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De Vermelho E De Cinza
De Vermelho E De Cinza
De Vermelho E De Cinza
E-book488 páginas6 horas

De Vermelho E De Cinza

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Sobre este e-book

A religião cinzenta espalha-se cada vez mais rápido pelo mundo. Seu mais antigo e ferrenho inimigo, O Punho de Deus, planeja um ataque fulminante a sua mais sagrada cerimônia. Helena, uma assassina de classe mundial, decide que o único jeito de encontrar seu antigo amante é mergulhar na central dos cinzentos, Paris. Os cinzentos, por sua vez, antecipando isso, veem em Helena a peça perfeita para seus planos dentro de planos. No Brasil, Gloria está para descobrir que São Paulo é uma cidade feita de várias cidades. Uma dessas cidades é feita de iluminattis, clãs, honra, espadas e samurais.O mundo está se tornando cada vez mais cinza, mas talvez, no grande tabuleiro de forças, Gloria pode se tornar o peão vermelho que irá decidir o grande jogo.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de out. de 2018
ISBN9780463147368
De Vermelho E De Cinza
Autor

Y.N. Daniel

Em 2016 completo 10 anos escrevendo livros. 10 anos já é um tempo respeitável. Aqui é onde eu deveria escrever sobre mim. Mas ao invés disso vou lhe dizer uma coisa. Eu não sei o que as pessoas querem ler. Mas sei exatamente o que quero escrever. :D

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    De Vermelho E De Cinza - Y.N. Daniel

    CAPÍTULO 1

    Uma folha seca se desprende do galho de uma árvore e cai. Mas antes de chegar ao chão, é carregada por um vento que anuncia uma torrencial chuva de verão. A folha seca rodopia em um redemoinho no meio da rua, depois dispara em direção ao alto. Paira no ar, desce, passa por cima de alguns magnocarros, e é arremessada por uma lufada de vento em direção à janela de vidro de um restaurante. Um que ficava entre a tradicional rua Bela Cintra e a rua Sarandi.

    O prédio, de quatrocentos anos, permanecia intocado em suas características arquitetônicas originais. A emblemática medusa no alto da porta de entrada lembrava que ali, algum dia, havia funcionado um outro tipo de estabelecimento. Mas o que havia sido, ninguém mais lembrava.

    Hoje, a medusa era o símbolo do restaurante franco de nome La Maison de Marinete. Um restaurante de esquina, de dois andares, que estava sempre lotado devido aos preços justos e a boa comida.

    La Maison de Marinete era um oásis para os francos que viviam em São Paulo. Uma cidade de maioria brammy.

    Entre os francos presentes e entre o murmurar de um francês arcaico falado por eles, haviam duas mulheres em uma mesa próxima a uma das janelas de vidro, que não estavam falando nem português e nem francês. Elas falavam um inglês com sotaque marcadamente norte-americano. E por causa disso recebiam, vez por outra, olhares censores dos ocupantes das mesas próximas.

    — Então, Mei Mei, o que é tão importante que fez você descer até aqui?

    —Você sabe que a ideia de que este país está embaixo e a América está em cima é apenas uma convenção, não sabe?

    —Sim. Não sou tão nerd quanto você, mas sei. Mas então, o que fez você descer até aqui?

    O tom de Gloria era coloquial. Ela não poderia dizer que Mei Mei era uma amiga de longa data. Afinal, seus encontros haviam sido sempre de natureza puramente profissional. Ainda assim, de alguma forma, havia uma amizade entre as duas.

    Chega uma moça de cabelos castanhos, sardas próximas ao nariz e carregando uma bandeja de aço. Arroz com brócolis, steaks de carne artificial, legumes cozidos, molho de mostarda, uma farofa de quinoa, pão torrado e bacon.

    Enquanto a moça se vai, Mei Mei toma um gole de vinho. O vinho franco era tão bom ou melhor que o vinho clandestino francês. Um vinho jovem, cheio de sol, era o que ela pensava. A cabernet sauvignon, assim como a estátua da liberdade americana, era uma francesa que ninguém mais lembrava da origem. A uva cabernet sauvignon era brasileira e ponto final, era o que os francos diziam. E Mei Mei não podia fazer outra coisa que não fosse concordar.

    — Você parece bem — fala Mei Mei.

    — Você também. Nunca pensei que fosse ver você com uma roupa dessas.

    — É verão.

    Mei Mei estava vestida com um vestido branco, estampado com pequenos pontos azuis-escuros, que ia até os joelhos. Cabelos soltos, unhas pintadas de branco, e botas pretas de cano curto que lhe davam uma aparência jovial.

