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O Erótico Véu das Noites
O Erótico Véu das Noites
O Erótico Véu das Noites
E-book477 páginas6 horas

O Erótico Véu das Noites

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Sobre este e-book

"sinto em mim felicidade. A senhora também sente?" "De felicidade, num
sei proseá. Sei dizê de sentimento, de alegria, de saudade, de tristeza. Felicidade e
amô são tudo desassunto, palavra que canoa ligêra num alcança. Pode ter o hômi
mais forte cuidando do remo! Vivo sem arrumá sentido pra explicá amô e felicidade. É
que vivo no de dentro do dentro, Dico". "Interessante, Dona Dolores, o que a
senhora tá dizendo! Eu andava com muita saudade desses nossos papos. Mas, me
diga: o que é o de dentro do dentro"
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de out. de 2023
ISBN9789893752579
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    O Erótico Véu das Noites - Cristiano Gentil

    © 2023, Cristiano Gentil e Primeiro Capítulo

    E-mail: geral@primeirocapitulo.com

    Título: O Erótico Véu das Noites

    Editor: David Thomati

    Coordenador Editorial: Vasco Duarte

    Capa: Vasco Duarte

    Ilustrações: Roberta Gisely

    Composição Gráfica: Manuela Duarte

    Revisão: Heloisa Reis Curvelo e Cristiano Gentil

    1.ª Edição: Julho, 2023

    ISBN: 978-989-37-5257-9

    CRISTIANO GENTIL

    O ERÓTICO VÉU DAS NOITES

    Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde

    Este livro é dedicado

    à minha avó Débora (Vovó Dedé), in memoriam,

    à minha mãe Maria da Conceição (Pereira),

    por me transmitirem um lugar de contar histórias,

    através dos causos de minha avó,

    e das cartas e bilhetes de minha mãe;

    aos meus gatos

    Caetano Vinícius,

    Clarice Bethânia e

    Cazuza Jobim.

    PREFÁCIO

    Entre os lagos da Baixada e os cabarés de São Luís

    Desde o século XIX, o Maranhão é uma referência na produção literária nacional, tanto na poesia quanto na prosa. E não precisamos nos alongar neste resgate histórico porque é uma verdade incontestável, apesar de todos os entraves e problemas sofridos e enfrentados pelo estado ao longo do século XX, que culminou na nossa atual realidade, sempre com índices sociais desconfortáveis. Apesar disso tudo, os escritores maranhenses continuam a produzir bons frutos.

    Ao longo do século passado, por exemplo, obteve destaque, na escrita de vastos romances de cunho regional, o nome de Josué Montello. Nos dias atuais, a prosa escrita em terras maranhenses também está em alta, dando voltas por aí, provocando ondas avançadas de vez em quando.

    Nomes como Lindevania Martins e Franck Santos estão se consolidando no cenário contemporâneo. É nesse âmbito que nos chega a estreia de Cristiano Gentil, com o romance O erótico véu das noites, publicado pela editora Primeiro Capítulo, uma história com base regional, mas que respira o ambiente urbano e notívago de uma São Luís que não existe mais: a dos antigos cabarés existentes no Centro Histórico da capital, com seus casarios e sobrados de arquitetura portuguesa.

    Cristiano Gentil formula o romance contando primeiramente a história das irmãs Clara e Elis e da jovem Beatriz, filha de Elis, sobrinha de Clara, com quem mantém mais laços afetivos e de identidade do que com a própria mãe. Elas são de um povoado da Baixada Maranhense, área localizada no Noroeste do estado, famosa por seus belos lagos que se formam ao longo do período das chuvas. A referência à região se explica pela família do autor, que tem lá a sua origem.

    As três personagens, em momentos diferentes, vêm para São Luís, onde amadurecem, criam novos laços afetivos e fincam suas personalidades mantendo relacionamentos diversos nos logradouros e limites do Centro da capital. Nesse contexto de monumentos e tradições, o autor faz um longo passeio por cenários históricos da cidade. Além disso, acentua, dá destaque ou apresenta trejeitos e formas de falar do maranhense.

    Há, inclusive, um glossário com expressões típicas do estado. E antes que o leitor questione o recurso como um caminho para apresentar o maranhense de maneira caricata, é esse instrumento que vai reforçar a personalidade extravagante e cheia de amor pela vida da personagem Clara. Portanto, cumpre uma função importante no romance.

    Dividido em três partes, que se entrelaçam, e com narrativa não linear, a história criada por Cristiano Gentil, às vezes trágica, noutras bem-humorada, discute temas como sexualidade, preconceito (incluindo homofobia e misoginia) e racismo, assuntos em pauta no cotidiano do Brasil da atualidade.

