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Relatos De Terra, Vento e Escamas
Relatos De Terra, Vento e Escamas
Relatos De Terra, Vento e Escamas
E-book249 páginas2 horas

Relatos De Terra, Vento e Escamas

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Sobre este e-book

Se você gostou de algumas histórias de Juan Rulfo, Benedetti, Cortázar, Borges, F. Scott Fitzgerald, Carver, Shirley Jackson, Eloy Tizón, Lorrie Moore, Ted Chiang, John Cheever, Richard Ford, Flannery O'Connor, Clarice Lispector, Cynthia Ozick, Tobias Wolff, Ítalo Calvino, Hipólito Navarro, Anton Chekhov, Washington Irving, Peixoto, Valter Hugo ou Tabares, é certo que irá gostar de uma destas mais de 60 histórias.

Talvez nem tudo neste livro seja para todos, mas há algo nele para cada um.

Porque este livro é mais do que uma coleção de contos.

É algo diferente e não fácil de categorizar.

Essa é, precisamente, a sua maior virtude.


Esta antologia são 63 contos curtos selecionados que abrangem diferentes gêneros, realidades e emoções. Alguns são extensos, outros meros suspiros. Uns parecer-te-ão familiares, mas outros poderão parecer-te estranhos, até alienígenas. São pinceladas, são fotogramas narrativos; são histórias que nos convidam a sonhar, mas também a refletir. E é que, nestas páginas, todos os contos partilham um fio comum: a busca pela verdade, pela beleza e pela emoção genuína. É como se o autor, que nos guia pela mão com uma voz narrativa que se move com destreza tanto pela introspeção psicológica como pela descrição poética, quisesse lembrar-nos que a beleza e a complexidade não são exclusivas, mas que, frequentemente, se encontram entrelaçadas, nessa intrincada dança que é a existência, a complexidade da alma humana e o mundo que nos rodeia.

Não é apenas um livro, é uma experiência literária e, por isso, mais do que as palavras, o que realmente importa é o que estes contos despertam em ti.

 

RUBÉN ZAMORA EQUERT é um ator com uma trajetória destacada na televisão e no cinema. Participou em dezenas de projetos, alguns dos quais tiveram alcance internacional, e já soma mais de 30 anos de experiência e a sorte de ter explorado uma ampla gama de personagens e géneros. No entanto, a sua paixão por contar histórias vai além da atuação. Ele não apenas escreveu e dirigiu diversos roteiros, mas também é autor dos livros Sobreviviéndome e Mañana, cuando sigamos vivos, da série Os Filhos do Fim do Mundo. A terceira e última parte desta série, S.A.M. e os Filhos do Fim do Mundo, está em preparação, assim como O comissionado, onde o futuro, o amor e o impossível poderão ter um banquete inesperado. 

IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de mai. de 2024
ISBN9786072955202
Relatos De Terra, Vento e Escamas
Autor

Ruben Zamora Equert

Rubén Zamora Equert é um ator com uma carreira séria na TV e no cinema, participando de projetos que deram a volta ao mundo, como o último filme do vencedor de vários Oscars, Alejandro González Iñárritu: Bardo, falsa crônica de algumas verdades. Tudo isso lhe deu a oportunidade de explorar personagens e gêneros muito diferentes, mas sua paixão por contar histórias vai além da atuação. Além de escrever e dirigir diversos roteiros, publicou dois livros: "Surviving Me" e "Stories of Earth, Wind and Scales", uma antologia de contos selecionados que já foi traduzida para vários idiomas, inclusive inglês, para português.

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    Relatos De Terra, Vento e Escamas - Ruben Zamora Equert

    Sonhando vidas,vivendo sonhos

    Finalmente ouve o seu nome. Como não ouvir esse último grito, que sai certeiro do quarto através da parede de madeira desse segundo andar. Encontra o homenzinho desmoronado no chão do corredor, com as costas curvadas, a cabeça entre os braços e as mãos apertando com força as orelhas. Assim conseguiu não ouvir muitos dos anteriores, e os que ouviu não lhe doeram demasiado. Não importa, este é um grito diferente, desolador e infinito. Entra pela pele, ossos e entranhas e não para de procurar até encontrar a sua alma, cobarde, que se encolheu e escondeu atrás do coração, para que ninguém a encontrasse. Então a desnuda, atravessa-a e sacode-a. O grito, tendo cumprido o seu propósito, transforma-se e sai desse corpo magro convertido em babas e ranho, e em gemido de vergonha.

    Bate nas têmporas e no rosto com os punhos; agarra os poucos cabelos nas laterais da cabeça e puxa-os. Talvez pense que a dor do corpo pode distrair a dor do seu coração aterrorizado e enlouquecido, que se sente impotente agora que finalmente entendeu – é lento a entender – a solidão da sua mulher, que está a dar à luz sem ele. Todo o dia e metade da noite de parto e a criatura ainda por nascer.

    João!

