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Tomás de Aquino: Chaves de leitura
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Tomás de Aquino: Chaves de leitura
E-book1.024 páginas17 horas

Tomás de Aquino: Chaves de leitura

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Sobre este e-book

Tomás de Aquino ocupa um lugar inédito na história do pensamento cristão. O intelectual de maior vulto da Idade Média exibe duas faces distintas: o formulador criativo e revolucionário, e, de outro, a figura do pensador oficial do Catolicismo que, ainda hoje, serve de base para as tendências conservadoras da doutrina e do pensamento dos grupos tradicionalistas.
As chaves de leitura sobre Tomás de Aquino que Paulinas Editora disponibiliza nesta obra querem cumprir uma tarefa hermenêutica e vêm cobrir uma lacuna na comunidade científica e acadêmica. Os verbetes, elaborados por uma equipe qualificada de especialistas, têm um significado histórico e pedagógico único por oferecerem uma obra original e facilitarem o estudo de Tomás de Aquino de maneira técnica e didática em nossos dias.
Os coordenadores do trabalho são especialistas reconhecidos sobre o assunto e deixam esse legado às gerações futuras, que sempre retornarão à fonte fecunda do pensamento tomasiano.
IdiomaPortuguês
EditoraPaulinas
Data de lançamento6 de mai. de 2024
ISBN9786558082729
Tomás de Aquino: Chaves de leitura

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    Tomás de Aquino - Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento

    Autores e tradutores

    Alfredo Santiago Culleton é doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atuou como professor pesquisador na Escola de Humanidades da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. É psicanalista. Riqueza.

    Alfredo Storck é doutor em Filosofia pela Universidade de Tours – François Rabelais. Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Casamento, Princípio de individuação, Tempo.

    Ana Rieger Schmidt é doutora em História da Filosofia Medieval pela Universidade de Paris – Sorbonne. Professora no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Eternidade, Necessidade e contingência.

    André Luís Tavares, OP, é doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo e pela Universidade de Paris – Sorbonne. Doutor em Teologia pelo Instituto Católico de Paris. Igreja, Pessoa, Ser humano, Tomismos.

    Andrey Ivanov é doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Professor de História da Filosofia Medieval na Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista. Amor, Beleza, Graça.

    Anselmo Tadeu Ferreira é doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Professor da Universidade Federal de Uberlândia. Imortalidade.

    Carlos Alberto Albertuni é doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Professor no Centro de Letras e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Londrina. Consciência, Paixão, Prazer.

    Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento é doutor em Estudos Medievais pela Universidade de Montreal. Professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Autoridade, Conhecimento, Fé, Filosofia, Natureza, Pecado, Pecado original, Poder Divino, Providência, Razão, Sujeito e objeto, Vontade

    Carlos Frederico Calvet da Silveira é doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino de Roma. Professor da Universidade Católica de Petrópolis. Professor agregado da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Carisma, Escatologia (Novíssimos), Extração voluntária do feto humano, Hierarquia, Magistério, Mal, Maria, Piedade, Sacerdócio.

    César Ribas Cezar é doutor em Filosofia, Teologia Católica e Filologia pela Universidade de Bonn. Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo. Eucaristia.

    Clio Tricarico é doutora em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo.

    Conor McDonough, OP, é doutor em Teologia pela Universidade de Friburgo. Professor de Teologia Dogmática no Centro Dominicano de Estudos, em Dublin. Jesus Cristo.

    Daniel Joseph Gordon é mestre em Teologia pela Pontifical Faculty of the Immaculate Conception – Washington. Doutorando em Teologia pela Universidade de Notre Dame. Atributos divinos.

    Emmanuel Durand, OP, é doutor em Teologia pelo Instituto Católico de Paris e pela Universidade Católica de Louvain. Privat-Dozent em Teologia pela Universidade de Friburgo. Mestre em Filosofia pela Universidade de Paris – Sorbonne. Professor da Faculdade de Teologia da Universidade de Friburgo e da Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino de Roma. Revelação.

    Evaniel Brás dos Santos é doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Professor no Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Sergipe. Matéria, Vida.

    Ezra Sullivan, OP, é doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino de Roma. Professor na Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino de Roma. Beatitude, Hábito.

    Felipe de Azevedo Ramos, EP, é doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino de Roma. Professor no Instituto Filosófico Aristotélico-Tomista. Amizade, Desejo.

    Francisco Bertelloni é doutor em Filosofia e Letras pela Universidade de Buenos Aires. Professor de Filosofia da Universidade de Buenos Aires. Comunidade, Poder.

    Gilbert Dahan é doutor em Letras pela Universidade de Paris – Sorbonne. Orientador de pesquisas na École Pratique des Hautes Études (Ciências Religiosas). Orientador emérito de pesquisas no Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris. Bíblia.

    Gilles Emery, OP, é doutor em Teologia pela Universidade de Friburgo. Professor emérito da Faculdade de Teologia da Universidade de Friburgo. Encarnação, Espírito Santo, Trindade.

    Gregorio Piaia é doutor em Filosofia pela Universidade de Pádua. Professor de História da Filosofia na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Pádua. História.

    Igor Salomão Teixeira é doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor do Departamento e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Canonização de Tomás de Aquino, Mulher.

    Inácio de Araújo Almeida, EP, é doutor em Filosofia pela Universidade Santo Tomás de Aquino de Roma. Professor do Instituto Filosófico Aristotélico-Tomista. Milagre.

    Innocent Smith, OP, é doutor em Teologia pela Universidade de Ratisbona. Bacharel em Música e Filosofia. Liturgia.

    Javier Pose, OP, é licenciado em Teologia pela Universidade de Friburgo. Regente de Estudos da Província Argentina Santo Agostinho da Ordem Dominicana. Esperança.

    Jean-Christophe de Nadaï, OP, é doutor em Letras Clássicas pela Escola Normal Superior de Paris. Mestre em Teologia pelo Instituto Católico de Lyon. Membro da Comissão Leonina. Sacramento.

    John Baptist Ku, OP, é doutor em Teologia pela Universidade de Friburgo. Professor na Pontifícia Faculdade da Imaculada Conceição – Washington. Pai (Deus Pai).

    John Emery, OP, é doutor em Teologia pela Universidade de Friburgo. Diretor do Instituto Teológico do Centro de Estudos de Filosofia e Teologia da Ordem Dominicana na Argentina. Jesus Cristo.

    José Eduardo Levy Junior é graduado em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo.

    Joseph de Ponton d’Amécourt, OP (in memoriam). Doutor em Filosofia pela Universidade Católica da América – Washington. Professor da Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino de Roma. Virtude.

    Julio Antonio Castello Dubra é doutor em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires. Professor de Filosofia da Universidade de Buenos Aires. Causa, Verbo.

    Juvenal Savian Filho é doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Salesiana de Roma. Professor na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo. Casamento, Deus, Espécie, Igreja, Natureza, Pecado original, Salvação, Ser e ente, Teologia.

    Luc Signoret, FMND, é doutor em Filosofia pela Universidade Paris – Sorbonne. Professor pesquisador do Instituto de Filosofia Comparada (IPC – Paris). Criação.

    Marc Millais, OP, é licenciado em Teologia pela Universidade de Friburgo. Membro da Comissão Leonina. Pregação.

    Marco Aurélio Oliveira da Silva é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. Analogia, Essência e substância, Participação, Ser e ente.

    Marta Borgo é doutora em Letras e em Filosofia pela Escola Normal Superior de Pisa. Membra da Comissão Leonina. Anjos.

    Mateus Domingues da Silva, OP, é doutor em Letras pela Universidade de São Paulo e pela Universidade McGill. Diretor da Biblioteca do Instituto Dominicano de Estudos Orientais do Cairo. Pagãos.

    Matheus Pazos é doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Professor de Filosofia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Transcendência e transcendental, Universais, Verdade.

    Paulo Martines é doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringá. Liberdade, Moral.

    Pedro Monticelli é doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação. Direito, Justiça.

    Rafael Koerig Gessinger é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Alegria, Artigos de fé, Misericórdia, Tristeza.