    E a história se desenvolve com diferentes cadências narrativas, em cada etapa, de acordo com a identidade das personagens principais das três fases. Começa de forma acelerada, agitada, desacelera na segunda parte e termina de maneira reflexiva, com toques sutis de realismo mágico.

    Profundo conhecedor e, obviamente, apreciador de música popular brasileira, o escritor homenageia compositores e intérpretes ao longo de todo o livro, citando canções famosas de gente como Caetano Veloso, Beto Guedes, Milton Nascimento, entre tantos outros.

    Seja bem-vindo, Cristiano Gentil. Que sua escrita perdure e nos traga novas histórias edificantes!

    Eduardo Júlio

    poeta e jornalista

    PARTE I

    BEATRIZ/RITA

    "Mire veja: o que é ruim, dentro da gente,

    a gente perverte sempre por arredar mais de si.

    João Guimarães Rosa

    e

    "Travessia perigosa, mas é a da vida.

    Sertão que se alteia e se abaixa.

    Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe.

    Ali envelhece vento. E os bichos brabos, do fundo dele"

    João Guimarães Rosa

    e

    "Nós dois, meu ódio-amor, atravessando

    Cinzas e paredões, o percurso da vida.

    Busquei a luz e o amor. Humana, atenta

    Como quem busca a boca nos confins da sede"

    Hilda Hilst

    Capítulo 1

    Uma canção num dia de angústia

    Com inquietude, por vários poros, o corpo de Beatriz lacrimeja. Assim, ela externa seu grito emudecido e o tormento que lhe invade o peito. O silêncio contumaz de Álvaro, a chuva insistindo em chover um chuvisco. Apesar do relógio dizer que já é oito da manhã, faz calor de sol à pino. Beatriz acorda em suores. Um nublado invade a casa, penetrando, vorazmente, pelas venezianas das janelas, pelas frestas das portas. Um obscuro no tempo, no ar, no som da vida, no andar de Álvaro pela casa, descalço e desnudo, esquecido de suas vestes, esquecido de si mesmo, em nudez murcha, como se caminhasse por um terreno novo, como um animal selvagem recém fisgado pela jaula, exposto aos olhares de um circo. A atração principal do picadeiro.

    Faz domingo no dia. O horizonte se demora em noturna escuridão. Beatriz passou a noite contando pingos de chuva, diante da pequena janela aberta pro deserto da rua. Está trancada. A grade de ferro da janela deixa o quarto ainda mais fechado. A cama vazia de seu homem, a casa vazia de seus filhos, Chico e Marisa. Fecha, com uma bola de papel amassada, uma das venezianas, cujo ferrolho se encontrava quebrado. Abatida, deita-se na cama, como um animal selvagem recém fisgado pela armadilha, exposto à curiosidade dos olhares caçadores. A recompensa maior da aventura.

    Em suor e silêncio, Beatriz dorme horas. Ao meio dia, alguns familiares de Álvaro chegam pro almoço. Beatriz acorda assustada. Senta-se na beira da cama, como se estivesse atrasada, até ouvir as primeiras vozes que adentram a casa. Vai até a janela e retira a bola de papel da veneziana. A chuva continua a se chover insistentemente. No relógio da parede, lassidão, tédio profuso, desconforto. Um golpe de ar lhe atravessa o corpo. Está desprotegida. O coração se acende em palpitações, as mãos tremem.

    Do lado de fora do quarto, reunidos à mesa, duas tias, duas primas e um tio de Álvaro vociferam xingamentos. Uma sem vergonha! Tu manchaste o nome de nossa família com essa negra, Álvaro! A tia já tinha te dito, diz uma prima. Ela não merece nada de ti! Nem a tua piedade!, diz uma das tias. Ela tinha que ficar trancada nesse quarto por dias e dias, até aprender a respeitar macho dentro de casa, diz o tio. Beatriz escuta tudo encostada à janela entreaberta. Abrindo-a inteira, deixa o rosto exposto à chuva. Em sua face, lágrimas e chuva. Lembra-se de uma cena de sua infância: a briga entre sua mãe Elis e sua tia Clara. Elis, molhada de chuva e lágrimas, no quintal da casa em que moravam. Fecha os olhos, respira mais calmamente. Passa a mão no rosto. Dentro de si, também chora e chove.

    Retorna à cama. Pega seu diário. Escreve. Escuta falas mais coléricas. As pessoas gritam. Eu teria dado era uns tapas nela pr’essa piranha aprender a respeitar homem., diz, em tom mais alto, o tio. O senhor acha isso certo? Meu pai, mulher nenhuma merece surra de marido. Isso é crime!, fala a outra prima, Aline.

