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Pra onde vão os ciganos?
Pra onde vão os ciganos?
Pra onde vão os ciganos?
E-book109 páginas1 hora

Pra onde vão os ciganos?

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Sobre este e-book

Pra Onde Vão os Ciganos? Uma pergunta que merece resposta e este livro o fará. Mais que dis-cutir o paradeiro, o destino deste povo errante, esta obra irá falar de universos distintos, que passam pelos ciganos, mas também por outras plagas.Um livro especial, escrito por um dos maiores talentos da nossa literatura, vai, com certeza, mostrar o rumo que a vida pode dar, independente da etnia e de onde estivermos.
IdiomaPortuguês
EditoraLitteris
Data de lançamento31 de mar. de 2022
ISBN9788537404294
Pra onde vão os ciganos?
Autor

José Ribamar Garcia

Nasceu em Teresina, Piauí. Inserido no contexto literário e preocupado com o curso que este País toma a cada dia, ele jogou todas as suas fichas em uma obra que traduz sem pudor muito do que está gravado em suas páginas. Filhos da Mãe Gentil é o seu décimo livro. Ribamar mora no Rio de Janeiro, é casado e pai de quatro filhos.

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    Pra onde vão os ciganos? - José Ribamar Garcia

    Cavalo-do-cão

    1

    Quando chegou, a porta do quarto estava aberta e os móveis em desordem. Armário escancarado, roupas no chão, sapatos sobre a cama, lençóis nos cantos. Um pandemônio. E ela, visivelmente tensa, jogava na sacola de couro alguns vestidos. A dita sacola, com que lhe presenteara no último aniversário, nunca fora utilizada. Seria para a viagem que ficou na promessa. Aproximou-se devagar e, após alguns segundos de hesitação, balbuciou:

    — Que aconteceu?

    Ela, calada, controlando-se. Insistiu.

    — Alguma coisa?

    — Vou mimbora.

    Pela voz, sentiu a gravidade. Falava sério. Decisão tomada. E nada a fazer ou dizer. Se gozasse de credibilidade... Mas sua reputação estava a zero, abaixo da sola do chinelo. Engoliu o suspiro, engoliu o choro. A sensação de impotência, de perda.

    2

    O ônibus não andava, nem na seletiva. O engarrafamento começava na altura de Parada de Lucas, trecho em que a pista afunilava. Sempre àquela hora. Ali iniciava sua tortura, prolongada até o Porcão, onde saltava para tomar, na pista contrária, outra condução, que lhe deixaria no trabalho. A passarela sobre a avenida era um covil de bandidos. Ele próprio já fora fisgado. Dois moleques, meninos ainda. Enquanto um lhe encostava o revólver nas costas, o outro surrupiava a carteira e o cordão de ouro trazido no pescoço. Quietinho, marrom, senão leva chumbo. Tão rápido que não pôde fixar a fisionomia dos larápios. É a vantagem do bandido, como afirmavam seus colegas, pois, nessas circunstâncias, a vítima entra num nervosismo que se torna incapaz de guardar o semblante do agressor. Ocorreu-lhe o mesmo.

    1

    — E nosso casamento, não conta?

    — Você quis assim.

    — Juro que vou parar de beber.

    — Agostinho, enquanto foi a bebida suportei, mas mulher no meio, chega. Pensei muito e não adianta. Pra te ser sincera não agüento mais teus porres, teus vômitos, teu cheiro de cachaça.

    — Estou jurando que vou largar.

    — Já ouvi estas juras.

    2

    Dia sim, dois não, naquele trajeto. Magé, ponto final. Costumava descer antes da rodoviária, a fim de passar no Jangadeiro, onde fazia o desjejum — uma talagada de Velho Barreiro.

    1

    Baixou a guarda. De lado o amor-próprio — e ainda tinha?

    — Mas eu te amo, me dá uma chance.

    2

    Desta vez não entrou no Jangadeiro. Seguiu direto, contendo-se. Queria caminhar, arrumar os pensamentos, que borbulhavam. Lembrou-se da mãe, dos colegas. Case com uma moça da tua raça; branca é branca. Mas, apaixonado, deslumbrado, não deu ouvidos. Três anos de casamento. Só os primeiros meses foram tranqüilos. Depois, tormentos e mais tormentos. Ela não entendeu seu trabalho, nem os plantões que o obrigavam a pernoitar na delegacia. E na sua ausência ela saía com as amigas, indo a festinhas. Assim agia, dizendo que era para não ficar sozinha. Ele aceitava para não aborrecê-la. No fundo, temia que se zangasse e fosse embora. Nunca desejou perdê-la. Agora, se arrepende. Devia ter contestado. Cruzou a praça da prefeitura. No jasmineiro rondava um cavalo-do-cão. Aquele besouro preto e brilhoso. Quando menino, ouvia dizer que ele transportava o demônio nas costas e se arrepiava de medo ao vê-lo. Medo que se transformou em repulsa. Daí a raiva do apelido que lhe botou o detetive Farol. Que tinha ele com esse inseto? Cavalo? Vá lá. Mas pelo fato de ele transportar o desprezo dos almofadinhas por aqueles cadáveres de humildes e miseráveis, atirados nas lixeiras, nas estradas desertas.