    Gloria, como sempre, vestia uma calça jeans, botas de couro curtido por debaixo da calça e uma camiseta branca. O cabelo estava preso em um rabo de cavalo amarrado com uma tira que Mei Mei não conseguia identificar de que material era.

    Gloria ataca o steak. Mei Mei olha para fora e percebe o tempo a mudar de um dia ensolarado para um dia de chuva.

    Um ano já havia se passado desde a última vez que as duas haviam se encontrado. Certamente as lembranças já deviam estar menos vívidas, esperava Mei Mei.

    — Gloria, você se lembra da última vez que nos falamos?

    — Sim — ela responde com a boca cheia — você me ajudou a salvar meu filho daquele filho da puta do Petronius.

    — Sim, ajudei — ela fala olhando para as nuvens carregadas no céu.

    Um casal de idosos francos muito bem vestidos, diferente dos demais, parece estar mais curiosos do que irritados com as duas americanas.

    — Gloria, sabe como Petronius ficou sabendo de você e do seu filho?

    — Ele era diretor da CIA. Uma hora ele ia descobrir. Você me avisou disso, lembra?

    — Sim.

    Gloria para de comer.

    — Por que está me perguntando isso?

    — Gloria, fui eu que forneci a sua localização e a do seu filho para Petronius — Mei Mei dispara a notícia à queima-roupa.

    O semblante de Gloria muda. A expressão relaxada torna-se dura. Os olhos ficam arregalados. Os lábios se contraem.

    — Você não está falando sério.

    — Eu entreguei você — fala Mei Mei de uma forma fria e impessoal.

    Gloria sente uma coceira na batata da perna direita.

    Os abafadores psíquicos não lhe permitiam nem ler e nem implantar ideias nas mentes das pessoas ao seu redor. Ainda assim, aquela coceira lhe dizia quando algo relacionado a telepatia estava ocorrendo.

    Por alguns segundos, que no plano mental significavam horas, ela, sem saber o porquê, é atraída por um homem já de meia idade que acompanha uma menina com não mais de dezesseis anos. Tudo indicava que ele era um guarda-costas. A postura, o olhar, a forma eficiente com que ele mantinha a distância entre a garota e as outras pessoas. Tudo feito com muita habilidade e discrição. Mas algo estava errado, algo estava definitivamente fora do lugar.

    Depois que os dois passam por sua mesa, Gloria volta a conversar com Mei Mei.

    — Você veio dos Estados Unidos para me dizer isso?

    — Sim.

    Gloria respira fundo.

    — Eu não sei o que dizer. A única coisa que posso pensar agora é em como você é uma tremenda filha da puta, fria e calculista.

    Mei Mei não diz nada.

    — Por sua causa eu quase perdi meu filho.

    — Eu sei, eu sinto muito.

    — Você sente muito?

    — Sim.

    — Sabe Mei Mei — ela pega a faca que estava ao lado de seu prato e segura-a com a técnica de empunhadura de punhais — a única coisa que tá me impedindo de te dar um soco na cara é o respeito que eu tenho pelo JB.

    Provavelmente, em um combate corpo a corpo, Mei Mei levasse a melhor. Gloria a tinha visto em ação uma única vez, em um combate com o próprio JB, anos atrás. Uma exibição para os alunos da academia. Mei Mei era inumanamente rápida. Não seria fácil pegá-la desprevenida, mas a tentativa de quebrar o nariz daquela estava a sua frente, ainda que falhasse, já serviria para amenizar minimamente toda a raiva que estava sentindo naquele momento, pensava Gloria.

    — Eu não espero que me perdoe, eu apenas achei que você devia saber a verdade — fala Mei Mei, ainda sem denotar nenhum tipo de remorso — mas eu quero que você entenda que eu fiz isso pra tirar a Tiffany do coma. O Petronius apareceu no hospital e me fez uma proposta, Gloria. Uma proposta que eu não pude recusar. Ele ofereceu uma vida normal para minha filha.

    — E pra conseguir essa vida normal, você me empurrou na frente de um ônibus a duzentos por hora, é isso?

    — É.

    — E como está a Tiffany? — Gloria pergunta, como se daquela resposta dependesse todo o futuro entre ela e Mei Mei.

    — Bem, perfeita, sem nenhuma sequela dos anos do coma.

    A resposta era uma quase verdade.

    Tiffany estava fisicamente saudável, mas havia um pequeno detalhe que Mei Mei não ousava revelar. O processo utilizado para tirar sua filha do coma, de acordo com JB, Joe Brown, pai de sua filha e seu ex-marido, era algo, à primeira vista, em pleno século vinte quatro, que soava mais do que fantasioso, soava ridículo. Mas o ridículo da ideia era a única explicação para conseguir o que os melhores médicos das Américas e da Europa não haviam conseguido, acordar Tiffany. O Chelovektenney, que havia conseguido o milagre de acordar Tiffany, havia utilizado, por falta de outra palavra, magia negra.