    Com os olhos no buraco da fechadura da porta do quarto, Beatriz observa os convidados falando, e falando, e andando ao redor de Álvaro. Goles e mais goles de vinho cor de sangue e de sugestões de vingança. Bruscamente, Álvaro bate com murros na mesa, quebrando o tampo de vidro e sangrando. Beatriz deixa seu corpo ir ao encontro do chão. Ninguém escuta aquela queda. Isso tudo foi uma indecência!. Para mim, a separação é a solução. Que Deus a castigue!. Os filhos de vocês vão crescer morrendo de vergonha da mãe. Eu teria nojo de uma mãe dessa.

    Páááááá. O vidro quebrado.

    O sangue grosso de Álvaro escorre pela mesa. Ele vai ao posto de saúde, situado em frente à sua casa. Atravessa a rua, banha-se de lágrimas e chuva. No íntimo de si, ele se sangra, se chove e se chora. Os parentes seguem falando, comendo, lambendo os beiços, mastigando uma fome de boca aberta. Uma das tias pragueja o destino de Beatriz. O tio, em cólera, vozeia: eu dava era umas boas chineladas, uma lição na carne, umas palmadas, um cinto de educar crianças ou o cipó mais grosso do quintal, pra marcar na pele de preta dela, nessa pele suja, pra ela nunca mais esquecer como é que uma mulher séria deve respeitar o marido dentro de casa!

    Álvaro volta com a mão suturada. Expõe a todos a sua mais nova marca. Uma das tias vai até a porta do quarto em que Beatriz se encontra trancada e a insulta, aos berros: Sua pervertida! Sua puta! Mãe de dois filhos e puta! Preta vagabunda! Caída ao chão, Beatriz sente, sobre suas costas, o peso de sua história. Está tonta. Da sala, vem um cheiro de camarão frito, mas o cheiro de sua alergia ao marisco não lhe traz náuseas. Sua garganta e seus olhos estão secos. À beira da cama, com o seu diário ao lado, põe um vinil de Caetano Veloso na vitrola antiga que se encontra sobre a escrivaninha, junto ao abajur. Veste o instante com samba, um samba que Clara lhe apresentara. Recorda-se do banho de mar com Clara. O corte nas conchas do mar e a cicatriz de mar em sua perna esquerda. O mar da praia da Ponta d’Areia está nela, em cicatriz. A sereia e a infância, ela e a sereia, Clara e a sereia. Um retrato registra o momento, verdade guardada, por anos, numa caixa de segredos. Busca o baú de memórias. A poeira do tempo sobre ele. Sopra o pó e mexe nas lembranças que habitam aquela pequena caixa retangular. A areia fina, toque em seu rosto. O mar da Baía de São Marcos. O contente olhar de Clara. O primeiro pulo no mar. A mão de Beatriz pedindo a mão de Clara: tia, me leva pra pular o mar! Chora sem medo. Exausta, dorme. E sonha.

    SONHO: Beatriz está presa num espaço entre duas portas grandes. Uma escuridão, um barulho de tempestade. Relâmpagos e trovões. Tenta pedir socorro, mas não há voz em sua boca. Busca a língua no dentro da boca. Não a encontra. Não há língua, não há palavras. De repente, uma das portas se abre. Do lado de fora, uma voz feminina: por que esse medo, Bia? Toma teu rumo! Beatriz não reconhece de quem é a voz que lhe é familiar. Corre em círculos, até cair inteira num chão de comprimidos brancos. Rasteja como uma cobra num chão de brancuras. Engatinha como criança. Clara, vindo da claridade, aparece. Vamos, Bia, vamos pular de mar!

    Num susto, Beatriz acorda. Passa a mão nos braços buscando areia de mar. Chora um choro sem substância, cansadamente. Sussurra pra si mesma, colocando as mãos no rosto. Que SONHO horrível! Aquelas portas, uma perto da outra. Eu presa. Minha tia... Vira-se de costas, sobre a cama. Chora, no travesseiro, um choro abafado. Seu corpo arde. De barriga pra cima, respira profundo, recuperando o fixo de seu olhar. Ergue-se. Deixa o diário sobre a cama, atrás de si. Com as mãos trêmulas, abre a gaveta da escrivaninha, pega o frasco de calmantes de sua mãe e lança todos os comprimidos no mundo próprio que a boca inicia. Levanta-se em passos trôpegos, apoiando-se com os braços nas paredes, até chegar à pia do banheiro. Vomitaria ou engoliria?