    Roberto Hofmeister Pich é doutor em Filosofia pela Universidade de Bonn. Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Escolástica colonial, Suma.

    Rossana Pinheiro-Jones é doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas. Escritora e tradutora-intérprete. Heresia.

    Apresentação

    Neste início de século XXI, já não causa mais surpresa a valorização do pensamento de Tomás de Aquino nem mais se o considera resultado da obra de um escolástico rígido e ultrapassado, tal como pintaram críticos seus, cristãos e não cristãos. Tal imagem resulta, sobretudo, de obras escritas por defensores modernos, autointitulados tomistas ou neotomistas, com o fim de exprimir o pensamento tomasiano na forma de manuais de síntese. Apesar de alguns preconceitos ainda persistirem, é comum ver o pensamento tomasiano ser tomado como ponto de partida ou como interlocutor para tratar de temas epistemológicos, éticos, metafísicos (e mesmo pós-metafísicos)¹ etc. Para mostrar o estado atual da pesquisa sobre temas centrais do pensamento de Tomás de Aquino é que a presente obra vem à luz; e não haveria ocasião mais feliz de publicá-la senão em 2024, ano do jubileu de 750 anos da morte de Tomás de Aquino (tendo-se já celebrado o jubileu de 700 anos de sua canonização em 2023). De grande significação, nesse clima de jubileu, é a atitude de Paulinas Editora ao oferecer ao Brasil um trabalho de tal fôlego.

    O valor e a relevância do pensamento tomasiano para a cultura contemporânea começaram a ser postos em evidência já no final do século XIX, quando ocorreu um renascimento do pensamento tomasiano graças à redescoberta de seus textos mesmos por meio de recursos provindos das ciências dos textos antigos (filologia, linguística, paleografia, papirologia…). Começava a ser possível, então, o acesso a cópias de manuscritos de Tomás de Aquino sem mais o aprisionamento a manuais dos séculos XVI-XIX, pretensamente sistematizadores de seu pensamento. Aliás, falando-se em sistematização, é útil lembrar, com Étienne Gilson, que Tomás de Aquino nunca pretendeu erigir seu pensamento em um sistema, "se por sistema entende-se uma explicação global do mundo, que se deduziria ou construiria, de maneira idealista, a partir de princípios postos a priori. O próprio ser não é uma noção cujo conteúdo possa ser definido de uma vez por todas e posto a priori; não há apenas uma maneira de ser, e as diferentes maneiras exigem ser constatadas",² como procurou levar a sério o Aquinate.

    Ademais, parece incorreto até mesmo o termo tratado para referir-se a blocos de questões sobre um mesmo tema na Suma de teologia. Eis aí mais um costume tomista que enviesou a abordagem dos escritos tomasianos, pois apenas uma vez, em toda a Suma de teologia, Tomás refere-se a um bloco de questões como um tratado (cf. IIaIIae, q. 81, Prólogo).

    O renascimento tomasiano do final do século XIX ocorreu pelo engajamento de estudiosos agudamente sensíveis à importância do estudo de Tomás de Aquino por meio de seus próprios textos e à urgência de considerar as contribuições do conhecimento histórico e da historiografia aos saberes em geral, até mesmo à teologia e à filosofia.³ Frequentando-se os textos mesmos dos autores antigos e medievais, percebia-se como os retratos deles feitos na Modernidade deformavam-nos e transformavam-nos em escritores pobres, inconsistentes e despidos de qualquer interesse. No caso preciso de Tomás de Aquino, descobriu-se que ele não tinha nada daquele pensador inquisidor, frio e sem estilo, tal como retratado por muitas obras que pretendiam defender sua perenidade, sua ortodoxia férrea e sua insuperabilidade silogística, mediante resumos de seu pensamento nem sempre fiéis a ele e quase sempre anacrônicos. Ressurgia com frescor, agora, o Tomás histórico, aquele de seus próprios manuscritos, homem mergulhado nas vicissitudes de sua época, pensador ancorado na experiência e, como se chegou a dizer, até mesmo dotado, em certos aspectos, de algo como um sadio relativismo.⁴ Entre os pioneiros dessa nova abordagem, impulsionados pelo incentivo institucional de Leão XIII para redescobrir a obra de Santo Tomás como modelo do pensamento católico,⁵ estavam o Cardeal Mercier (1851-1926), Pierre Mandonnet (1858-1936), Maurice de Wulf (1867-1947), Martin Grabmann (1875-1949), Jacques Maritain (1882-1973), Étienne Gilson (1884-1978), Marie-Dominique Chenu (1895-1990), Karl Rahner (1904-1984), Yves Congar (1904-1930), Joseph Maréchal (1878-1944), entre outros. Todos se mostravam igualmente distantes do neotomismo e da neoescolástica, que se erguiam em interpretações oficiais de Santo Tomás, postura equivocada que o Papa João Paulo II insistiu em corrigir na encíclica Fides et ratio, ao referir-se a Santo Tomás como um modelo de pensador católico entre outros.⁶

    Atualmente, ainda que se possa perguntar pela possibilidade de pioneirismo nos estudos de Tomás de Aquino, parece mais adequado diminuir a importância dessa pergunta, pois, mesmo se não houvesse mais nada de novo a descobrir em sua obra (o que, absolutamente, não é o caso), já o aprofundamento da compreensão de certos temas bastaria para defender a importância de continuar a explorá-la. Dessa importância é um forte testemunho a iniciativa de Paulinas Editora ao publicar este Tomás de Aquino: chaves de leitura, sob a supervisão do Prof. João Décio Passos (PUC-SP). Há, obviamente, obras de diferentes tipos sobre o vocabulário tomasiano, e mesmo obras com o vocabulário neotomista.⁷ A obra que se tem em mãos, porém, embora não seja exaustiva nem possa ter a pretensão de sê-lo, possui verbetes redigidos por especialistas de várias partes do mundo, entretanto, majoritariamente brasileiros, adotando todos um estilo dissertativo que se assemelha por vezes ao de um ensaio.

    Os organizadores do presente livro aproveitam esta ocasião para manifestar seus cumprimentos à Paulinas Editora e ao Prof. João Décio Passos pelo entusiasmo e vigor com que levaram adiante um projeto editorial tão significativo. Um agradecimento ex corde vai também, obviamente, aos colaboradores, autores dos verbetes. O cuidado teórico-metodológico e a preocupação didática de todos são tão notáveis que o livro atende tanto à busca de uma iniciação a Tomás de Aquino quanto ao aprofundamento de aspectos de seu pensamento, ou mesmo à necessidade de consulta por parte de estudiosos. A obra tem interesse para estudiosos de teologia, filosofia e ciências humanas em geral, pois é inequívoca a importância histórica de Tomás de Aquino para a formação das culturas de matriz europeia (e mesmo não europeias), haja vista a influência mundial do pensamento tomasiano sobre o Direito, a Justiça, a afirmação do caráter pessoal individual de cada ser humano, do conhecimento negativo de Deus etc.

    Observar-se-á que praticamente todos os verbetes são construídos pela imbricação de dados e métodos teológicos com dados e métodos filosóficos, históricos e científicos. A razão disso é muito simples; ela está no fato de que é o objeto mesmo de investigação que impõe a necessidade de um tratamento desse tipo. Em outras palavras, é o pensamento mesmo de Tomás de Aquino que se caracteriza pela imbricação das diferentes abordagens, em continuidade com aquilo que se poderia chamar de o objetivismo dos autores antigos e medievais, obedientes à veritas rerum (a verdade das coisas). Eles não seccionavam os objetos de estudo em partes, dedicando a cada uma um saber específico, como ocorrerá a partir da Modernidade. Em vez disso, defendiam a possibilidade de acesso ao objeto inteiro e perseguiam o ideal de um saber total e unitário que circundasse inteiramente cada objeto. Essa circundação inteira do objeto e a investigação de tudo o que o constitui encontram-se, aliás, na raiz do nome experiência (empeiría em grego; experientia em latim). Era no fato com base na experiência que eles operavam.