    Não aguenta mais. Finalmente, o medo da sua amada esposa supera o seu próprio medo e ele levanta-se e abre a porta, acompanhando o eco do último grito. O seu corpo destaca-se no vão da porta. Veste uma camisa branca desgastada e umas calças castanhas de tecido grosso que servem tanto para ir matar uma galinha como para ir à igreja aos domingos. Parece mais um trabalhador do que o taberneiro que sempre foi. Nunca se preocupou com as aparências. Apenas com o trabalho árduo e honesto, e com a sua família.

    O quarto é amplo, com uma cama no centro cujos lençóis, outrora claros, agora estão húmidos e ensanguentados. A sua mulher agarra-se aos lados com essa força quase inumana, típica de fêmea. Ela vê-o e faz força outra vez, mas a barriga não se esvazia.

    O facto de não ter entrado antes faz com que ele se aproxime da sua esposa de cabeça baixa. Chega à cama e é Marga que lhe pega na mão sem reclamações e com força. Ele obrigase a levantar o olhar e encontra-se com o olhar exausto e agradecido da sua mulher.

    O médico está a um par de metros de um lado da cama, vestido de preto com os braços atrás das costas e o chapéu de copa emoldura uma cabeleira cinza que termina num rabo de cavalo descuidado atado com uma fita preta de algodão. Os seus traços são os de uma ave de rapina: o rosto anguloso pontilhado por uma barbicha também grisalha, o nariz aquilino e o corpo curvado. É um dos melhores médicos da cidade e só atende membros da nobreza e verdadeiros comerciantes, não como esse taberneiro. Se não fosse pelos rogos do homenzinho. Não. Se não fosse porque esse estúpido lhe pagou antecipadamente o triplo do que é habitual para contratar os seus serviços, não teria posto um único bota nesse bairro, nessa casa, nem nesse chão envelhecido. Até agora não se intrometeu. Inclusive conseguiu manter a maleta sem abrir.

    Juan apercebe-se disso e olha para o médico, surpreendido. O que vê nesses pequenos e negros olhos não é vergonha, é um desprezo calmo e descarado. Apercebe-se de que o dinheiro que já lhe deu, as suas poupanças de anos, só lhe bastaram, por muito que tenha sido, para que esse maldito médico de linhagem espere no quarto até que tenha de certificar a morte da sua mulher, do seu filho ou dos dois. O taberneiro agora sabe, embora devesse ter percebido antes de ser tarde demais. Perde o equilíbrio e não cai no chão porque é a sua mulher que o segura pela mão e o faz voltar para o seu lado.

    Solta-se da sua esposa e olha para a parteira. A Jacinta, vive no final da rua dos Dobrões e é viúva de Manuel, o arreeiro. Está de joelhos entre as pernas da sua esposa e coberta de sangue até os cotovelos. O sangue e os fluidos desse parto que não acaba de acontecer, vão para um recipiente de água quente que uma das criadas da taberna troca por outro com água nova uma e outra vez.

    Uma andorinha voa por cima da cama e desaparece através da pequena janela na noite; uma barata escala a casaca do médico que, ao darse conta, afasta-a com uma palmada e cai no chão onde o homem a pisa rapidamente antes que o inseto reaja. O suor e a dor enchem o quarto, mas nesse momento o som críspido é o único que se ouve.

    Um gemido de alívio interrompe outro grito, prolongado e ondulante. A mão da mulher relaxa e solta-se. O homem procura essa mão com o olhar porque pensa que caiu no chão e desfez-se. A parteira levanta-se. Juan, assustado, dá dois passos para trás. A vizinha avança e entrega-lhe um embrulho minúsculo. Diz-lhe que é uma menina e Juan alegra-se, porque só tem filhos.

    Um gemido de alívio interrompe outro grito, prolongado e ondulante. A mão da mulher relaxa e solta-se. O homem procura essa mão com o olhar porque pensa que caiu no chão e desfez-se. A parteira levanta-se. Juan, assustado, dá dois passos para trás. A vizinha avança e entrega-lhe um embrulho minúsculo. Diz-lhe que é uma menina e Juan alegra-se, porque só tem filhos. E olha para ela e, embora ainda esteja cheia de sangue e muco, é a coisa mais linda que já viu na vida. E é a sua filha e parece-se com a sua Marga e também se parece com a sua irmã mais nova, a Sara. Assim se vai chamar, pelo seu cabelo claro e a sua boca aberta num pequeno sorriso. E embala-a nos seus braços e acaricia-a. E é o momento mais feliz da sua vida. E Juan chora e ri de absoluta felicidade olhando para a menina. A sua mulher já dorme, exausta.