    A porta do quarto é aberta. Uma claridade. Beatriz faz uma concha d’água com as mãos. Lança, subitamente, toda a água e os comprimidos à boca.

    Corre a maca nos corredores de um hospital. Correm dores nos corredores. Beatriz, desacordada, não sonha. O corpo negro sob um lençol branco, encardido. A maca branca. As espumas não são mais as ondas da praia da Ponta d’Areia. Espumas nos lábios. Brancas paredes. Brancas nuvens.

    Capítulo 2

    Inverno na Baixada

    Mês de abril. Campos alagados e lagos cheios. As trovoadas e as bicas d’água. Criançada brincando. Passarinhos assobiando encharcados cantares de chuva pelos quintais. Inverno. Peixe em abundância no lago. Mandis, violas e curimatás¹ enchendo as canoas e os sorrisos dos pescadores. Início da década de oitenta. Baixada. Boi búfalo pasta na vastidão dos campos. Nuvem escura no céu anunciando mais água. Esconde-esconde, adedonha². Pular da ponte de madeira nos igarapés. Quem chegar por último é a mulher do padre! Santo Antônio dos Carvalhos. O lago no final da rua de chão piçarra. Casas de tantas cores. Crianças se lambuzam nas poças d’água. Resfriado, catapora, tosse braba, lama e sereno. Tambor de Crioula no quintal da igreja, recém-coberto para as festas da Semana Santa. Vamo jogá queimado no campo! Meninada se agita. Uma algazarra pra formar o melhor time. Criança cai, bate a cabeça. É bom pra milhorá o juízo, diz a curandeira Dona Dolores Benzedeira. Caiu no poço. Pêra, uva, maça ou salada mista? Pata cega. Vamo brincá de istátua! Vamo vê fulano tirá o dente! Puxa! Puxa! Puxa o fio amarrado no dente mole até ele saí num puxão forte!

    Inverno. Relâmpagos e trovões dançam um melódico estrondo. Não há nada que dê mais medo do que cobra e raio. Uns se escondem. Outros se animam com os clarões no céu, a noite mais escura, desestrelada. Desliga a televisão, senão queima e num se vê mais a novela das oito nessa casa! "Sai debaixo dessa árvore, piquena³! Sai desse chuvisco! Vou te dale⁴! O céu, todo um brancão de nuvem. A temporada de água fecha a passagem de algumas estradas. Só dá pra ir na sede de canoa!" Cenário úmido para os óculos de Seu Zé Carvalho, primeiro morador do vilarejo, tio de Rosa Carvalho, pescador dos bons, exímio contador de histórias, professor de sanfona. Ensinou o avô de Beatriz, Seu Dico, a tocar o instrumento. Tem forró na chuva caindo. Barulho do bom!

    Capim cresce no campo: dança de capim no passar do vento. Sapos em festa, muriçocas em alvoroço. De noite, só se dorme de mosquiteiro! Na casa de Seu Firmino tem goteira da boa! E lá se vão os meninos pra goteira de Seu Firmino, o velho mais ranzinza de toda a redondeza. Nunca se viu um sorriso no rosto daquele homem.Os mais velhos dizem que ele ficou assim desde que enviuvou. A mulher morreu no parto do primeiro filho. O menino nasceu bom de saúde, mas, foi abandonado pelo pai na madrugada da rua. Nessa noite, uma maranhense que morava em São Paulo e que sofria por não poder engravidar o resgatou do abandono. Nunca mais Seu Firmino quereria saber do filho. Não lhe daria um nome sequer. A mulher que o criou era amiga da parteira do povoado, Dona Bom Parto, e morava há anos em São Paulo, e se dizia infeliz por ser infértil, embora nela habitasse, aceso e exposto aos quatro ventos, um sorriso aberto.

    Santo Antônio dos Carvalhos. A solidão de uma única rua, solitária e larga, no meio do nada, no meio de tudo. Casas de um lado e doutro. Coloridas de verdes, azuis, brancos, amarelos, vermelhos. A casa vermelha é a de Dona Dolores Benzedeira. Pés de manga, seriguela e pitomba. Pés de limãozinho. Azedo como a vida, diz Dona Iná, a mulher mais triste do lugar, irmã de Dona Bom Parto. Teve dois filhos. Ambos morreram num acidente de carro. Desde então, nunca mais ela subiria num veículo com rodas. Quase todos os moradores mais velhos são analfabetos. Quem começou a levar ensino ao povoado foi Elis. Fez magistério. Ensinava com palmatória, o rigor firme no balançar das mãos. Pés de bacuri, juçareiras, buriti. Cipó de bater em menino, se pode bater em menino, cipó de cair de árvore, se pode cair de árvore. Galho de flor e espinhos.