    Para Tomás de Aquino, o conhecimento era uma atividade de união dos diferentes aspectos que a razão obtém com o auxílio dos cinco sentidos físicos. Sua ideia de unidade das áreas do saber era tão importante que ele operava com o ideal de um perfectum opus rationis, obra completa/acabada da razão,⁸ reflexo adequado da unidade do Todo do cosmo. Não à toa, como verão os leitores, verbetes como Bíblia e Teologia, entre outros, dedicam-se a esclarecer que o objetivismo de pensadores antigos e medievais não era um objetivismo sem crítica, como se eles entendessem o intelecto ao modo de algo vazio e preenchido aos poucos por dados do mundo externo, sem participação das pessoas na produção cognitiva. Muitos antigos e medievais logo perceberam que a consciência do sujeito do conhecimento participa da constituição de absolutamente todos os seus objetos.⁹ A esse respeito, referindo-se especificamente a Platão, o filósofo brasileiro Henrique Cláudio de Lima Vaz fala do objetivismo antigo com tal clareza, que merece ser repetido aqui que Platão "passa do plano ‘lógico-verbal’ ao plano propriamente ‘ontológico’ ou ‘real’; ou, ainda, passa da consideração do ‘ente’ (tò ón) à consideração da ‘existência’ (ousía). Essa passagem deve ser bem notada: de uma parte, reluz aí aquele ‘objetivismo’ da filosofia grega, de acordo com o qual se chegava da análise das noções e de suas expressões verbais (lógos, légein) à teoria ‘ontológica’; de outra parte, aparece a característica peculiar da reflexão platônica no interior dos limites de tal ‘objetivismo’, enquanto Platão, por ocasião da refutação do ‘ente lógico-verbal’ dos sofistas, esforça-se para construir uma teoria do ‘ente total’ (pantelôs ón). […] Assim como no mundo real das Ideias a Ideia de Ente é princípio supremo de ‘realização’, assim também no mundo lógico (na dialética) a Ideia de Ente é princípio de objetivação enquanto confere a toda e cada proposição (lógos) da dialética o ‘ser verdadeiro’ […] Encontramo-nos, pois, em condições de dar a razão daquela equação que ocorre como um leitmotiv em toda a obra platônica: Ciência = Verdade = Ente. A partir daqui, a dialética também tem como claramente definido seu ‘estatuto epistemológico’. Ela aparece, se assim se pode dizer, como inteiramente ‘especificada’ pela realidade objetiva das Ideias. Ela não tem nenhum ‘caráter construtivo’ em sentido moderno.¹⁰ Em outro texto, referindo-se às diferentes formas de pensamento produzidas na Idade Média, Lima Vaz relembra enfaticamente que muitas delas são devedoras de Platão pela mediação de autores estratégicos como Agostinho de Hipona. A respeito de Agostinho, referência central de Tomás de Aquino, afirma Lima Vaz: Agostinho e o Ocidente: o tema é imenso e o caminho do agostinismo se abre nas mais surpreendentes direções. É o objetivismo medieval e o tranquilo fluir da luz ininteligível, mas é também Descartes e ainda Pascal, e são todos os membros da interioridade e as apostas da liberdade. Mas, sobretudo, Agostinho e nós: sua presença é irrecusável no seio de nossas opções mais profundas, e todos aqueles dentre nós que, em fúria ou desesperança, ‘emigram para os bárbaros’, hão de cruzar sem remédio as linhas divisoras do itinerário agostiniano. E, se o agostinismo se define como uma ‘metafísica da experiência interior’ […], é precisamente a universalidade dessa experiência, seu alcance metafísico, que a liberta das limitações de Agostinho e a torna como um ‘arquétipo’ ou eîdos (no sentido platônico), de cuja participação nasce e caminha a dialética concreta o espírito no Ocidente".¹¹

    Seja-me permitido, ao concluir esta Apresentação, narrar uma breve crônica que possibilita entender por que a coordenação de Tomás de Aquino: chaves de leitura foi confiada aos dois organizadores que assinam a obra. Não há a menor dúvida de que convidar o Prof. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento para dirigir tal projeto era algo natural e óbvio, pois, em nosso país, quando o assunto é Tomás de Aquino, o melhor especialista vivo é, sem dúvida, o Prof. Carlos Arthur. No entanto, pode surpreender que eu, Juvenal Savian Filho, fosse convidado para codirigir o projeto. É certo que o pensamento tomasiano é uma de minhas áreas de interesse, o que me fez estudar com certa profundidade e especializar-me em alguns temas (como a existência de Deus, seu conhecimento e o conhecimento sobre ele, a psicologia da fé, o possível caráter transcendental do pensamento de Tomás e outros), mas minhas pesquisas sobre isso nem sequer se comparam ao trabalho do Prof. Carlos Arthur e à sua intimidade com os textos de Tomás de Aquino. Acabei, porém, envolvido no projeto certamente por causa de nossa amizade intelectual, para além da pessoal, mas também por certa artimanha do Prof. Carlos Arthur. Como ele mesmo explica, o Prof. João Décio Passos, coordenador de uma coleção de vocabulários de teólogos cristãos, fez-lhe o convite em primeiro lugar, e ele, Carlos Arthur, assustando-se com a tarefa de assumir sozinho a responsabilidade por um projeto de tal magnitude, disse que aceitaria levar adiante a proposta caso o Prof. Juvenal Savian Filho aceitasse co-organizar a obra. Sua intenção, como ele mesmo me revelou, era a de deixar para mim a responsabilidade pelo volume, atuando ele apenas como colaborador. Imediatamente, o susto mudou de lado, até porque não fazia sentido que o grande especialista apenas colaborasse com o pesquisador que, comparado com ele, ainda está nos cueiros.

    Desarmada, então, a artimanha do Prof. Carlos Arthur, surgiu um belo e mesmo divertido diálogo que levou à concepção e à realização conjunta do projeto. Os colaboradores (autores dos verbetes e tradutores) aceitaram de pronto, apesar de suas inúmeras ocupações, tornando manifesto, assim, o reconhecimento da importância de uma obra deste tipo. Contamos ainda com a colaboração da Profa. Dra. Clio Tricarico na leitura, discussão e correção dos verbetes. Junto com Fr. André Luís Tavares, OP, José Eduardo Levy Junior e Juvenal Savian Filho, a Profa. Clio Tricarico também atuou como tradutora. A equipe de bons profissionais da Paulinas Editora deu, então, o devido acabamento a este trabalho que foi concebido em 2019, iniciou-se em 2020 e veio à luz em 2024.

    A respeito dessa breve crônica, afirma Carlos Arthur que ela é bem simples e modesta, sinal do que esperamos seja uma obra relevante e útil para os que se interessam por Tomás de Aquino. Desejamos mesmo que ela contribua eventualmente para divulgar e expandir esse interesse, tornando o acesso a seus textos mais fácil e mais proveitoso, desfazendo obstáculos que possam obstruir o caminho até eles e possibilitando o encontro com um pensamento claro, direto e vigoroso. Essas qualidades deixam de ser aproveitadas, quer quando se transforma aquilo que alguns consideram o pensamento de Tomás numa camisa de força que estrangula o intelecto, quer quando alguém o desdenha sem mesmo se dar ao trabalho de conectá-lo adequadamente às técnicas e estilos de escrita próprios de seu tempo.

    Permito-me, por fim, em meu próprio nome, no de muitas pessoas formadas por Carlos Arthur e no dos colaboradores do presente Tomás de Aquino: chaves de leitura, bem como em nome de seus colegas e amigos, dedicar esta obra como uma homenagem ao estimado Carlos Arthur e como um reconhecimento agradecido pelo seu trabalho sempre preciso, generoso e alegre. Sua atividade docente sempre foi e é marcante por sua acolhida simpática a todos, por sua honestidade intelectual (ele também critica com firmeza quando necessário!) e por seu cuidado com iniciantes. Entre os que o frequentam não deve haver ninguém que nunca o tenha visto tirar um artigo ou um livro de suas pastas e pochetes para compartilhar como auxílio bibliográfico.

