Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Os Cadernos Secretos de Sébastian
Os Cadernos Secretos de Sébastian
Os Cadernos Secretos de Sébastian
E-book306 páginas4 horas

Os Cadernos Secretos de Sébastian

Nota: 5 de 5 estrelas

5/5

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

«– Desde os treze anos que ele escrevia esses diários. Estão dirigidos a ti. Foi para ti que ele os escreveu, quando um dia deixou de se sentir à vontade contigo. É o que ele diz na primeira página. A nós também nunca nos contou nada. Foi um choque para nós. – Inspirou, enquanto olhava, consternado, para mim.
Ainda havia mais alguma coisa:
– Tenho um pedido a fazer-te!
– Sim, diga...
– Era o seu desejo, queremos realizá-lo. Foi por isso que te telefonámos. Queremos que fi ques com os diários, que, afi nal de contas, são teus. Foi para ti que os escreveu... Mas temos um pedido a fazer-te. Queremos que respeites a sua memória; que deixes a sua alma partir em paz. Queremos que guardes só para ti tudo o que neles está escrito»

Olhava para ela. O desejo que me acalentara e mantivera vivo realizara-se. Ela voltou para os meus braços. Mas não era a ela que eu desejava. Era a outra ela que existiu, em mim, através dela. Agora sabia que nunca poderia ser minha. Sabia que nem eu próprio me poderia entregar. Não era eu que ela queria. Era a outro que ela recriara em mim. Existimos nos outros em milhões de versões diferentes. Quantos Andrés percorrem as ruas em mim e eu não vejo? Foram outros nós – que nós desconhecíamos – que talvez se tenham amado.
Continuava a desejar a mulher criada por mim em mim, num momento impreciso e sublime. Ela foi o corpo impossível no qual eu esculpi a minha obra. Mas naquele momento conhecia o embuste. Olhava para ela e sentia desejo. E repulsa.
Como seria o André, meu irmão gémeo, que ela enganava? Como era o André que se debruçava sobre o seu ser, ouvindo o murmúrio vibrante dos seus lábios doces e suculentos?
Inveja e raiva. Inveja. Do André que ela amava, do André amado por ela que eu queria ser, do André com o qual eu não podia competir, sob pena de ambos a perdermos. Raiva. Por a não poder transformar na imagem que usurpava o meu pensamento.
Cada indivíduo é uma língua nativa, com termos muitos próprios cujos significados ímpares se perdem na tradução de um sujeito para o outro.
Talvez, se me dedicasse com maior afinco, tivesse conseguido apreender a sua língua. Ouvia-a com atenção. Memorizava cada som expirado pela sua boca. E tentava decifrar-lhe o significado. Jogava com ela: pedia-lhe para me explicar o que queria dizer com o que dizia. Mas ela fartava-se depressa. Era muito impaciente... Tinha que avançar devagar. Desbravar terreno. Apalpá-lo com calma e dar pequenos passos. Avançava às escuras.
Oh! Doce ilusão. Doce engano. «Talvez venha a conseguir lançar pontes entre as duas linguagens.» Dizia para mim mesmo.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de out. de 2013
ISBN9781301947324
Os Cadernos Secretos de Sébastian
Autor