    Vem chuva e vem calor dos infernos. Mais chuva, e mais, e o tempo amansa. Alvinha, alvinha, voa sobre o lago, a garça. Cascavel chacoalha no quintal de Dona Bom Parto. Gias⁵ pulam geladas nas pernas de Clara e Elis, que gritam o espanto. Ana e Beatriz se acabam de rir. Garças procuram peixe na beira do lago. Grilos cantam no respingar do fim das tardes, que se vão em chuviscos, molhando terras, rios, margens, quintais. O lago molhado de chuva. A rua banhada de chuva. Os piquenos ensopados de chuva. Lá vem toró medonho! Corre pra den di casa pra num apanhá! Chegô molhado é pisa! Na casa de Indiara e Maiara, Maria Filó, mãe das meninas, é rígida, e dita regras: uma chinelada pra peraltice, outra pra deixar de desobedecer, e mais outra pra não repetir teimosia. E tem que chorar senão vai ter a quarta, e a quinta, até a lágrima arredia escorrer pelo rosto abaixo e pingar pelo queixo. Três da tarde e já é noite. Cheiro de folhas e barro molhados. Rede na varanda pra quando a chuva passar. Um friozinho de meia no pé. Não é nada de frio, é só uma pausa na quentura. Pés de goiaba. Menino sobe. Manuelzin caiu da goiabeira e quase morreu. Toda criança já ouviu a história de Manuelzin que, quando cresceu, perdeu o juízo. Nada de subí ni goiabêra e fazê arte! Deus castiga e tu fica que nem Manuelzin de Manuel e Bárbara. E como tem menino naquela casa! Dez filhos vivos, entre eles, Manuelzin. Dois morreram de infância faminta. Um único bar. Vive num encharcado de bêbados. Tem um que quase sempre dorme no batente de entrada. Seu Zé Escangalhado é o dono. Na frente do bar, a mercearia, onde a esposa dele, Dona Das Dor, é a dona. O povo diz: casal perfeito esse Zé Escangalhado e essa Das Dor. Ele tem o rosto calma, sorriso quase sempre pronto pra sorrir; ela, a expressão fechada, de poucas palavras e sempre desconfiada.

    Na Semana Santa, chega gente da cidade grande. Tem bagrinho, surubim e chibé⁶. As mesas servidas com água no pote, arroz e farinha de mandioca que nunca pode faltar. Nesse inverno, deu peixe.

    As crianças tão morrendo menos, diz Dona Bom Parto, com o rosto alegre e o sorriso pronto pra sorrir. Tem peixe do bom pra receber o povo que mora na capital. O assovio dos bem-te-vis enche de saudade a memória dos que precisaram deixar a Baixada pra ganhar a vida em São Luís. Recordações bonitas, úmidas, vastas como os campos, alagadas de invernal beleza. Memórias de antes no agora dos dias, rememoradas nas infinitas horas lentas, no balançar das cadeiras de macarrão coloridas acompanhando o dia que se escorre em horas no movimento e no silêncio da rua, num sempre habitado de histórias.


    ¹ Mandis, violas e curimatás: minha gente leitora, quero, primeiramente, me apresentar, pois vocês ainda estão no começo do livro e mal sabem quem sou. Pois bem, me chamo Clara e meu pai, Dico, me deu esse nome em homenagem à grande cantora Clara Nunes. Sou tia de Beatriz e vou aprontar um bocado neste O erótico véu das noites. Agora vamos ao que interessa: criar este glossário de termos maranhenses. "Mandi, viola e curimatá são peixes de água doce, muito comuns lá pras bandas da Baixada, região do Maranhão onde nasci e me criei. Meu preferido é o mandi. O curimatá, eu já não gosto muito, porque... ô diaxo de peixe pra ter espinha. E eu já até fiquei engasgada com espinha de peixe. O cão atenta. Ah, o cão atenta é uma expressão usada pra dizer isso dá trabalho, incomoda, enche o saco. Eita que deu vontade foi de comer peixe da água doce cozido no leite de coco. A gente come revirando os olhos.

    ² Adedonha: é uma brincadeira que eu, por sinal, adoro. Também conhecida como stop. A gente sorteia uma letra, e sai escrevendo nomes, cidades, objetos, novelas, escritores, que comecem com a letra sorteada. Quem acaba primeiro, grita: stop!. Eu vivia enrolando. Gritava antes de ter acabado, e falava os nomes na hora em que a gente ia conferir. Enfim, uma bela de uma trambiqueira!