    A título de conclusão, vale evocar, no clima dos jubileus de morte e canonização de Tomás de Aquino, professores e pesquisadores que atuaram no Brasil, investigando e disseminando os escritos de Tomás de Aquino, tanto em linha tomasiana como tomista. Para além de seu magistério, também contribuíram com o enriquecimento intelectual da sociedade brasileira, seja em termos de cultura geral, seja em termos históricos, espirituais, teológicos, filosóficos, filológicos etc. Apenas para citar alguns deles, pense-se naqueles que nos deixaram recentemente, como Carlos Josaphat de Oliveira (1922-2020), Francisco Catão (1927-2020), além do grande amigo de Carlos Arthur e admirável professor de muitos de nós, Francisco Benjamin de Souza Netto (1937-2019). Recordem-se ainda o eminente pensador Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2022), o apaixonado divulgador do tomismo, Odilão Moura (1918-2010), além do prestigiado teólogo Maurílio Teixeira-Leite Penido (1895-1970).

    Infelizmente é difícil mencionar mulheres de destaque nos estudos de Tomás de Aquino entre as gerações dos professores mencionados acima, mas não se pode deixar de mencionar ao menos a Profa. Dra. Madre Laura Fraga de Almeida Sampaio (1930-2014), da Ordem das Cônegas de Santo Agostinho, que se formou na Universidade de Lovaina, Bélgica, e atuou na Faculdade de São Bento de São Paulo, no Departamento de Filosofia da então Faculdade Sedes Sapientiae (posteriormente integrada à PUC-SP), bem como participou da fundação do Instituto Sedes Sapientiae, de psicanálise, do qual foi diretora e onde trabalhou por mais de quarenta anos.

    Tomasianos e tomistas revelavam a postura decidida de uma união respeitosa e repleta da caritas autêntica, até mesmo quando divergiam na leitura de Tomás de Aquino. Essa postura inspirava-se, sem dúvida, no exemplo do próprio frade do século XIII, bastante atuante, mas sempre humilde e silente. De certo modo, ela se reflete também aqui, uma vez que a presente obra é redigida por colaboradores cujos métodos e linhas interpretativas são muito distintos, mas convergentes em um diálogo franco.

    Como Tomás de Aquino tem ainda muito a dizer, resta esperar que, a seu exemplo e a exemplo dos estudiosos aqui evocados, as jovens gerações saibam explorar positivamente suas diferenças individuais e suas legítimas divergências, compondo uma comunidade de diálogo intelectual honesto. Hoje há, entre os jovens pesquisadores, um considerável número de estudiosos de Tomás de Aquino, e, felizmente, as mulheres estão agora mais representadas. Também leitores movidos por um interesse pessoal, não necessariamente acadêmico, são cada vez mais numerosos. Oxalá todas e todos que se debruçam sobre os textos de Tomás sejam seduzidos não apenas por sua letra, mas também por aquilo que, em termos contemporâneos a nós, designa-se por estilo.¹²

    Juvenal Savian Filho

    Universidade Federal de São Paulo

    Obras citadas de Tomás de Aquino

    A natureza do verbo interior – De natura verbi intellectus [autoria controversa]

    As razões da fé – De rationibus fidei

    As substâncias separadas – De substantiis separatis

    Comentário à Carta de São Paulo aos Romanos – In Epistolam ad Romanos

    Comentário à Ética nicomaqueia de Aristóteles – In libros Ethicorum

    Comentário à Física de Aristóteles – In libros Physicorum

    Comentário à Metafísica de Aristóteles – In Metaphysicam Aristotelis

    Comentário a O sentido e o sensível de Aristóteles – Sentencia libri De sensu et sensato Aristotelis

    Comentário ao Símbolo dos Apóstolos – Expositio in symbolum apostolorum

    Comentário ao De anima de Aristóteles – In Aristotelis De anima

    Comentário ao De interpretatione de Aristóteles – In Peri Hermeneias Aristotelis

    Comentário ao Evangelho de João – In Joannem Evangelistam expositio

    Comentário ao Evangelho de Mateus – In Evangelium Matthaei

    Comentário ao Livro das Causas – In Librum De Causis Expositio

    Comentário ao Livro de Jó – Super Job commentaria

    Comentário ao Livro dos Nomes Divinos de Dionísio Pseudoareopagita – In Librum De divinis nominibus Beati Dionysii Expositio

    Comentário ao Pai-Nosso – In Orationem Dominicam

    Comentário ao Símbolo dos Apóstolos – Expositio super Symbolo Apostolorum

    Comentário aos Livros das Sentenças de Pedro Lombardo – Scriptum super Sententiis magistri Petri Lombardi

    Comentário aos Septenários de Boécio – In Boethii De hebdomadibus

    Compêndio de teologia – Compendium theologiae

    Contra os que combatem o culto a Deus e a religião – Contra impugnantes Dei cultum et religionem

    Corrente de ouro – Catena aurea

    Os artigos da fé – De articulis fidei

    Os princípios da natureza – De principiis naturae

    Questão disputada sobre a alma – Quaestio disputata de anima

    Questão disputada sobre as criaturas espirituais – Quaestio disputata de spiritualibus creaturis

    Questão disputada sobre a caridade – Quaestio disputata de charitate

    Questão disputada sobre a correção fraterna – Quaestio disputata de correctione

    Questão disputada sobre a esperança – Quaestio disputata de spe

    Questões disputadas sobre a verdade – Quaestiones disputatae de veritate (De veritate)

    Questões disputadas sobre as virtudes – Quaestiones disputatae de virtutibus (De virtutibus)

    Questões disputadas sobre o mal – Quaestiones disputatae de malo (De malo)

    Questões disputadas sobre o poder divino – Quaestiones disputatae de potentia Dei (De potentia)

    Questões quodlibetais – Quaestiones quodlibetales Quodilebet

    Suma contra os gentios – Summa contra gentiles

    Suma de teologia – Summa theologiae

    Modo de citar passagens das obras de

    Tomás de Aquino mais mencionadas aqui

    As obras de Tomás de Aquino mais citadas nesta obra são o Comentário aos Livros das Sentenças de Pedro Lombardo, os comentários a Aristóteles, a Suma de teologia, a Suma contra os gentios, as Questões quodlibetais e as Questões disputadas.

    As passagens citadas literalmente, bem como as remissões a passagens não citadas por extenso, são feitas da seguinte maneira: depois do título da obra, menciona-se o livro, a parte ou o capítulo; em seguida, a questão; por fim, o artigo. No caso da Suma contra os gentios, registram-se ocasionalmente as primeiras palavras do trecho específico.

    Suma de teologia

    Depois do título, cita-se a parte correspondente; na sequência, a questão e o artigo, além, frequentemente, da parte do artigo. A Suma de teologia compõe-se de três partes, sendo a segunda parte subdividida em duas: Primeira Parte; Primeira Parte da Parte Segunda; Segunda Parte da Parte Segunda; Terceira Parte.

    Cada parte da Suma de teologia é composta por questões centradas em temas teológicos bem delimitados (sobre a natureza divina e/ou sobre a criação e os seres humanos da perspectiva de sua relação com Deus) e são compostas de artigos a respeito de aspectos mais específicos dos temas. Os artigos, por sua vez, subdividem-se em partes, as quais, em geral, segundo a seguinte estrutura:

    (i) título com o tema do artigo sob a forma de uma pergunta inicial;

    (ii) argumentos iniciais que abrem o debate do artigo e que são tomados por Tomás de Aquino dos debates da época ou das diferentes tradições com as quais ele dialogava; esses argumentos correspondem, em geral, ao contrário do que pensava Tomás de Aquino, razão pela qual eles são chamados de objeções por alguns editores e estudiosos, o que, porém, não é inteiramente adequado, visto que nem sempre Tomás discorda dos argumentos iniciais;

    (iii) um pensamento contrário aos argumentos iniciais: geralmente um argumento de autoridade iniciado sempre pela expressão latina sed contra (em latim, mas, em sentido contrário);

    (iv) a resposta pessoal e geral de Tomás de Aquino à problemática do artigo, iniciada pela expressão Respondeo dicendum quod (Respondo dizendo que); essa resposta constitui o corpo do artigo, sua parte central e estruturante; ela não é uma resposta aos argumentos iniciais, pois, para estes, Tomás de Aquino elabora respostas específicas, como se indica aqui, na sequência;

    (v) respostas aos argumentos iniciais, quer dizer, respostas a cada aspecto singular levantado como ponto de partida da problemática; em geral, há tantas respostas quanto argumentos iniciais, mas há casos em que Tomás de Aquino afirma ser desnecessário responder aos argumentos iniciais, pois a leitura do Respondeo (o corpo do artigo) é suficiente; e costuma-se abreviar cada resposta a um argumento inicial pela preposição latina ad seguida do numeral ordinal dos argumentos iniciais (ad 3m = ao terceiro, ou seja, resposta ao terceiro argumento inicial).