André Benjamim

Nasceu numa pequena e pacata aldeia da província, em 1981, onde até a morte é lenta. As vicissitudes da vida obrigaram-no a deambular por diferentes destinos, primeiro para estudar, depois para tentar ter um sustento - um trabalho.É licenciado, mas isso não lhe serve para nada, ou apenas para lhe dizerem que tem qualificações a mais, quando não lhe podem dizer que a experiência é a menos.Escritor, Poeta, Blogger, Sonhador. Umas vezes empregado, a maioria das vezes desempregado, a engendrar uma forma de sobrevivência que só com muitos sobressaltos e soluços lhe têm sido possível.E muitas outras coisas. Contudo, nenhuma que lhe renda dinheiro - fama, reconhecimento, ou posição - ou outra coisa qualquer - daquelas coisas que são valorizadas nesta sociedade anti-social.Publicou Os Cadernos Secretos de Sébastian, um romance de fragmentos e anotações, em 2007. Colaborou com alguns poemas na revista "Praça Velha" (Guarda, n.o 24).Reclama que «uma "Biografia" só deve ser escrita depois de morrermos - se alguém considerar que tínhamos, para o Outro, valor que merecesse o esforço de ser escrita - e partilhada».Avisa que «se quiserem saber algo sobre mim, enviem-me mensagem. Mas não se esqueçam que uma biografia será sempre um retrato desfocado que se tira ao lado errado da pessoa retratada. A vida - a verdadeira vida de uma pessoa - está por dentro. E o lado de dentro - é como o lado escuro da lua: não existe o lado escuro da lua - na verdade, tudo é escuro.»Ainda não mandou imprimir o livro de poemas & outros textos que sonha publicar, ainda não acabou de escrever um segundo romance. Ainda não sabe se já desistiu.Como se define numa palavra? Proscrito.Ainda não chegou a casa.

Relacionado a Os Cadernos Secretos de Sébastian

Ebooks relacionados

Romance para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Os Cadernos Secretos de Sébastian

Nota: 5 de 5 estrelas
5/5

2 avaliações0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Os Cadernos Secretos de Sébastian - André Benjamim

    Capítulo 1 - Sébastian

    Capítulo 2 - Fábio

    Capítulo 3 - Terror de te amar num sítio frágil como o mundo

    Capítulo 4 - Morte ao amanhecer

    Capítulo 5 - O amor, uma língua nativa

    Capítulo 6 - Amor impossível Amor clandestino

    Capítulo 7 - As férias com Sébastian

    Capítulo 8 - Mal de te amar neste lugar de imperfeição

    Capítulo 9 - Onde tudo nos mente e nos separa

    Capítulo 10 - Onde tudo nos quebra e emudece

    Capítulo 11 - O reencontro com Sébastian

    Capítulo 12 - A despedida do Fábio

    Capítulo 13 - Os caminhos periclitantes do amor que, de uma forma ou outra, acaba sempre por nos derrotar

    Capítulo 14 - Amá-la ou matá-la?

    Capítulo 15 - Último capítulo

    Sobre o autor

    Entrevista ao autor

    A vida. Eis o que eu dava para nunca te ter visto ou para te ver só mais uma vez.

    (Miguel Esteves Cardoso, in O Amor é Fodido)

    Terror de te amar num sítio frágil como o mundo

    Mal de te amar neste lugar de imperfeição

    Onde tudo nos quebra e emudece

    Onde tudo nos mente e nos separa.

    (Sophia de Mello Breyner Andresen, in Coral)

    As convenções do lugar, e especialmente do tempo, são os fantasmas que aterrorizam a humanidade da contemplação da magnificência.

    (Edgar Allan Pöe, in O Encontro)

    Tu/ estás enfermo/ de horas/ de siglos,/ de memorias

    (Mário Cesariny, in Pena Capital)

    O amor é que é essencial.

    O sexo é só um acidente.

    Pode ser igual

    Ou diferente.

    O homem não é um animal:

    É uma carne inteligente,

    Embora às vezes doente.

    (Fernando Pessoa)

    Nota Preliminar

    As histórias que a seguir se perfilam são baseadas em factos verídicos; Os nomes reais dos intervenientes foram, é evidente, substituídos pelos nomes verdadeiros, que são aqueles que as personagens têm.

    Todos os diálogos existentes são transcrições literais dos diálogos entabulados entre as pessoas reais a que se referem. A sua sequência temporal e situacional foi, no entanto, truncada e reorganizada, para melhor compreensão daquilo que se passou e significou para as pessoas envolvidas. Porque a lógica da vida real difere da lógica da vida verdadeira, que é aquela que nos perdura na memória, até a sombra negra a apagar.

