradições, mas também a descobrir potencialidades e práticas adormecidas, desprestigiadas ou relegadas.

    Compreendemos como conceito de emancipação humana a conquista de um grau tal de sociabilidade humana, na qual as pessoas e, em especial todas as trabalhadoras e todos os trabalhadores, convivam, atuem, trabalhem e criem como seres humanos, sujeitos e protagonistas da totalidade das forças produtivas, reconhecendo-se como humanos após se libertarem de toda e qualquer tipo de alienação e opressão e desenvolvendo o seu infinito potencial de humanidade como ser humano sujeito social e político. Emancipação é o contrário de dependência, submissão, alienação, opressão, dominação, falta de perspectiva (THIOLLENT, 2006, p. 161). Se, sob escravização, uma possibilidade é que o ser humano se torne fraco, temeroso e rastejante, sem força e coragem (ROUSSEAU, 1999, p. 170), ou o homem é fraco quando é dependente (ROUSSEAU, 1999, p. 189), no nível de sociabilidade emancipada, porém, as pessoas estarão libertadas de todos os vínculos de dependência e submissão e não se encontrarão mais subjugadas pela tríade que sustenta as relações capitalistas: capital, trabalho alienado e Estado. Diante da lógica e estrutura destrutiva do capital, a emancipação humana é uma necessidade histórica difícil de ser efetivada, mas possível e necessária. Ressaltamos que emancipação humana não se conquista por discurso, nem por decreto, nem por vanguardistas e nem apenas com ideias críticas, mas se dá na prática ou não se dá (MARTINS, 1989, 14); exige, sim, a transformação para melhor das condições históricas materiais objetivas para além do capital. Uma sociedade emancipada com todas as suas trabalhadoras emancipadas e todos os seus trabalhadores emancipados não significa uma sociedade perfeita, o que nunca existiu e nem vai existir, mas a utopia emancipatória enquanto processo constante e permanente, embasado em construções materiais objetivas – não apenas em sonhos e ideias -, é possível, necessária e deve ser buscada. Do contrário, as relações impostas pelo capital teriam a última palavra e estaríamos sem nenhuma alternativa em uma barbárie extrema.

    O foco da nossa análise é a luta pela terra, não é reforma agrária, que é uma política pública que lamentavelmente ainda não foi implementada no Brasil. Queremos compreender por meio do método materialista histórico-dialético a luta pela terra como pedagogia de emancipação humana diante da necessidade de reforma agrária – (ou revolução agrária) -, que é uma política pública apenas iniciada no Brasil, mas sempre adiada e, pior, atropelada por processos de latifundiarização da estrutura fundiária do País.

    Segundo a sociologia de Bourdieu, uma regra predominante na sociedade ocidental capitalista é que tudo parece mudar, mas a permanência, a inércia, a imutabilidade são as constantes hegemônicas. Nesse contexto os movimentos socioterritoriais do campo que lutam pela terra buscam transformações política, social, econômica e ecológica para a construção de uma sociedade justa economicamente, democrática politicamente, plural e solidária socialmente e ecologicamente sustentável. Mudança política, porque a luta pela terra insiste na radicalização democrática, pois sem terra socializada via reforma agrária ou revolução agrária não há democracia real, que antes de ser uma forma política, é uma forma de vida (FREIRE, 2002, p. 88). Mudança social, porque a luta pela terra desestrutura a tendência de latifundiarização do território e, por outro lado, fomenta relações sociais de menos desigualdades entre as pessoas e as classes. Mudança econômica, porque a luta pela terra fortalece a agricultura¹¹ camponesa valorizando a economia local e freia a pressão avassaladora do agronegócio que usa e abusa da terra para produzir commodities para o mercado global internacionalizado, o que reconfigura o Brasil como país de monoculturas como se estivéssemos no século XVI, sob o império da monocultura da cana-de-açúcar. "Grande parte da produção agrícola brasileira é commodities, não é mandioca e feijão para a mesa do povo, mas soja e algodão para exportação, cana para produzir etanol" (RAUL DO VALLE, do Instituto Socioambiental, no filme A Lei da Água, de 2016, sobre o Novo Código Florestal). Dos 270 milhões de hectares de terras usados na agricultura no Brasil, apenas 60 milhões de hectares são usadas para a produção de alimentos. Os outros 210 milhões de hectares são usados na pecuária (RICARDO RODRIGUES, da Escola Superior de Agricultura, no filme A Lei da Água, 2016).¹² Abocanhando a terra em propriedade privada capitalista, os capitalistas promoveram a mecanização da agricultura, desde a época da ditadura militar-civil-empresarial de 1964 e, assim, realizaram o que muitos chamaram de ‘revolução verde’ em contraposição à ameaça que defensores do status quo capitalista chamaram de ‘revolução vermelha’, que era a luta pela implantação do socialismo no país, o que incluía fazer as reformas de base: reformas agrária, urbana, da educação, tributária e política. Sob fomento do governo federal, os capitalistas da cidade levaram todo o arsenal industrial de máquinas com pacotes químicos para a produção agropecuária. Assim, no livro Conflitos no Campo Brasil 2015, da CPT, Carlos Walter Porto Gonçalves e colegas pesquisadores apontam a construção de uma agricultura sem agricultores e produtora de sem-terra. Dizem eles:

    ensejou um modelo agrário/agrícola que mereceu a fina caracterização de uma agricultura sem agricultores, pelo economista argentino Miguel Teubal, conformando com muita violência. [...] não é só grande produtora de madeira (eucalipto), de grãos e de carnes, mas também de muitos trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra ao concentrar muita terra em poucas mãos (PORTO-GONÇALVES; CUIN; LEAL; NUNES SILVA, 2015, p. 90).

    A luta pela terra é um dos polos da tríade: luta pela terra, movimentos socioterritoriais e brechas no Estado de Direito. Há uma inter-relação entre esses três polos do mundo da ação política. Apreendidos na luta dos posseiros na Amazônia, onde nasceu a CPT, os conceitos eram ‘terra de trabalho’¹³ (terra para trabalho próprio, bem comum) versus ‘terra de negócio’¹⁴ (terra para explorar o trabalho alheio), a luta pela terra é levada a cabo pelos movimentos socioterritoriais que fazem ocupação, montam acampamento e lutam até conquistar o assentamento. Nessa luta colocam cunhas nas brechas do Estado de Direito usando o direito alternativo e abrindo espaço para que o ‘direito achado na rua’ – direito subversivo – se desenvolva. Nessa luta socioterritorial, um pedaço de território é resgatado do capital que pode tentar recuperá-lo pela subordinação da renda da terra ao capital. Ocupam a terra para permanecer nela, resistindo contra as investidas do

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