    Exemplos:

    Suma de teologia I, q. 2, a. 3, Resp.: parte I, questão 2, artigo 3, corpo do artigo (Respondeo).

    Suma de teologia IIaIIae, q. 186, a. 3, ad 2m: segunda parte da Parte II, questão 186, artigo 3, resposta ao segundo argumento inicial.

    Muitas vezes, não se menciona a parte do artigo em que se encontra a citação. Isso quer dizer que a referência é a todo o artigo.

    Exemplo:

    Suma de teologia I, q. 3, a. 2: Parte I, questão 3, artigo 2.

    Suma contra os gentios

    Depois do título cita-se, geralmente, o livro e o capítulo. Em alguns casos, transcreve-se a frase que inicia o trecho que se pretende enfatizar.

    Exemplos:

    Suma contra os gentios I, 2: livro I, capítulo 2.

    Suma contra os gentios I, 13, Quod autem necesse sit: livro I, capítulo 13, trecho iniciado pela frase Quod autem necesse sit.

    Questões quodlibetais

    Depois do título, indica-se o número do conjunto de questões, também chamado Quodlibetum. Na sequência, menciona-se o número do artigo, contado de forma corrida. Todavia, é também comum citar as Questões quodlibetais reunindo-as em grupos de questões, com os artigos numerados na ordem em que aparecem no interior de cada questão, e não de maneira corrida.

    Exemplo:

    Questões quodlibetais XII, a. 24: Quodlibet XII, artigo 24 (ou artigo 1 da questão IV).

    Questões disputadas

    Depois do título, vem o número da questão, o artigo e a parte do artigo em que se encontra a citação. Quando não se menciona a parte do artigo, todo o artigo deve ser tomado como referência.

    Exemplos:

    Questão disputada sobre a verdade, q. XIV, a. 9, ad 2m: questão XIV, artigo 9, resposta ao segundo argumento inicial.

    Questão disputada sobre a verdade, q. XIV, a. 8: questão XIV, artigo 8.

    Questão disputada sobre as virtudes, a. 10, Resp.: Questão sobre as virtudes, artigo 10. Nas edições mais recentes, o artigo 10 está na questão 1, pois tais edições dividem a Questão sobre as virtudes em cinco questões. Quando houver ocorrência semelhante, será indicada.

    Comentários de Tomás de Aquino (às Escrituras, a Aristóteles e a outros textos)

    Depois do título da obra comentada, cita-se o livro em que ela é dividida, bem como o capítulo comentado (lição) do respectivo livro.

    Exemplos:

    Comentário à Ética nicomaqueia de Aristóteles II, 5: livro II, capítulo 5.

    No caso do Comentário aos Livros das Sentenças de Pedro Lombardo, citam-se o livro, a distinção (subdivisão geral, correspondente a um aspecto do tema tratado), a questão (subdivisão específica no interior de cada distinção) e o artigo ou partes deste. Por vezes, o artigo é subdividido em questiúnculas, abreviadas por qc.

    Exemplos:

    Comentário aos Livros das Sentenças de Pedro Lombardo III, dist. 27, q. 2, a. 1: livro III, distinção 27, q. 2, a. 1.

    Comentário aos Livros das Sentenças de Pedro Lombardo III, d. 10, q. 1, a. 1, qc. 2, s.c.1: livro III, distinção 10, questão 1, artigo 1, questiúncula 2, sed contra 1.

    Nos textos editados pela casa Marietti, de Turim, os parágrafos são numerados, facilitando identificar a referência.

    Exemplo:

    Comentário à Ética nicomaqueia II, 5, n. 293: livro II, capítulo 5, número 293.

    A

    Aborto → Ver Extração voluntária do feto humano

    Alegria

    Variedade terminológica. A variedade terminológica empregada por Tomás de Aquino não deve confundir o leitor. Prazer, deleite, alegria (A.), júbilo, exultação são termos a que os tradutores de língua portuguesa recorrem para expressar o vocabulário diversificado que aparece nos textos, com maior ou menor frequência. Cada um desses termos desempenha um papel razoavelmente nítido na psicologia/ética tomasiana ( Moral), e a apresentação de um rol de equivalências terminológicas tem maior chance de êxito quando compreendemos o quadro conceitual mais amplo em que esses termos são empregados. Mesmo assim, como diz Marco Zingano em sua tradução comentada do Tratado da virtude moral de Aristóteles, é sempre difícil traduzir uma lista de emoções, pois se trata de transpor, à nova língua, toda uma sutil anatomia da alma humana baseada no uso da primeira língua (ARISTÓTELES, 2008, p. 120). A A. (gaudium) é uma espécie de prazer (delectatio), e este é o repouso do desejo no bem amado e obtido. Mais tecnicamente, o prazer é uma das paixões da parte concupiscível da alma, que, junto com o irascível, compõe a potência sensitiva da alma. O cenário precisa ser ampliado, e convém recuarmos um pouco mais. Para fins didáticos, podemos dizer que, segundo a psicologia tomasiana, o ser humano se relaciona com o mundo em dois sentidos: do mundo para si, percebendo, apreendendo, conhecendo o mundo, e de si para o mundo, reagindo ao mundo, inclinando-se a ele ou afastando-se dele. Em cada caso, faz isso de acordo com dois aspectos: um, sensível (particular); outro, intelectual ( Universais).

    Potências da alma. A combinação disso é o que explica uma estrutura quádrupla das potências da alma humana: (i) uma potência apreensiva sensitiva, (ii) uma potência apreensiva intelectiva, (iii) uma potência desejante sensitiva, e (iv) uma potência desejante intelectiva. Baseando-se sobretudo no De Anima II, de Aristóteles, Tomás de Aquino atribui à potência apreensiva sensitiva a função de captar os singulares no mundo, isto é, captar a realidade como estímulos materiais particulares. Para tanto, existem os sentidos externos e os sentidos internos. Os cinco sentidos externos captam aspectos do objeto particular: a visão capta a cor da coisa; a audição, o som; o olfato, o odor; o paladar, o sabor; o tato, a temperatura. Em todos os casos, temos órgãos corporais capacitados ao recebimento de tais estímulos. Vale notar que, sem o estímulo do objeto, a potência não é atualizada: não há visão a não ser de algo particular que seja visto. No indivíduo cognoscente, esses estímulos captados pelos sentidos externos tornam-se o objeto dos sentidos internos: o sentido comum, a imaginação, a cogitativa (estimativa nos outros animais) e a memória. O resultado é a formação de uma imagem ou figuração (phantasma). Até aqui ainda estamos no registro do material (cf. LANDIM FILHO, 2013). Como, porém, o ser humano tem um princípio imaterial, será na potência apreensiva intelectiva que se formarão conceitos abstratos e gerais. Tomás fala de dois intelectos, o agente e o possível. O agente extrai ou ilumina o inteligível potencialmente contido nas imagens/figurações; e as determinações inteligíveis (espécies) que são recebidas no intelecto possível o atualizam, permitindo-lhe formar o verbo mental (conceitos e proposições), expresso pela linguagem. Incide, nesse ponto, o princípio segundo o qual tudo o que é recebido em algo é recebido de acordo com o modo do recipiente (cf. Suma de teologia I, q. 75, a. 5). Aqui não há um órgão corporal que possa ser indicado como responsável pela operação: somente sendo imaterial pode o intelecto formar conceitos abstratos, imateriais, universais, e articulá-los em proposições – por isso, o objeto da potência apreensiva intelectiva diz respeito também ao verdadeiro e ao falso (cf. LANDIM FILHO, 2010; 2011). Como reação ao que é apreendido sensivelmente (Tomás de Aquino fala de uma inclinação que segue a apreensão – inclinatio consequens aprehensionem), há uma potência desejante sensitiva, que toma os objetos apreendidos pela potência apreensiva sensitiva sob o aspecto preciso de bem particular ou mal particular. Estamos no registro das paixões da alma (sentimentos), que se dividem em dois grandes grupos: o concupiscível, que se inclina para aquilo que é tomado como bom ou se afasta daquilo que é tomado como mau, e o irascível, que suporta ou ataca um mal, quando este está associado a um bem maior. O objeto do concupiscível é, portanto, o bem ou o mal sensível, tomado em si mesmo sem outras considerações (bonum vel malum sensibile simpliciter acceptum), o que Tomás de Aquino também chama de prazeroso e doloroso (delectabile vel dolorosum). O objeto do irascível é voltado ao bem e ao mal misturados com dificuldades (bonum vel malum sub ratione ardui). Aristóteles é também aqui a fonte das distinções (cf. Comentário à Ética nicomaqueia de Aristóteles, especialmente II, 5). Finalmente, completando a estrutura quádrupla das potências da alma, como inclinação ao que é apreendido intelectualmente, há uma potência desejante intelectiva, que toma as coisas como boas, mas, agora, sob o aspecto universal de bem. A essa potência também é dado o nome de vontade (cf. Suma de teologia I, q. 82-83; IaIIae, q. 8-17; Questões disputadas sobre a verdade, q. 22).

