Caminhando sobre as brasas
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Caminhando sobre as brasas - Alexandre de Deus Monteiro
I
Às vezes, há necessidade premente de se ir para além da fronteira nacional, para se poder cultivar a vida, quando na verdade se tem essa carência. Contudo, esse enriquecimento pode proporcionar ao aventureiro experiências dolorosas e tristes, principalmente quando se tem uma visão aguda e ciente. Ao nos depararmos com a Fronteira de Tuy, detectando um espaço entre duas cancelas altamente vigiado por homens de duas nacionalidades, exigindo dos utentes elementos informativos afeitos a credibilidade para poderem pisar a Terra pretendida, comecei sentindo aos trambulhões à medida que íamos nos aproximando da primeira cancela, que me parecia a porta de outro mundo.
– Documentos por favor – solicitou-nos Polícia Portuguesa.
– Aqui estão os três passaportes – disse Ricardo ao solicitante.
– E da pequenina? Ah, desculpe-me…
– Pois, está no meu passaporte – disse Lucinda com um tom censurante.
– Podem passar e que tenham uma boa viagem.
– Muitíssimo obrigado – dissemos todos em uníssono.
Um suspiro profundo parecia contrair-me os dois pulmões, mas, mesmo assim, o meu coração não tomou o ritmo de costume porque ainda havia a parte mais escorregadiça por passar. Contudo, à medida que as coisas iam solucionando-se, a minha aventura ia tornando-se mais melosa, em virtude da ânsia por conhecer um povo que me atraía profundamente e desde a minha tenra idade, atendendo contactos com uma revista literária que o meu tio António Hopffer Almada recebia de Espanha.
Já no posto aduaneiro espanhol, mostrando tralhas que nos acompanhavam aos agentes acometidos a essa área tão complexa e como também de profunda responsabilidade, porque efetivamente constitui um dos filtros destinados a assegurar o equilíbrio econômico, social e cultural.
– ¿Tienen algo que declarar?
– Nosotros solamente tenemos regalitos y cosas personales – respondeu Lucinda, fazendo trejeito.
– ¿Y qué lleváis en ese maletín?
– Discos, Senhor. E são da minha autoria.
– ¿Qué dijo?
– Ha dicho que son los discos y con canciones de su autoría – respondeu Ricardo, gesticulando com as mãos.
– Ah, él es cantante… Pero lo siento… verás, es que todo el mundo tiene que abrir maletas y otras cosas semejantes.
– Claro que abro – respondi-lhe com um ar colaborante.
O problema consistia no fato de que o maletim se encontrava fechado sob um mecanismo confidencial e que nesse momento não conseguia rememorizar-me o número do acesso. Essa situação condicionou o meu estado de ânimo, ao ponto de atonitisar-me.
– ¿Es que no te acuerdas del numero? – perguntou-me com suspicácia – que é normal num defensor da lei, segundo os bons costumes.
Por fim o maletim abriu. A expectativa insinuosa desmoronou-se. Um circo constituído por humanos, tendo a minha pessoa como eixo e o agente policial como raio, constituía um fatigoso jogo à beira de um escândalo.
– ¡Caramba! – vocês, em uníssono.
– Yo he visto eso en la Isla de Madera – disse um dos supostos insinuosos.
– Esto, es un aparato que se mueve con la ayuda de los animales vacuno y sirve para machacar cañas de azúcar, extrayendo el líquido con que se hace miel, azúcar o aguardente – interveio Ricardo, com uma expressão facial muito convincente.
– ¿Y son para vender?
– No. ¿Le interesa?
– ¡ Claro que me interesa!
– Entonces queda con ese ejemplar.
– Muchas gracias y que pasen bien por Galícia.
– También a ustedes, Señor Guardia.
Ainda na fronteira, a noite se aproximava; e com ela o frio, fazendo sentir o ponto cardinal do país; mesmo assim o seu efeito constituía um mal bastante menor para que me baixasse o valor intrínseco de que dispunha face à nova fonte a explorar, no âmbito de aventura.
– Tomamos algo, Alexandre? – perguntou-me Ricardo.
– Sim. Temos que celebrar a minha nova experiência.
– Vocês podem ir para o bar, que eu meto tudo no carro – disse Lucinda.
Recusamos determinantemente.
– Não, iremos juntos – impôs-se Ricardo.
Com as coisas postas em ordem, deslocamos para um bar vizinho as instalações alfandegárias.
– Buenas. – a sala inteira recepcionou-nos com um cumprimento em um perfeito estado de harmonia – Essa natureza de comportamento me imprimiu, com um estalo grande na minha alma, uma profunda admiração para com a Galícia e em particular com o seu povo.
– ¿Qué toman? – perguntou-nos o empregado.
– Alexandre, que tomas?
Perdido em few the back, retratando o panorama do acontecimento numa das instalações alfandegárias.
– Que tomas, homem! – insistiu Ricardo.
– Ah…, tomamos uma coisa forte!
– ¡Dos cuba libre!
– Bem, esta situação merece um brinde. Portanto, brindemos…
II
De Tuy, tomamos rumo a Burela, via a Cidade de Vigo, albergadora de um amplo porto pesqueiro e vários estaleiros navais altamente capacitados nas áreas de construção e reparação de barcos.
– Que cidade! – exclamei com poesia no coração.
– Tu ainda não viste nada! Se passares de dia, então depararás com outro encanto.
– Não é verdade Ricardo. À noite, uma cidade tem mais possibilidades de se expressar: seus labirintos e inclusive sua beleza.
Atravessamos uma longa ponte sobre o rio que liga a Cidade de Vigo a outros pontos do país, e com perplexidade me ia perdendo no Atlântico sob a força de entre-dia-e-noite, que talvez se pode compreender como uma escapada a casa ou uma autêntica conspiração espiritual.
A chuva caía torrencialmente. A Lucinda e a filha dormiam como se estivessem em suas camas de todos os dias. Eu, embora cansado, preferi manter-me desperto ao sabor da música cabo-verdiana e ao mesmo tempo apreciando as paisagens sob penumbra, enquanto éramos conduzidos pelo Ricardo, que lidava com sabedoria uma modesta viatura…, e num perfeito estado de ânimo.
A Costa Lucence se aproximava com aspereza devido à má estrada que se podia ir constatando, mas, mesmo assim, a viagem não se interrompeu até a porta do edifício onde vivia o Ricardo e a família.
– Despertem, que já chegamos a Foz – disse Ricardo, com uma certa destreza.
– Foz? Então estamos chegando a Burela! Sinceramente esta costa caracteriza uma vista panorâmica que alucina a qualquer ser humano. Que mar azul!
– Nesta povoação, vivem cabo-verdianos. E em seguida chegaremos a Canga de Foz, e ali também vivem os nossos conterrâneos.
– E trabalham em quê?
– No mar. Neste momento, todos os cabo-verdianos que residem na Costa Cantábrica levam vida de marinheiros, exceto as mulheres que