    O Autor

    Prólogo

    Aproximam-se dois vultos do jardim que se estende frente aos edifícios da Polícia de Segurança Pública e do Governo Civil do outro lado da rua

    Descem dando passos calmos pequenos decididos

    Contornam a esquina e param

    Um Mercedes cor de azeitona verde vira para a rua estreita e passa por eles a rasar quase tocando-os

    O mais pequeno dá um pulo assustado para trás

    O maior não se move continua impávido

    Quando o rouco roncar do motor se silencia distante o maior suspira olha para o lado de mãos enfiadas nos bolsos e atravessa a estrada a correr retomando as passadas lentas no passeio que orla o jardim

    O mais pequeno segue-o apressado

    Estão de novo lado a lado

    Caminham mais alguns metros sentando-se depois num dos velhos bancos abandonados e vermelhos do jardim

    Instantes passados o mais velho volta a levantar-se

    O outro segue-o resignado

    Param junto ao busto que jaze no centro do jardim

    Continuam descendo para o passeio oposto aos laicos edifícios da República

    O mais velho detém-se para ler as inscrições gravadas numa pedra de mármore cravada no granito

    Alta cidade da vetusta beira

    Entalhada na monstra serrania

    Chamam-te feia, falsa, fria

    Mas és também fidalga hospitaleira

    Voltam ao jardim

    O mais novo roda o corpo sentando-se com uma perna dobrada sob as tábuas carcomidas do banco

    Coloca as suas mãos cruzadas pálidas púberes sobre o ombro hirto do mais velho

    Olha para ele ansioso e expectante mas este parece não lhe prestar atenção

    Observa os polícias que conversam na ombreira do lúgubre edifício

    – Qual é o problema

    Pergunta o mais novo

    Tem uma voz meiga e aguda uma adocicada mistura do tom límpido infantil que vai perdendo com o tom gutural adolescente que ainda não ganhou por completo

    O mais velho não responde encolhe os ombros olhando para o mais novo pela primeira vez

    Repara então que é bonito realmente bonito pensa

    Tem uns olhos claros um nariz bem moldado entre as pregas da face rubicunda a pele resplandecente

    É lindo de uma beleza cândida inocente ingénua

    Demora-se no rosto do mais novo afundando-se no abismo ávido profundo transparente dos olhos meigos dele

    – Gostas de mim

    Questiona o mais novo

    É um rapaz extrovertido simpático e falador

    Tem menos meio palmo que o outro

    Apesar da tenra idade (não terá com certeza mais que quinze anos) transborda experiências

    Aborrecido por o outro não lhe prestar atenção senta-se direito no banco não sem antes desviar o cabelo negro do mais velho da frente dos seus olhos negros também

    Remexe os bolsos das calças retirando um maço de Ventil puxa um cigarro e pede isqueiro ao mais velho que lho estende paulatinamente depois de o procurar nos bolsos do casaco que pousa sobre os joelhos primeiro e nos bolsos das calças depois até o encontrar

    Segura o pequeno objecto negro entre o polegar e o indicador

    Pede-lhe um cigarro levando-o depois com um movimento esguio à boca

    Tem os cabelos compridos escuros melancólicos escorrendo-lhe pela testa larga

    Debruça-se apoiando os cotovelos nos joelhos

    O mais novo impacienta-se bufando exageradamente para dar a entender o seu fastio ao outro

    O mais velho olha absorto para as suas mãos trémulas que cruza distraidamente segurando o cigarro desajeitado com dificuldade

    Sente dó de si mesmo uma piedade aguda fria metálica que lhe estala no peito

    Cerra os lábios hermeticamente

    Suga o lábio superior com o inferior e trinca-o

    É uma sensação deliciosa sentir a pele dos seus lábios friccionada contra a dureza dos dentes

    Exagera a força com que se morde lacerando ligeiramente o lábio que começa a sangrar

    Sorve o líquido encarnado

    Tem um sabor agridoce

    Está uma noite fresca durante o dia a temperatura tinha subido bastante agora ambos de manga curta tremiam

    O mais velho tem o casaco dobrado sobre o colo

    Já o vestira mas era demasiado forte começara a suar despira-o novamente

    Os polícias suspendem a conversa distraída revirando os seus olhares incisivos na direcção das duas silhuetas difusas

    Eles apercebem-se que são o foco do interesse dos dois homenzarrões vestidos com umas ridículas calças azuis escuras e um casacão de cabedal negro