    Prazer e alegria. O prazer, gênero da A., está elencado entre as paixões do concupiscível. Na Suma de teologia IaIIae, no interior de um bloco de questões ao qual se costuma chamar de Tratado das paixões (cujo antecedente próximo é o De Bono, de Alberto Magno, mas cuja inspiração principal é, uma vez mais, Aristóteles), Tomás de Aquino analisa três pares de paixões do concupiscível, conforme tenham por objeto o bem ou o mal: amor e ódio (q. 26-29), concupiscência/desejo e repugnância (q. 30), prazer e tristeza/dor (q. 31-39). Vale lembrar que, embora o Tratado das paixões esteja, na Suma de teologia, inserido num âmbito de tipo requintadamente ético, como diz Pasquale Porro, as paixões não são, isoladamente, objeto de avaliação moral, mas concorrem para explicar as disposições que terão, essas, sim, qualidades morais em sentido estrito, ou seja, as virtudes. Esse lembrete será fundamental para se entender o papel da A. na ação moral (para uma visão abrangente e acurada sobre o papel das paixões na ética tomasiana, cf. UFFENHEIMER-LIPPENS, 2003; para uma visão crítica que explora a interpretação, segundo a qual dor e prazer seguem a apreensão dos sentidos exteriores, ao passo que tristeza e A. seguem a apreensão interior, seja do intelecto, seja da imaginação, cf. DE HAAN, 2015 – o desafio dessa interpretação consiste, porém, em explicar de que modo os animais irracionais se alegram ou se entristecem, o que parece ser textualmente negado por Tomás de Aquino). No Comentário à Ética nicomaqueia de Aristóteles (II, 5, n. 293), Tomás de Aquino afirma que todas as paixões que têm por objeto algo sob o aspecto puro e simples de bem ou mal estão no desejo concupiscível, e que são três as que têm por objeto o bem: o amor (amor), que implica certa conaturalidade do desejo com o bem amado; o desejo (desiderium), que implica um movimento para o bem que é amado, e o prazer (delectatio), que implica o repouso do desejo no bem amado. Ao comentar a exemplificação das paixões feita por Aristóteles, Tomás de Aquino faz acompanhar o termo latino gaudium (que traduz o grego charán) por um rápido mas importante esclarecimento: e a alegria, que se situa sob o prazer, não está em prazer corporal, mas consiste em apreensão interior (ibidem). A síntese de Pasquale Porro é muito feliz: O amor é, com efeito, a paixão relativa à inclinação ou predisposição ou conaturalidade ao bem; se esse bem não é ainda possuído, [o amor] produz o desejo ou a concupiscência; quando, porém, o desejo se aquieta no bem conseguido, tem-se o prazer ou a alegria (PORRO, 2004, p. 247). Essa síntese só não é completa porque não apresenta o traço distintivo da A. em relação ao prazer. O bem é causa do amor, e o é sendo objeto de apreensão/ conhecimento por um desejo. Conforme o tipo de conhecimento, sensível ou intelectual, teremos um tipo diferente de repouso. O repouso que sucede um princípio sensível será chamado de prazer. O repouso que sucede um princípio intelectual ou espiritual será chamado de A. O sentido da afirmação de que A. é uma espécie de prazer não fica comprometido com a distinção anterior, uma vez que tudo o que desejamos segundo a natureza, podemos também desejá-lo com o prazer da razão (Suma de teologia IaIIae, q. 31, a. 3). Isso aponta para uma convertibilidade, ao menos unilateral, entre prazer sensível e A., desde que (i) se trate de um ser dotado de razão (os animais irracionais não se alegram, mas apenas têm prazer) e desde que (ii) aquilo que a apreensão, o desejo e o repouso no bem (que ocorre no registro sensível) seja como que replicado e confirmado igualmente no registro intelectual. É o que Tomás de Aquino chama de conhecimento perfeito do fim: quando não só se conhece o que é o fim e o bem, mas também o aspecto universal do fim e do bem (ibidem, q. 11, a. 2). E é por essa razão que ele reserva a palavra alegria (gaudium) aos prazeres consecutivos à razão (nomem gaudii non habet locum nisi in delectatione quae consequitur ratione, ibidem, q. 31, a. 3). Embora menos frequentes, as palavras laetitia e exultatio também significam o mesmo que A. (cf. ibidem, q. 31 a. 3, ad 3m, e q. 33 a. 1, sed contra). Nas Questões disputadas sobre a verdade, ao indagar se as potências sensitivas permanecem na alma separada do corpo (cf. q. 19), Tomás de Aquino esclarece que não há A. na alma separada do corpo, se por A. tomamos um ato do desejo concupiscível, pois este está na parte sensitiva da alma. No entanto, se a tomamos como o repouso do movimento da vontade no bem, aí podemos atribuí-la à alma separada, porque a vontade está na parte intelectiva da alma. Num certo sentido, a A. seria, portanto, uma pseudopaixão (cf. KING, 2002). Como o prazer – que é dito do desejo intelectual – não é repouso de uma paixão sensível, pois não comporta mudança corporal, os anjos, embora não sejam capazes de prazeres sensíveis, se alegram com Deus (cf. Suma de teologia IaIIae, q. 31, a. 4, ad 2m), e isso os humanos têm em comum com os anjos (cf. ibidem, q. 31, a. 4, ad 2m).