    ³ Piquena(o): é um jeito que os maranhenses encontramos pra falar com as pessoas. Exemplo: piquena, larga de fuleragi. E fuleragi quer dizer sem vergonhice, safadeza. E quem faz fuleragi é um fulêro, uma fulêra. Matei logo foi três coelhos numa paulada só. Piquena(o) ainda pode ser substituído por menina(o), mermã(o). É muito usado no dia-a-dia. Quer identificar um maranhense, é só escutar ele falar piquena(o).

    Vou te dale: vou te bater, te dar umas pisa. E pisa quer dizer surra. Tô com uma dor nos quarto, parece que levei umas pisa!. E assim mesmo que se fala. O artigo no plural e a pisa no singular, que, de singular, não tem nada. O povo bate é pra valer, no plural da palavra! Ah, quarto quer dizer quadril.

    Gia: o mesmo que rã. Não tolero esse bicho. Explico: a gia é gelada e ainda pula na gente. Parece que ela pula só de mal. Ela não foge, ela pula pra cima. Dá nojo. Tenho medo. Solto logo um berro bem alto.

    Chibé: é uma comida do interior, uma mistura de vinagrete e farinha de mandioca. E vou logo ensinar o preparo desta iguaria: uma pitada de sal, a farinha, os tomates, as cebolas, os pimentões e o cheiro-verde. Hummm, salivei aqui.

    Capítulo 3

    Tempo de menina

    "Dona Dolores, trouxe essa menina pra senhora benzer. Ela tá num fastio⁷!"

    "Elis, ela tá de barriga inchada! Tá obrando⁸ verme? Tá baldeano⁹?

    "Hum huuuuuumm¹⁰!"

    Entonce, vô procurá um gaio de peão roxo ou arruda. Já me volto! Dona Dolores Benzedeira traz arruda na mão. Beatriz já está sentada, de costas. Que é que eu benzo?, pergunta a velha, com voz forte, incompatível com a magreza de seu corpo, a postura curvada, o andar lento, a pele tão enrugada, de uma mulher que já aparenta passar dos cem anos. Carne aberta, responde Beatriz. Mermo assim eu benzo, diz Dona Dolores, batendo com o galho de arruda nas costas da menina.

    Que é que eu benzo?

    Carne aberta.

    Mermo assim eu benzo.

    E a pergunta vai se repetindo de forma constante. Quanto mais murchas as folhas, mais tem mau olhado na criança. "Mermo assim, eu benzo! Tá reno¹¹? Ela já sabe é decorado! Piquena sabida! Vai já já se livrá desse mau olhado que botaro nela!"

    À noite, Beatriz conta do benzimento para as amigas: fui hoje em Dona Dolores Benzedeira. A arruda ficou murchinha! Tem gente que tem medo dela. Eu não tenho não. Ela veste roupa bonita. Mamãe me disse que ela já tem quase cem anos.

    Já ouvi dizer que Dona Dolores Benzedeira nunca vai morrer. Ela é esquisita. É toda séria! Minha mãe acha que ela carrega coisas de outro mundo, coisas do mundo dos fantasmas. Eu morro de medo de fantasma, diz Maiara.

    "Tu tem medo de tudo! Não existe fantasma não, sua tola!, diz Indiara.

    "Tola é tu! Larga de ser besta! Repete que eu te dole um bogue¹²!"

    Parem de confusão, vocês duas! Vocês são irmãs! A gente bem que podia ir lá na casa de Dona Dolores Benzedeira sem ela saber. Queria ver as magias dela.

    Clara entra no quarto. Eita, suas meninas, mas vocês são faladeiras! Tá na hora de ir dormir, já deu nove da noite.

    Ô tia Clara, tá tão bom. E a gente somos vizinha. Deixa, deixa!

    A gente somos não existe, Indiara! É nós somos ou a gente é. O certo é nós somos vizinhas. Deixa Elis escutar esse teu português! Do jeito que ela fala tudo bem certinho, tu vai é apanhar de palmatória!

    Assim que as meninas saem, Beatriz dorme. Sonha.

    SONHO: Beatriz abre a caixa de magias de Dona Dolores Benzedeira. Usa os poderes da velha senhora pra curar os bichos mais selvagens da própria selvageria que os habita. Primeiro, um jacaré. Depois, uma raposa, um rinoceronte, um hipopótamo! Todos os animais, sem exceção, ficam dóceis. Os homens, com mais facilidade, passam a matá-los pra comer. Mas há uma onça que foge de ser curada. Beatriz corre atrás do bicho, até cair num buraco fundo, que, de tão fundo, nunca termina. Escuta uma voz gritando. É Dona Dolores chorando um choro mais gritado do que chorado. No fim do buraco, a mão de Ribamar, pai de Beatriz. Ela acorda aos gritos.