    Estão sentados num banco coberto pela sombra de uma palmeira frondosa

    A luz do candeeiro eléctrico bruxuleante e pálida ilumina-os com grande dificuldade

    Os polícias não conseguem distinguir-lhes os traços do rosto

    Está uma noite nublada

    Uma brisa primaveril seca doce move-se morosamente por entre os galhos pejados de folhas escuras viçosas brilhantes onde jorram os restos da luz pálida da lua arrastando atrás de si os pólens e realçando os contornos das folhas

    – Vamos dar uma volta

    Pede o mais novo

    – Não gosto do olhar daqueles tipos

    Seguem pelo corredor lânguido

    Ao fundo do jardim perfilam-se quatro cabinas telefónicas e um quiosque

    Param para ver os artigos expostos

    E continuam o seu caminho subindo pela Rua do Encontro.

    Capítulo 1 - Sébastian

    1.

    Anos depois regressei a casa. A fachada branca permanecia imponente por detrás do alto muro que a separava do mundo. Subi a avenida em direcção à pequena colina, que, ao abandonar os limites da cidade, via crescer no horizonte. Um enorme aglomerado de pequenas casas e quintais cobria a colina. De um lado e doutro, flanqueavam a avenida, que ao fundo dobrava à direita. Alguns metros mais, tílias cobrindo a estrada onde desembocava a avenida, e por trás das folhas verdejantes, o muro cinzento começava a impor-se.

    Estacionei junto à escadaria. Ladeando a porta de carvalho lá continuavam os dois amantes. À esquerda, uma rapariga de peito inocente e despido, segurando um jarro, de onde a água cai distraída, olha o horizonte, esperando a chegada do seu amado. Este, à direita, agarra um arco com uma mão e leva a outra às flechas, perscrutando o perigoso e sinuoso caminho que o há-de conduzir, por fim, à sua amada. Olho-os com consternação. Estão ali, tão perto um do outro, e, entre eles, uma porta que nunca se abrirá para os deixar passar.

    Não tinha vontade para nada. Também para mim o amor se tornara impossível. O diagnóstico médico dizia apenas que estava deprimido; talvez tivesse que concordar.

    Quando fora que tudo começara?

    2.

    Anos antes preparava-me para dar um passo desesperado: ia casar. Da mesma maneira que não sabia como a perdera, não sabia como fora que a reconquistara. Tinha a sensação bizarra de que os anos em que me abandonara foram para verificar a grandeza do amor que lhe tinha.

    «Que crueldade!...» Pensava, rindo-me da minha situação.

    – Todavia, não podia perder esta oportunidade de a ter para sempre! – Dizia para o Sébastian, que me olhava desconfiado.

    Ele conhecia bem o André que existira em mim; sabia que esse André não acreditava que a iria ter para sempre. Nem eu acreditava. Mas nem um nem outro eram esse André que houve um dia. No meu quarto vazio era franco e frontal, o André morreu. Este que invadiu o seu corpo é outro, outro que muda a cada instante e que por isso se desconhece. Porém quando olhava para mim só conseguia ver o André anterior, a que me prendera, como a uma personagem de um drama que representara e de que não me conseguia libertar. Tinha que anunciar a toda a gente a sua morte.

    – É uma atitude desesperada de a prenderes a ti...

    O que é certo é que ela aceitou o pedido de casamento com um sorriso brilhante (que de qualquer maneira era o mesmo sorriso indiferente de que tantas vezes me lamentara). Confessou-se a mulher mais feliz do mundo, enquanto eu pensava na maneira de a fazer sentir tudo o que eu sentira, na maneira de a matar, como ela me matara. Imaginava mortes extraordinárias. Amarrava-a ao toro de um carvalho morto, no interior de uma floresta sombria e inabitada, esfolava-a e regava-a com álcool. Sentava-me a vê-la perecer devagar. Ela implorava-me que a matasse, que não aguentava o sofrimento. E eu ignorava-a com desprezo, virava-lhe as costas e partia com um passo moroso, para que ela me visse desaparecer por entre os troncos velhos e os ramos apodrecidos da minha floresta imaginária.