    A atemporalidade da alegria. Para Tomás de Aquino, o ser humano é uma criatura composta de corpo material e alma racional imaterial. A prova da imaterialidade do intelecto não pode ser aqui desenvolvida, mas de sua admissão depende o complexo edifício da psicologia e da antropologia filosófica tomasiana (cf. PASNAU, 2002). Isso não faz de Tomás de Aquino um dualista que, para garantir a permanência de noções como Deus, anjo e intelecto imaterial no discurso sobre a realidade, precisaria refutar o materialismo, segundo o qual tudo o que existe deve ser redutível a algum princípio físico, apelando, então, para a cisão da realidade em material e imaterial. O conceito unificante de toda a realidade não é, para Tomás de Aquino, o de materialidade ou imaterialidade das coisas, mas o de atualidade. E, se seguirmos a interpretação de Robert Pasnau (cf. ibidem, p. 137), a distinção entre material e imaterial não significa dois tipos de coisas, mas duas classes de atualidade. A atualidade material é aquela que está sujeita a alteração, geração e corrupção. Dizer que algo é material é simplesmente dizer que existe em ato sob essas condições, de alteração, geração e corruptibilidade. Dizer que algo é imaterial é dizer que existe sem essas características. É por isso que o intelecto humano, embora esteja sujeito a alterações por pensamentos e conceitos, não se modifica como as coisas materiais, em que o recebimento de algo implica o afastamento de outro. No intelecto, o recebimento das formas acontece sem que se perca qualquer coisa (cf. Suma contra os Gentios II, 49). Essa pequena digressão ajuda a explicar por que, no seu sentido estrito, a A. não se deixa reduzir a algo efêmero, a um sentimento passageiro, como pode acontecer, ainda que acidentalmente, com prazeres estritamente sensíveis (cf. Suma de teologia IaIIae, q. 31, a. 2). Para Tomás de Aquino, o prazer em si mesmo, na medida em que é termo de movimento, não está no tempo, a não ser acidentalmente, quando a posse do bem amado está sujeita a mudança. Por isso, com os prazeres intelectuais não haveria transitoriedade nem uma saciedade que impedisse a ingestão prazerosa de mais e mais conhecimento. O ponto tem origem na discussão de Aristóteles sobre o prazer nos Livros VII e X da Ética nicomaqueia (para uma visão contemporânea sobre o assunto, que explora as diferenças entre as teses apresentadas no Livro VII e no Livro X, cf. OWEN, 2010). No Comentário à Ética nicomaqueia de Aristóteles (VII, 12, 1486-1492), Tomás de Aquino enfrenta a distinção que permitirá entender o modo pelo qual um prazer pode ser dito perfeitamente bom. Ou bem o prazer está acompanhando uma ação que, por sua vez, ainda está produzindo um hábito no sujeito (hábito entendido como habilidade, habilitação), ou bem o prazer está acompanhando uma atividade que já é derivada de um hábito formado. Somente no segundo caso, o prazer pode ser dito perfeito, porque está ligado a uma atividade que procede de um hábito, ou seja, de alguma natureza ou forma já existente e acabada, enquanto, no primeiro caso, os prazeres que acompanham atividades que ainda estão produzindo hábitos ou naturezas devem ser considerados prazeres apenas de maneira acidental, não genuinamente. O cenário pode ser resumido assim: (i) temos uma potência primeira que permite a ação; (ii) essa ação i está produzindo um hábito e pode ser acompanhada de prazer (aqui o prazer ainda é imperfeito); (iii) com a reiteração das ações do tipo ii produz-se uma potência segunda, forma-se um hábito completo; (iv) a ação que parte, então, dessa potência segunda é o que Tomás de Aquino chama de perfectio secunda, e é com relação a ela que o prazer é dito perfeito, como uma operação conatural de um hábito já existente. A reconstrução aplica-se plenamente ao caso das virtudes adquiridas. O caso de virtudes infusas, especialmente o da A. como efeito da caridade, será examinado mais adiante (para uma análise das noções de virtude infusa e de virtude adquirida, permitimo-nos indicar nosso trabalho: GESSINGER, 2016). Essa distinção entre o prazer que acompanha uma ação que, por sua vez, está gerando virtude e o prazer que acompanha a ação perfeitamente virtuosa – com o hábito já formado – faz com que o prazer possa, na ética, ter o aspecto de fim, pois dizer que o ser humano busca o prazer ou a A. não significa reduzi-lo a um escravo de desejos inconstantes, mas aponta, na verdade, para a coroação da bondade moral, que não depende apenas da conformidade exterior da ação, mas sobretudo da combinação dessa com a perfeição dos desejos que é forjada pela razão. No desejo do bem, amor (amor), desejo (desiderium) e prazer (delectatio) são dispostos em ordens distintas, conforme se esteja falando da geração ou do aspecto de fim. Na ordem da geração, o amor e o desejo são primeiros; o prazer, último. Na ordem do aspecto de fim, o prazer é primeiro (cf. Suma de teologia IaIIae, q. 34, a. 4, ad 1m), porque ele é o descanso do desejo completo no bem. E se esse desejo é também racional, esse prazer chama-se A. É por isso que, quando Tomás de Aquino discute se o prazer é a medida e a regra para se julgar o bem e o mal moral, a resposta é serenamente afirmativa, não porque qualquer prazer funcione como critério moral, mas porque o prazer verdadeiro, aquele que é o descanso da vontade formada do ser humano virtuoso no bem obtido, funciona como princípio prático (cf. ibidem, q. 34, a. 4, Resp., ad 1m e ad 2m). A bondade moral perfeita retira seu critério também do interior do agente (cf. Comentário à Ética nicomaqueia de Aristóteles X, 6-8), pois "será bom e virtuoso quem se alegra (gaudet) nas ações virtuosas e boas; e mau, nas ações más" (Suma de teologia IaIIae, q. 34, a. 4). Sem a A. genuína, a ação moral não pode ser considerada perfeita. Somente quando o caráter do agente se compraz com o repouso de seu desejo refletido no verdadeiro bem, quando ele se deleita com sua própria atividade, aí então temos a perfeição da ação moral coroada pela A. (cf. ibidem, q. 33, a. 4).

    Alegria espiritual. Fora daquele que poderia ser chamado de Tratado das paixões, que está na Primeira Parte da Segunda Parte da Suma de teologia, Tomás de Aquino dedica uma questão com quatro artigos à A. (De gaudio) dentro da análise das virtudes especiais, na Segunda Parte da Segunda Parte da Suma de teologia IIaIIae, q. 28, mais precisamente, na análise da virtude teologal e, portanto, infusa, da caridade. O ato principal da caridade, o amor (dilectio), tem efeitos exteriores e interiores. Os efeitos exteriores são a beneficência, a esmola e a correção fraterna (cf. ibidem, IIaIIae, q. 31-33). Os efeitos interiores do ato principal da caridade são a A., a paz e a misericórdia. Para Tomás de Aquino, Deus está de certo modo presente naqueles que o amam, mesmo nesta vida, pela graça (cf. ibidem, q. 28, a. 1, ad 1m), mas o amor de benevolência, que causa a A., decorre principalmente do fato de aquele que amamos estar em posse de seu bem próprio e o conservar (cf. ibidem, q. 28, a. 1). Por isso, como Deus mesmo é sua própria bondade e seu bem é perfeito e imutável, quem o ama com amor de benevolência se alegra consistentemente, mesmo que a participação perfeita no bem divino seja impedida pela miséria desta vida (cf. ibidem, q. 28, a. 2, ad 3m). A aproximação de Deus pela graça, isto é, pela infusão da virtude teologal da caridade, produz essa A. espiritual (spirituale gaudium), que, no entanto, não faz cessar nosso desejo de modo absoluto enquanto estivermos in via. "Mas quando atingirmos a perfeita bem-aventurança, nada mais restará a desejar, porque então haverá a fruição completa de Deus, na qual o ser humano obterá também tudo acerca de quaisquer outros bens que tenha desejado. […] A alegria dos bem-aventurados é, portanto, absolutamente plena, e até mais que plena, porque eles obterão mais do que tudo aquilo que tenham podido desejar, como é dito em 1Cor 2,9: O coração do ser humano nunca percebeu o que Deus preparou para aqueles que o amam. […] Entretanto, como nenhuma criatura é capaz de uma alegria condigna à de Deus, segue-se que essa alegria absolutamente perfeita não é absorvida no ser humano, mas, antes, o ser humano é que é absorvido nela, como se lê em Mt 25,21-23: Entra na alegria do teu Senhor" (ibidem, q. 28, a. 3).