    — Que bom.

    Silêncio, coceira na batata da perna.

    Gloria se levanta da forma mais grosseira que consegue.

    — Como mãe eu entendo o que você fez, mas sabe do que mais? Eu jamais faria o que você fez.

    Os francos nas outras mesas param o que quer que estivessem fazendo para prestar atenção na conversa das duas.

    — Você é melhor do que eu — fala Mei Mei como uma constatação amarga.

    — Pode apostar que nisso eu sou.

    Gloria levanta, resvala seus dedos em um copo na mesa com vinho pela metade e parte.

    O vinho se espalha pela mesa, o copo rola e cai se espatifando no chão.

    No elevador, que irá levá-la até o subsolo, ela encontra o guarda-costas e a garota.

    Algo está fora do lugar.

    O elevador chega. Eles entram.

    E enquanto o elevador desce, no estacionamento, magnocarros e flyers empilhados são movimentados de lá para cá como brinquedos por gigantescos braços mecânicos.

    O elevador chega ao estacionamento. A porta abre.

    O guarda costas e a garota saem primeiro.

    "Algo está fora do lugar. Eu sei. Mas seja lá o que for, eu não tô com cabeça para isso agora. " Ela diz para si mesma.

    Do nada aparecem homens com roupas leves, sapatos esportivos e ostentando tatuagens que pareciam ir do pescoço e continuar pele a dentro. Cabelos curtos, rentes ao couro cabeludo. Os pulsos adornados com pulseiras de ouro e prata, e cordões também de ouro e prata. Não era necessário um grande poder de análise para concluir que aqueles eram agentes da máfia russa. Aquelas roupas e pequenas cruzes tatuadas em alguns dedos lhe confirmavam sua suspeita.

    "Garota, rica, guarda-costas, máfia russa, conclusão, fudeu"

    Em campo aberto ela poderia acessar as mentes de todos ali e fazê-los acreditar que a garota tinha sumido. Mas com todos aqueles abafadores psíquicos, sua telepatia e nada eram a mesma coisa.

    "OK, Gloria, ganhe tempo"

    — Ei, peraí, vocês vão furar a fila? Eu tava atrás dela — diz Gloria apertando um sinal de emergência em seu zscinolex de bolso e indo em direção a garota.

    Um homem imenso, quadrado como um armário, intercepta seu caminho.

    — Isso não lhe diz respeito — ele fala em português.

    — Não me diz respeito? Você tá furando a fila!

    — Procure outra saída. Este estacionamento tem várias saídas — ele fala como se fosse um guia de turismo.

    E é então que tudo começa.

    Tudo acontece rápido. Mas na mente de Gloria aqueles segundos são uma eternidade.

    Seis homens sacam suas armas para atirar em um único alvo, o guarda-costas. Este, com reflexos muito superiores aos seus atacantes, saca sua arma e dispara primeiro. Ele acerta três, antes de levar um tiro no peito e outro na cabeça. Enquanto quatro corpos se precipitam ao chão, dois guardam suas armas e já capturam a garota, segurando-a pelos antebraços. A garota não esboça nenhum sinal de medo — o que não passa despercebido por Gloria.

    Um golpe de faca de mão no pomo de Adão do gigante a sua frente o incapacita. Ele leva as mãos à garganta. Ela saca sua arma que estava escondida em suas costas e consegue acertar um deles no peito. A garota faz um movimento brusco com um dos braços segurados pelo sequestrador que ainda está de pé. O anel dela faz um risco na mão dele. Ele se distrai. Tempo suficiente para Gloria acertá-lo com um tiro na face direita. Ele cai. A garota arregala os olhos. Há medo em seu rosto. Mas logo Gloria percebe que aquele medo não era resultado de um instinto de autopreservação. Ela estava com medo pela louca que estava tentando salvá-la. Então, já era tarde demais para ela entender o erro que havia cometido. Alguém estava atrás dela.

    "Eu devia ter golpeado com mais força"

    Ouve-se um tiro. Um corpo cai.

    Silêncio.

    Gloria se dá conta de que ainda está viva.

    Atrás dela, o gigante caído de bruços no chão e, mais atrás, Mei Mei empunhando uma pistola-palma com a mão direita, com os cabelos perfeitamente arrumados.

    Mei Mei coloca de volta a pistola na parte interna de uma das coxas. Destino ou não, ela agradece a oportunidade salvar Gloria e recuperar sua face.