    — Chegou o nosso conquistador. Há dois presuntos te esperando na Estrada do Anil — saudou ironicamente o delegado.

    O homem o detestava. O conquistador era em alusão ao incidente com aquela menina. De porre, não chegou a tocá-la. No entanto a mãe apareceu na delegacia, insultou-o, armou escândalo. O delegado, que vinha no seu pé, aproveitou e o entregou à corregedoria. Foi duro na delação. Que ele era um alcoólatra, corruptor de menores, tinha os laudos incompletos, inconfiáveis. Estragou sua carreira. Não foi substituído porque não havia alguém para o seu lugar. Achou injusta a acusação, pois, profissionalmente, não podiam falar mal dele. Afinal, mais de dois mil laudos no currículo e nenhum jamais impugnado pela justiça. E trabalhava sem as condições necessárias. Dissecava cadáver com faca e sem luvas. Completamente desprotegido. Filme para fotografia inexistia. Nem papel para fazer os croquis. Tudo tinha que comprar com seu dinheiro. Entretanto isso não era reconhecido.

    1

    — Já disse não, Agostinho.

    — Uma chance e nunca mais você vai me ver embriagado.

    2

    No princípio, o chope ao término do expediente. Quando se apercebeu, estava ingerindo de tudo; antes, durante e após. A decadência e consciência disso. Desejo de abandonar o vício, mas faltava força de vontade para controlar aquela compulsão. Se conseguisse — sabia — teria meio caminho vencido. Porém a ansiedade e o pavor das alucinações mais o empurravam ao álcool. E bebia para acalmar essa ansiedade ou para fugir do delírio, que começava a atacá-lo. Por duas vezes jurara ter visto um enxame de besouros sobre a mesa de trabalho. E por duas vezes foi encontrado no canto da sala, de cócoras, com as mãos cobrindo o rosto.

    1

    — Faço o que você quiser, só me dê uma chance.

    — Não posso, já te disse.

    — Existe outro?

    2

    Vestiu o jaleco, apanhou a tabuleta, entrou no carro e rumou com o detetive Farol para a Estrada do Anil.

    Zé do Guaiamum

    De repente, sua barraca foi descoberta. E o guaiamum, servido como tira-gosto, não alcançou a demanda. Teve que aumentar as encomendas, improvisar uma cozinheira, que inventou as variedades: fritada de guaiamum, patinhas de guaiamum, sopa de guaiamum, risoto de guaiamum, caldo de guaiamum. Vendedores entregavam, pela manhã, aqueles caranguejos cabeludos, ainda se mexendo, apanhados nos pântanos de Caxias. Da isolada barraca só o nome na tabuleta: Zé do Guaiamum. Tudo aconteceu porque um empresário afoito montou ali, diante de sua birosca, naquele monturo, um supermercado. E o terreno, até então utilizado para a desova de cadáveres, transformou-se numa área rebuliçada. Carretas entrando e saindo. Outras, enfileiradas até a margem da Rodovia Presidente Dutra, com placas de vários estados. Do seu, inclusive. Quando ele via escrito no pedaço de flandre o nome de sua Petrolina, não se continha. Localizava o conterrâneo. Papeava, perguntava, saciava a curiosidade. Só para sofrer. Vinham reminiscências do Velho Chico de águas barrentas, das correntezas caudalosas, por onde deslizavam as gaiolas, transportando gente e animais. Rio dos surubins maiores do mundo e das piranhas de três quilos. Mais tarde encontraria outra espécie de piranha — maior e menos feroz. Pensar no São Francisco era pensar em Marinalda e nos banhos com ela no quebrar da tarde, que terminavam num gemido profundo e prolongado. Doutro lado, Juazeiro, a casa do mestre Costa, fazedor de carrancas e dos rala-buchos animados. Marinalda, seu inesquecível bem-querer. A carta com a passagem demorou e, quando chegou, ela noutros braços, esquecida da promessa. Remexer em ferida dói que nem ferroada de arraia.

    Homens na porta da barraca fazendo nada, conversando à toa, jogando baralho, sem ocupação. O lampejo. Se conseguisse trabalho para eles naquele supermercado, até

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