    E Juan vê a Sara crescer, e vê-a dar os primeiros passos, com uma dificuldade que vai além da sua idade. E o médico continua lá implacável, inalterável, uma sombra que escurece a sua vida, só que Juan não ousa mandá-lo embora, com medo de que algo aconteça à sua filha. E a sua filha é um belo saco de ossos com caracóis no topo, e ele vê-a deitada na cama, como a sua mãe estava quando nasceu, há já dez anos, com o cabelo encharcado de suor, colado à almofada, com os olhos fechados e o rosto salpicado; e cheira a doença e arde em febre e o médico continua sem se mexer, no mesmo quarto, na mesma posição, com o mesmo desprezo no olhar. E a sua pequena Sara morre, dizendo que vai com Deus. E um leve arranhão no chão gelado recebe a caixa de madeira, pequena e insignificante, e a terra fecha-se e abraça-a, cobrindo a sua filha para sempre. E Juan levanta o olhar da sepultura e encontra um sorriso de triunfo no rosto do médico. E pedaços de tecido negro caem no chão. O médico transforma-se em corvo, levanta voo e devora o coração de uma andorinha enquanto voa.

    Do chão de madeira da sua taberna, Juan grita. Grita com todas as suas forças ao corvo, ao céu e à sua própria miséria. Um grito que engole outro grito, que devora aquele que vem do quarto onde Marga está a dar à luz. No entanto, o homem no chão silencia-se a meio desse uivo e só fica, mitigado, o que vem do outro lado: há algo que não faz sentido para o homem, que não se encaixa. Passa as mãos pela madeira do chão desse andar. Deveria estar podre, com buracos, e não está. Quis mudá-la quando Sara fez oito anos, mas não tinham dinheiro suficiente. Ou era a reparação do chão ou os cuidados da menina. Volta a acariciar a madeira. Parece velha e delicada, desgastada nos pontos de maior passagem, mas se a cuidarem ainda durará vários anos.

    Levanta-se com cuidado dos seus ossos, pensando na menina e por que estava deitado ali no chão. Não lhe dói nada, como deveria. Será que foi drogado porque aconteceu algo mais depois da morte de Sara? Morreu algum dos seus outros filhos e não se lembra? Marga morreu! Deve ser isso e, ao não suportar a dor, pediu que lhe dessem algo que adormecesse a alma.

    Com um angustiado 'Marga!', Juan abre a porta e descobre, de facto, a sua mulher deitada na cama. Só que... não é cadáver. A mulher, mordendo a lençol, continua a fazer força concentrada na cama e a Jacinta entre as suas pernas encoraja-a. O médico, um pouco afastado, observa-as, com as mãos atrás das costas. O maletim está como Juan se lembra daquela noite: fechado em cima da cómoda. Tudo está como Juan se lembra de há dez anos atrás, até os cheiros.

    Olha para as mãos e vê completos os dedos que perdeu naquela rixa, num sábado quase de madrugada. Não aguentava mais e desceu à sua própria taberna para encontrar um estúpido a quem fazer pagar a dor e a confusão uns meses antes de perder Sara. O estúpido pagou, ele perdeu três dedos da mão direita e a lei quase lhe tirou a taberna. Teve que pagar um dinheiro que podia ter mantido a sua filha viva mais alguns meses e também teve que prometer que não era aquele outro homem, que se desconhecia. 'Perdão! Foi a loucura que me possuía ontem à noite, pois. Pensei que não conseguiria viver ao pensar em perder a minha filha. Perdão, oficiais, juro que fui eu, mas que não voltará a acontecer, juro por Deus. Olhem! Para acreditarem em mim e não me afastarem dela nem da minha família, para entenderem que foi loucura e passageira, deixo como garantia a taberna e a minha vida com ela. Aqui está o papel! E assino perante testemunhas e de minha própria mão! Embora desculpem, pois ainda estou a aprender a fazer as coisas com a esquerda e escrever nunca foi o meu forte nem com a que era a boa.' E a boa, que Juan agora olha, está, como antes, completa. Os dedos calosos, mas inteiros, e é com esses mesmos que confirma que ainda tem cabelo na cabeça e que nem o pelo do peito nem o dos braços estão grisalhos, como deveriam.

    Não, não é uma recordação. Ele sabe o que é recordar, e como fazê-lo. Isso foi outra coisa, diferente e mais estranha. Nada do que viu acontecer, aconteceu: a sua mulher não deu à luz há dez anos, e a sua filha não nascida não morreu antes de completar onze primaveras. Sem entrar no quarto, vê a sua esposa, a vizinha e o médico que o olham como ele os olha, parado no umbral da porta com os olhos enlouquecidos, vendo-os e também olhando através deles, como quando olhas para dentro e como quando olhas para uma andorinha que, parada no peitoril da janela e com uma barata no bico, também te olha.

    Com lentidão e sem lhes virar as costas, sai do quarto e fecha a porta. Não é muito esperto, mas nunca foi tolo. E sabe que Deus existe, embora nunca o tenha visto. Começa pelo princípio, pois, e deixa que outros médicos, dentistas e curandeiros passem pela sua cabeça. Descarta-os com golpes de pensamento com a mão aberta, convencido de que só vão acelerar a morte da sua mulher e da sua filha. Uns por serem inconscientes, outros por insensíveis e outros por

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