    Amanhece céu escuro. Clara está deitada na rede amarela, na varanda da casa, embalando-se ao som de O sal da terra¹³, na voz de Beto Guedes. Observa, no vaivém das escapadas, o dia se chegando no largo da rua. A canção diz: vamos precisar de todo mundo pra banir do mundo a opressão. Clara, com o auxílio do violão, acompanha o deslizar da agulha da vitrola sobre o vinil arranhado. Na porta de entrada da casa, Beatriz observa, com sorriso e silêncio no rosto, a animação da tia.

    Que cara mais alegre e linda é essa, Bia? Sonhou com o passarinho verde?

    Que nada, tia! Tive pesadelo!

    Ixi! E como foi?

    "Depois conto pra senhora! Mas, tia Clara, que música bonita! Tia, o que quer dizer opressão?"

    "Corre, Clara, vai cair um toró! Mermã¹⁴, me ajuda aqui a tirar as roupas!"

    "Tô indo, Elis! Hoje São Pedro tá animado! Mais tarde, te respondo essa tua pergunta, Bia. Guarda ela aí! Ah, chama tua irmã pra banhar¹⁵! A chuva tá da grossa!"

    Clara corre na direção de Elis, que a aguarda com várias roupas na mão, e outras no chão. Elis, tem uma biqueira boa na casa do Seu Firmino. Se ele não reparar, dá de tomar um banho bom! Vou levar as meninas.

    Besteira! Tu tens cada ideia! Não inventa, Clara!

    "Seu Firmino é osso duro de roer, Elis! Ô hômi infeliz! Parece que parou no tempo. Tem a tristeza no olhar. Tem a venta pra baixo, como se tivesse o tempo todo num desânimo. Me dá uma arrilia¹⁶ ver ele assim".

    Beatriz encontra Ana dormindo de bruços e resolve acordá-la com cócegas na barriga. Ana desperta agoniada, começando a chorar. Beatriz põe a mão na boca da irmã, que a morde. As duas gritam. Beatriz, que palhaçada é essa de vocês duas?

    Mamãe, ela que me mordeu!

    Elis pega os chinelos e começa a bater nas duas meninas, principalmente em Beatriz, que grita, pedindo socorro para Clara.

    "Não te mete que as filhas são minhas! Sai daqui! Se elas tão pensando que sou a pariceira¹⁷ delas, elas estão muito enganadas".

    Sei que não são minhas filhas, mas tu tá batendo com muita força em Bia. Que é isso, Elis? Que raiva é essa? Pra que isso? Me dá ela aqui!

    Não te mete, Clara. Sai!

    Não vou sair não! Me dá aqui a Beatriz! A filha é tua, mas eu sou a tia.

    Elis empurra Clara, que cai no chão.

    Tia!, fala Beatriz, ajoelhando-se para abraçar as pernas de Clara. Não deixa ela me bater mais! Não deixa! Mamãe tá doida!

    Doida? Tu vais ver o que é doida!

    Elis, para! Para, Elis! Para!, grita Clara.

    Elis puxa o cabelo da irmã. Beatriz e Ana choram aos gritos, até que Tomás, o vizinho, pai de Indiara e Maiara, chega e separa as duas mulheres. Tomás, ela tá louca! Elis nunca tinha feito isso! Ela tá precisando se tratar. Anda agressiva. E hoje passou dos limites. Eu vou embora dessa casa, isso sim! Vou embora hoje mesmo.

    Não, tia, não vá não!, pede Beatriz.

    Elis se retira, indo pro quintal. Chove chuva forte. Elis se molha toda. E chora, molhada de chuva e lágrimas. Clara diz a Beatriz que precisará passar uns dias fora. Pede pra ela cuidar de Elis e de Ana. Soluçando de tanto chorar, Beatriz a abraça. Vou pra casa do teu tio Luiz, na capital. Vai ser bom! Vou pedir pro Tomás me levar de moto pra a rodoviária. Não fica assim pois vou ficar mais preocupada. Promete que vai ficar bem?

    Não posso prometer. O que é opressão, tia? Me diz!

    É algo que tô sentindo no peito agora. E tá doendo! Elis nunca tinha agido assim. Ela não tá nada bem. Anda irritada. Vive triste, sem graça com a vida, parecendo Dona Iná. Cuida de ti! E cuida de tua mãe também, que ela tá precisando!