    Estes pensamentos acabrunhavam-me; sentia medo e orgulho de mim mesmo. A vida é uma súmula de absurdos a que não devemos prestar muita atenção, sob a pena de nos perdermos nos meandros da loucura...

    3.

    Toda a vida tive o mesmo problema: preocupar-me com pormenores. Aquilo que os outros ignoram displicentes, a mim ocupa-me durante horas, dias, semanas... Tudo tem que ter uma lógica, um nexo, um intuito. Assim, apesar da vida me correr melhor que à maioria dos meus contemporâneos (apesar da infância infeliz que tive), sentia-me a afundar nas areias movediças da minha alma.

    Pela primeira vez, não queria pensar nos pormenores, nas causas e nos efeitos, nos actos e nas consequências. Queria aproveitar cada instante, sorvendo-o como se fosse a última gota de uma bebida misteriosa. E no fim amá-la ou matá-la. Eram as únicas maneiras de a fazer minha para sempre.

    4.

    Dei comigo na universidade não sei bem como, já que os estudos nunca me despertaram especial interesse. Apesar de serem raras as vezes em que ocupava o meu tempo a estudar, a inteligência acima da média acabou por me conduzir a essa saída, quando me encontrava já maior de idade sem objectivos definidos (nem indefinidos, diga-se).

    Foi pouco depois de ela me abandonar. Passei os quatro anos seguintes a percorrer as ruas da cidade, uma alma penada, sem esperança, à sua procura, sabendo que era impossível encontrá-la. Até que um dia voltou, sem explicação, tal como partira. Contudo, eu já não sabia ter esperança do mesmo modo que ela me fizera ter no passado.

    Antes da conhecer era um céptico insensível que não acreditava em nada. Não tinha uma verdadeira família; órfão de mãe, ignorado pelo meu pai, não sabia como era o doce sabor de amor. Os amigos haviam deixado de fazer sentido. Desse modo, o amor era aquilo que vestia em relações ocasionais e passageiras. Cogitando sobre essa época da minha vida vejo-me à procura de algo que derrubasse as minhas negras convicções sobre a vida e as pessoas; procurava a energia que fizesse cair o muro que entre mim e o mundo há tanto se erguera.

    Ela ali estava, no meio do meu caminho. Passava por ela todos os dias, à mesma hora. E assim nos conhecemos. Eu olhava-a com timidez e desejo. Ela retribuía com um sorriso disfarçado. Num dia de Inverno saí de casa mais cedo, antecipando a sua chegada. Sentei-me no seu lugar. Ela chegou, sorriu, um sorriso brilhante e metálico que me aqueceu e gelou. Permanecemos calados. Eu desejava que o momento durasse. Ela não se importava. Sabia que a partir daquele instante nos conhecíamos. Quando o toque de entrada soou eu não me quis levantar. Ela pegou-me na mão e de chofre:

    – Amo-te! – Eu encavacado, sem saber o que dizer.

    E quando as almas gémeas se reencontrarem, elas esquecerão tudo à sua volta, contemplando-se em esplendorosa fascinação: eis que cada metade, desejando a outra, a procurava; e os pares, estendendo os braços, agarrando-se no desejo de se reunirem, morriam de fome e também de preguiça, porquanto não queriam fazer nada no estado de separação.

    Todavia ela foi-se embora. Assim como apareceu na minha vida, desapareceu. A queda na dura realidade. Eu seria o cavaleiro andante em busca de uma amada imaginária, condenado a viver eternamente até a encontrar... Eu era o seu príncipe, ela a princesa presa na torre de marfim. Eu resgatara-a da sua tristeza, solidão e abandono, a que o cárcere a condenara. Mas talvez me tenha visto mais a mim que a ela. Utilizou-me. Usou-me. Aproveitou-se de mim. Serviu-se a seu bel-prazer. E deitou-me fora, como a um brinquedo partido. Mas eu faria tudo para a ter de volta. Tudo. Dava a vida se necessário. Dava o cu e cinco tostões. Rastejava como uma vil serpente. Trabalhava do amanhecer ao anoitecer para a sustentar. Seria o seu cão, o seu servo, o seu escravo. Apenas em troca do seu aroma adocicado e do seu sorriso metálico. Dava tudo.