    Alegria como fruto do Espírito Santo. Na Epístola aos Gálatas (Gl 5,22), São Paulo lista a A. como um dos frutos do Espírito Santo. Comentando a passagem (cf. Comentário à Carta de Paulo aos Gálatas, lição 6), Tomás de Aquino distingue entre dons, bem-aventuranças, virtudes e frutos. Numa virtude pode-se considerar o hábito (habitus) e o ato (actus), sendo o hábito aquilo que qualifica uma pessoa a agir bem. Se ele a qualifica para agir bem no modo humano, chama-se virtude; se o hábito, porém, qualifica a pessoa a agir de modo superior à condição humana, chama-se dom. Por isso, o conhecimento das coisas enigmáticas de Deus ainda ao modo humano ocorre pela virtude da fé, mas o conhecimento das mesmas coisas de maneira mais penetrante e de modo sobre-humano pertence ao dom do entendimento (ad donum intellectus). Quanto ao ato da virtude, ele pode ser dito tanto perfeito/tornado perfeito (perficiens), caso em que é uma bem-aventurança, como pode ser dito fonte de prazer (delectans), caso em que se chama fruto. A caridade é o princípio da perfeição, mas o fim último, que torna perfeito o interior do ser humano, é a A., que procede da presença do bem amado. E, para que essa A. seja perfeita, duas condições devem ser atendidas: (i) que a coisa amada seja suficiente para tornar perfeito quem ama, caso em que se chamará paz; e (ii) que haja a fruição perfeita do bem amado, isenta de impedimentos. Numa linda imagem, Tomás de Aquino diz que os frutos também podem ser chamados flores, a respeito da vida futura, porque, assim como nas flores está o início dos frutos, nestes está o início da felicidade perfeita, quando o conhecimento e o amor serão perfeitos.

    Bibliografia: ALBERTO MAGNO. De Bono. Feckes/Geyer (ed.). Münster, 1951. (Editio coloniensis, Tomus XXVIII.) ARISTÓTELES. Ethica Nicomachea I 13 – III 8: Tratado da virtude moral. Tradução, notas e comentários de Marco Zingano. São Paulo: Odysseus, 2008. AZEVEDO JÚNIOR, N. S. O transbordamento da razão: um estudo sobre a influência do intelecto na vis cogitativa. 2013. 113 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-graduação em Filosofia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. Disponível em: . Acesso em: 1o jul. 2022. DE HAAN, D. D. Delectatio, gaudium, fruitio: Three Kinds of Pleasure for Three Kinds of Knowledge in Thomas Aquinas. Quaestio, 15, p. 543-552, 2015. GESSINGER, R. K. A causação das virtudes: virtude adquirida e virtude infusa em Tomás de Aquino. 2016. 224 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-graduação em Filosofia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. Disponível em: . Acesso em: 1o jul. 2022. KING, P. Aquinas on the passions. In: DAVIES, B. (ed.). Thomas Aquinas: Contemporary Philosophical Perspectives. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 353-384. LANDIM FILHO, R. Conceito e objeto em Tomás de Aquino. Analytica, 14 (2), p. 65-88, 2010. _____. Do real ao singular pela mediação do universal: observações sobre o conhecimento intelectual do singular material e sua relação com a Conversão à Imagem Sensível em Tomás de Aquino. Analytica, 17 (2), p. 199-220, 2013. _____. Tomás de Aquino: realista direto? Analytica, 15 (2), p. 13-38, 2011. OWEN, G. E. L. Prazeres aristotélicos. In: ZINGANO, M. (org.). Sobre a ética nicomaqueia de Aristóteles. São Paulo: Odysseus, 2010, p. 84-102. PASNAU, R. Thomas Aquinas on Human Nature: a Philosophical Study of Summa theologiae Iª 75-89. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. PORRO, P. Tomás de Aquino: um perfil histórico-filosófico. São Paulo: Loyola, 2004. UFFENHEIMER-LIPPENS, E. Rationalized Passion and Passionate Rationality: Thomas Aquinas on the Relation between Reason and the Passions. The Review of Metaphysics, 56 (3), p. 525-558, 2003.

    Rafael Koerig Gessinger

    Alma → Ver Vida; Ser Humano; Pessoa; Imortalidade

    Amizade

    Etimologia e fontes. O termo amizade (A.) origina-se do latim amicitia, cognato, por sua vez, de amor, conforme a interpretação de Cícero (cf. A amizade, 26). Para Isidoro de Sevilha (Etimologias X, 4), porém, amigo (amicus) teria origem na expressão animi custos (guardião da alma). Cícero oferece uma das mais célebres definições da A.: Nada mais é que o acordo perfeito de todas as coisas divinas e humanas, acompanhado de afeto e de benevolência (A amizade, 20). Mesmo se inspirando no pensamento do orador romano, Tomás de Aquino o coteja sobretudo com a obra de Aristóteles – cujo original grego para A. é philía – para formar a sua teoria sobre a A., em particular em sua dimensão ética e política. É explícita ainda a influência de Agostinho, que classificou o amigo como uma espécie de metade de sua alma (dimidium animae suae; citando Confissões 4, 6 na Suma de teologia IaIIae, q. 28, a. 1, Resp.). O Evangelho de João é a fonte principal para a perspectiva cristã, além de servir de base para abordar a virtude da caridade.

    Características fundamentais. De modo geral, a A. é o hábito de amor de benevolência mútuo (hábito entendido como habilidade, habilitação). É hábito, pois permanece mesmo quando não atualizado (cf. Comentário à Ética nicomaqueia de Aristóteles VIII, 1; VIII, 5), ao passo que a benevolência é o próprio princípio da A. (cf. Suma de teologia IIaIIae, q. 27, a. 2, Resp.; Comentário à Ética nicomaqueia de Aristóteles IX, 5, 5). A reciprocidade explícita é condição fundamental para a A., haurindo-se na concórdia de vontades ou de escolhas (e não necessariamente de opiniões), conforme o clássico provérbio de Salústio (Catilinárias, 20, 4), com frequência citado por Tomás (mas atribuído por este a Cícero): "Querer ou não querer as mesmas coisas (idem velle atque idem nolle), só isso constitui a verdadeira amizade. Tal benevolência recíproca impede a existência de A. entre pessoas muito díspares, como entre senhor e servo, pois, nesse caso, todo o bem do servo é do senhor, assim como todo o bem do instrumento pertence ao artífice" (Comentário à Ética nicomaqueia de Aristóteles VIII, 11, 12). Tampouco existe A. com seres irracionais, pois são incapazes de amor recíproco (redamatio); são amados apenas por concupiscência, não por benevolência (cf. ibidem, VIII, 2, 7). Inexiste também a A. para consigo mesmo (apenas amor), por intrínseca falta de permutação, pela coincidência do sujeito com o objeto. Em contrapartida, o amor a si mesmo, quando direcionado à perfeição, estende-se naturalmente a amar os demais como amigos (como alter ipse: Suma de teologia IaIIae, q. 28, a. 1, Resp.) e os bens deles como se lhe fossem próprios (cf. Suma contra os gentios III, 95, 5). Contudo, a A. não é considerada uma virtude propriamente, pois as virtudes podem subsistir de modo unilateral (cf. Comentário à Ética nicomaqueia de Aristóteles VIII, 5, 10). Na realidade, a A. é consequência habitual da posse das virtudes, pois favorece na própria obtenção de uma vida virtuosa. Por vezes, porém, o termo A. é tomado no sentido de afabilidade, isto é, a virtude que permite a convivência amigável entre os seres humanos, cujo oposto é o litígio (cf. Suma de teologia IaIIae, q. 60, a. 5, Resp.; IIaIIae, q. 114, a. 1; q. 116, per totum). A benevolência, quando se traduz em atos, torna-se beneficência, por meio da qual se conservam as A. (cf. Comentário à Ética nicomaqueia de Aristóteles VIII, 1, 2).

    Amizade e comunhão. O ser humano, animal político, tende naturalmente à vida social, exigindo a A. para compartilhar benefícios com os circunstantes. Ora, está no próprio aspecto da A. a sua comunicabilidade, ou seja: ao observar o bem em outrem ou em si próprio, o ser humano é naturalmente atraído a travar A., num movimento de gratidão e de benevolência, traduzido na convivência e no intercâmbio de bens materiais e espirituais. Por ser hábito, a A. exige certa prática frequente de relacionamento próximo ou mesmo íntimo. Permite ainda se alegrar pela presença dos amigos e por seus bens, por certa participação (cf. Comentário à Ética nicomaqueia de Aristóteles VIII, 1, 3; 5, 5; IX, 10, 15), e é de algum modo difusível entre os próximos dos amigos (como os familiares). Para o Aquinate, um dos sinais de autêntica A. é a permuta dos segredos do coração (cf. Comentário ao Evangelho de João, XV, 3). Tal comunhão baseada no amor é ainda uma participação da união do ser humano com Deus.

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