    Clara sai, após dar um abraço longo na sobrinha. Em seguida, beija Ana na testa. E vai ao encontro de Tomás que a espera na moto. Não se despede da irmã.

    Aquele dia deixa uma marca na memória dos tempos de meninice de Beatriz. Poucas semanas depois, Elis recebe o diagnóstico de depressão e passa a usar calmantes.

    Brincadeiras de rua, banhos de goteira, peraltice. Sai de debaixo de árvore pra não levá raio e morrê de choque! A doença de Elis e os remédios expostos sobre a mesa. Ana cai de moto, quebra o braço, bota gesso. Beatriz desenha borboletas no braço da irmã. As canções de Clara, a primeira viagem pra capital, o primeiro banho de mar, o beijo na sereia da praia da Ponta d’Areia. A infância de Beatriz: canoa que anda ligeiro, canoa que vira, perde o remo, carona na canoa musical de tia Clara.


    Fastio: pode ser falado assim também: fasti. É o mesmo que falta de apetite. Esse piqueno tá num fastio. Deve tá com lumbriga.

    Obrar: o mesmo que defecar. Ô verbo feio esse tal de defecar.Eu ainda prefiro cagar. A minha irmã Elis vive dizendo pras filhas dela não falarem cagar, e sim, fazer cocô. Aí, uma vez, Bia disse pra ela: mas, mamãe, tia Clara me disse que eu posso falar cagar sim, que cagar é bonito! Eu me acabei de rir disso. Minha irmã sempre foi metida a certinha demais. Enfim, leiam o livro que vocês verão as presepadas de nós duas! Ah, presepadas são invenções, bagunças, confusões, desarrumações...

    Baldear: significa vomitar. Esse piqueno tá com febre, obrando ralo e baldeando.

    ¹⁰ Hum hum: amo essa expressão que quer dizer um mundo de coisa, mas sobretudo indica uma afirmação, tal qual hen hein, que traduzirei mais adiante. Detalhe: a intensidade da afirmação vai de acordo com o tamanho do hum hum. Exemplos: Clara, tu gosta de uma boa safadeza? Hum huuuuuuuuuuuuum. Clara, tu gosta de cerveja? Hum huuuuuuuuuuuuum. Mas se fosse: Clara, tu gosta de fígado? Hum hum. É que eu gosto de fígado, mas prefiro mocotó, rabada... Como não gosto tanto de fígado, o ‘hum hum" é menor.

    ¹¹ Tá reno?: tá vendo?, tá observando?, beleza?, ok? É uma lindeza. Baixadeiro fala muito!

    ¹² Te dole um bogue: Bogue é o mesmo que soco. Dole é do verbo dale. É o verbo dar do maranhense. Logo, te dole um bogue pode ser traduzido pra te dou um murro, uma porrada, um soco.

    ¹³ O sal da terra: ah, eu decidi que, além do glossário, vou comentar as músicas, porque eu amo música e... quem mandou o escritor inventar de colocar música neste livro! Agora ele que me aguente! Gente, essa canção, O sal da terra marcou minha adolescência. Eu amava cantar. Foi uma das primeiras músicas que aprendi a tocar no violão. É uma composição do Beto Guedes e do Ronaldo Bastos. Linda!!!

    ¹⁴ Mermã(o): esses eu falo pra dedéu. E pra dedéu quer dizer demais. O paulista diz meu; o carioca, cara; o paraense, mana(o); e o maranhense, mermã(o), piquena(o). É um clássico maranhense. Se tu ouvires alguém falar assim, é tira e queda: é maranhense. Tira e queda quer dizer é coisa certa.

    ¹⁵Banhar: o mesmo que tomar banho. Maranhense diz: eu tô indo me banhar.

    ¹⁶ Arrilia: agonia, inquietação. Tô com uma arrilia. Usamos também os adjetivos, arriliada(o).

    ¹⁷ Pariceira(o): uma autêntica mãe maranhense nunca perde esta palavra da boca. Exemplo: um filho fala gritando com a mãe. Ela diz: me repeita, piqueno, que não sou tuas pariceira. Quer dizer, eu não tuas colegas, tuas amigas de rua. Amo!

    Capítulo 4

    Elis e Clara

    A primogênita Elis; a caçula Clara. A mulher casada com Ribamar, que expulsou o marido de casa em noite de lua cheia; a moça solteira, que cuida de Beatriz e Ana como se fossem suas filhas, e vai pra São Luís, às sextas-feiras, no cair da tarde, de vestido vermelho, mostrando as coxas. "Que será que essa piquena tem na capital pra se enfiar tanto pras bandas de

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