    5.

    O dia estava escuro, e no horizonte adensava-se uma tempestade ferina. Prelúdio de uma tragédia? Como é sabido por muita gente, os dias chuvosos e escuros são o prenúncio de fatalidades inevitáveis. Mas que poderia acontecer na minha vida em que nada acontecia?

    Ia articulando encadeamentos ilógicos do pensamento para me aliviar da tensão que sentia. Ao cimo das escadas estava um grupo de rapazes rindo em ébria histeria e gritando caloiro! O que menos desejava era um bando de corvos depenicando-me a paciência; mas não podia evitar o cruzamento com eles, que era inevitável depois de já me terem visto, a não ser que voltasse atrás, o que lhes daria, pelo menos, o gozo de uma cobardia declarada.

    «Depois da tempestade virá o sol radioso, e um dia claro e cintilante acender-se-á com uma nova esperança na minha vida» Pensava, com um sorriso sardónico, para mim mesmo, pois não conseguia evitar – era mais forte que eu – a imagem mental da sua face sorridente perpassava pelo meu cérebro como uma rajada de vento tropical, que me destroçava.

    O grupo, negro, de doutores acercou-se de mim. Tentei ignorá-los, mas eles impunham-se, pedantes, do alto das suas batinas, altivos, como que a gritar Eu sou alguém! Olha para mim, de lado, com a inveja que deves sentir!... Sim! Porque tu não és nada! És um verme viscoso, fedorento e rastejante... Para mim, eles eram apenas um bando de canalhas, verborreando ditos reditos, frases atávicas, que se haviam esvaziado, despojadas do seu sentido, desfeito com o tempo.

    A praxe exasperava-me. Não só pela minha timidez, mas logo porque não conseguia conceber como é que alguém conseguia abdicar da sua liberdade!?

    Quis dizer-lhes que não fazia parte dos meus planos de vida fazer figura de idiota. «A praxe é coisa para mentecaptos cultivarem quando não têm mais que fazer; se fazem o obséquio, quero passar, e os senhores não têm o direito de me impedir!» Pensei-o de forma clara e concisa. Não que tivesse planos, ou mais que fazer. No entanto, tudo o que fizesse me parecia melhor que andar feito cão atrás de uma quadrilha de inconscientes. Mas não o disse. Enrodilhei-me, encolhi-me, baixei a cabeça, continuei, sem uma palavra, sob os seus olhares estupefactos, e um orgulho enorme pelo meu acto de coragem e cobardia, que em mim andaram sempre de mão dada.

    6.

    Descia uma rua distraída, com um sorriso absorto na face, imerso no meu mundo interior, cujas fronteiras iam fechando as suas portas irreversíveis, após mais um dia de aulas; um insondável fosso era cavado entre o mundo exterior e o meu mundo interior. Aqui e ali havia frágeis pontes, mas a pouco e pouco ruíam, sob o abissal peso das trocas entre mim e os outros. À minha volta, uma redoma deixava-me cada vez mais só.

    Acordei tarde, tendo perdido as aulas da manhã. Levantei-me mais cansado do que me deitara. Olhei para o despertador exausto, que toda a manhã tocara sem que ninguém lhe prestasse atenção. Sabia que ainda faltava meia hora até ao início da próxima aula. Enquanto ia subindo a rua, quase deserta, ia-me recordando do estranho encontro da tarde anterior.

    O meu afastamento dos colegas de curso deixava-me as tardes livres para cirandar pelas ruas da cidade, entre os cafés, as livrarias e as montras das lojas. Depois de um rapaz de cabelos avermelhados me ter tomado de ponta, após consecutivos incidentes nos dias de praxe, o receio que os meus colegas tinham de se aproximarem de mim e a curiosidade ausente que eu sentia de os conhecer, deixara-me só na cidade.

    7.

    Na tarde anterior cruzara-me com uma rapariga que de imediato despertou a minha atenção. Estendeu-me um sorriso agradável, apesar de eu não a conhecer, ou pelo menos, não me recordava de alguma vez a ter visto. Como a cidade é pequena, acabamos por nos conhecer todos uns aos outros, embora a maioria das vezes não cheguemos a trocar mais que olhares disfarçados.

    Cruzarmo-nos nas ruas anónimas acaba por se tornar um hábito, com que vamos alimentando possíveis amizades, que jamais se concretizarão. Nutrimos simpatias e antipatias impossíveis. Reinventamos as biografias alheias. Mas mantemos a discrição.

    A tenacidade das convenções sociais tolhe-nos a vontade. Ainda que tentemos libertar-nos das suas algemas, cordas invisíveis amarram-nos, sem que delas tenhamos consciência. Por fim acabamos por nos aperceber, mas quanto mais lutamos para nos libertar, mais nos emaranhamos nos seus subterfúgios.

    Aqueles olhos azuis e os cabelos trigueiros compridos eram difíceis de esquecer. «Como te chamas?» – Quis perguntar. – Mas a pergunta ficou-me a latejar, dorida, na garganta, furiosa e impotente.

    Acabei por não a conhecer. Talvez tenha sido melhor. A minha experiência traumática dizia-me que conhecer as pessoas é uma perigosa quimera: quanto mais as conhecemos, maior é a ilusão; quanto maior a ilusão, mais as desconhecemos...

    8.

    Que pensaria ela de mim, se a interpelasse na avenida plúmbea por onde o Outono triste ia caminhando vagaroso, e lhe perguntasse o seu nome; lhe dissesse o meu; a convidasse para tomar café? Um acto simplíssimo entre dois seres humanos, que efeitos poderia despontar? Ainda que fosse inocente, um embrulhado conjunto de significações sociais emergia na minha mente, perante a hipótese de o realizar. Já não conseguia amar ninguém. Se ela me desejasse, como lhe explicaria depois que a não queria?

    Sabia, no entanto, que o mais provável era ela ser o oposto daquilo que eu imaginara. A imagem dela que eu construíra na minha mente nunca poderia corresponder-lhe! As ideias que eu traçara mais não eram que a projecção da mulher ideal que eu desejava. Os outros que existem em nós nunca são outros-eles, mas antes outros-nós. Poderemos algum dia conhecer alguém? Quantas vezes pensei que a conhecia? E de um momento para o outro ela foi-se embora.

    «Que importa que não possa realizar a feroz paixão que me abrasa, quando a noite voraz se espreguiça sobre a terra, cobrindo-a com o seu manto negro?» Pensava para mim, enquanto me deleitava com as sucessivas imagens de uma deusa que ia desenhado no meu cérebro, e que assim ia ganhando mais realidade que o próprio modelo.

    9.

    Cheguei à segunda aula da tarde cinco minutos atrasado. Nada de especial. Quem leccionava naquele dia era um professor assistente, que tinha acabado o curso há pouco e fora convidado a ficar na faculdade; visto a turma ser constituída na maioria por rapazes, discutiam-se os resultados dos jogos de futebol do fim-de-semana. Algumas cabeças desinteressadas viraram-se para trás no momento em que entrei. Sentei-me num lugar vago ao fundo do anfiteatro. Por sorte, a entrada era por cima, caso contrário teria de passar por centenas de olhos fixos em mim, o que me teria perturbado. As poucas pessoas que reviraram o seu olhar na minha direcção depressa perderam o interesse, centrando-se antes no colóquio desportivo ou antes nos acalorados simpósios de peque-nos e animados grupos de estudantes que debatiam entre si, dissertando sobre as mais aparatosas bebedeiras da madrugada passada.

    Pousei a cabeça entre os braços cruzados, sobre a bancada, e dormitei a duas horas seguintes, até que a algazarra dos meus companheiros, abandonando a sala, me despertou. Fui jantar às cantinas, arrastado pelos chamamentos de alguns colegas que estranhavam o meu alheamento.

    10.

    As primeiras semanas foram promissoras. Por momentos, consegui mesmo esquecê-la. Ou melhor, houve breves instantes em que pensei menos nela. Era difícil esquecê-la; porque sentia que cada segundo que passava era um segundo

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1