    — Da próxima vez, bata com mais força — fala Mei Mei, como se estivesse falando para uma plateia de teatro.

    A garota está parada, olhando para Gloria, curiosa com o que está vendo. Mas ela não deveria estar tremendo, chorando, tendo um ataque de pânico? Se pergunta Gloria.

    — Isso não muda o que você fez.

    — Não, não muda — concorda Mei Mei.

    — Estamos quites — diz Gloria.

    — Não, não estamos. E eu não espero que me perdoe, apenas... apenas não me odeie Gloria.

    "Você acabou de salvar minha vida, sua filha-da-puta calculista. Não tem como eu te odiar agora sua cretina"

    Mei Mei não era telepata, mas ela entende que o olhar de Gloria era uma espécie de Talvez um dia, quem sabe, possamos voltar a ser amigas de novo, uma porta muito estreita havia se aberto, e aquilo era mais do que suficiente para Mei Mei. No final, quem diria, a ideia de seu ex-marido de que ela deveria contar o que havia feito à Gloria para recuperar sua honra não havia sido de todo mal. Na verdade, ela era obrigada a reconhecer que, naquele momento, a ideia de Joe Brown havia sido a mais acertada.

    Mei Mei, com a alma relativamente mais leve, se prepara para ir embora, mas não sem antes lançar um olhar que Gloria já havia visto outras vezes em outros rostos.

    "Sabe Gloria, eu ainda não consegui decidir se você é uma pessoa muito sortuda ou muito azarada, ou, quem sabe, as duas coisas"

    "As duas coisas Mei Mei, as duas coisas"

    — Você está bem? — pergunta Gloria para a garota que deveria estar aos prantos, mas que parecia calma como se nada tivesse acontecido.

    A menina, com seus cabelos naturalmente frisados, que pareciam estar eletrificados, a olha com um semblante que Gloria não conseguia identificar que tipo de emoção expressava.

    Ela estende a mão.

    — Celeste Gandolfini.

    — Gloria Sanson — ela aperta a mão da garota, sentindo-se confusa com aquela aparente calma.

    Depois de estar certa de que a garota a sua frente não tinha ferimentos graves no corpo, ela se volta para o guarda-costas caído.

    — Ele está morto — fala Celeste usando uma entonação analítica.

    — Eu sinto muito.

    — Eu também. Ele era um bom homem.

    A energia do estacionamento muda.

    Homens e mulheres vestidos em roupas cáqui estruturadas de silkspider, usando luvas de couro cru, começam a brotar das sombras das colunas do estacionamento. Ao redor do pescoço, colares com insígnias chamativas e cujos significados eram completamente desconhecidos para Gloria. Estavam todos com pistolas-palma em punho. Na cintura, portavam espadas que lembravam floretes.

    — Se quiser continuar viva, afaste-se dela agora — diz uma mulher esguia, com o cabelo preso para trás, apontando para Gloria uma pistola e uma espada.

    — Ela me salvou, Amanda — diz Celeste sem estranhar aquelas pessoas que acabavam de ter saído das sombras como em um passe de mágica.

    — Se isso é verdade, nossa eterna gratidão — a mulher fala fazendo uma mesura mínima de cabeça.

    — E vocês são?

    Amanda ignora a pergunta.

    — Venha Celeste.

    Antes de ir embora Celeste faz um gesto inesperado. Ela se aproxima de Gloria e a abraça.

    — Obrigado por salvar minha vida Gloria Sanson.

    — Huummm, disponha — Gloria responde sabendo no seu íntimo que algo continuava fora do lugar, mas não sabia o quê.

    Celeste dá a mão para Amanda e ambas somem nas sombras das colunas do estacionamento. Em seguida, os outros fazem o mesmo, levando consigo os corpos que estavam estirados no chão.

    Os corpos estavam sendo levados. Mas e quanto às manchas de sangue no chão? E a gravação do que havia acontecido no sistema de segurança que, provavelmente, já tinha sido transmitida para a central de polícia mais próxima?

    "Amadores"

    Ela acaba o pensamento e uma mulher idosa, de cabelos que pareciam palha seca de milho, vestida de azul, aparece. Do carrinho flutuante ela retira três pequenos robôs em forma de pizza que, assim que tocam o chão, começam o trabalho de procurar e limpar sangue ou qualquer outro tipo de fluído ou matéria orgânica que possibilitasse a análise de DNA para identificação.

    — Você, moça, pode ir embora — ela fala mostrando dentes tão separados que pareciam os dentes de um tubarão.

    — Ãhh... você é uma faxineira? Quer dizer, você sabe o que eu quero dizer, não sabe?

    — Sim eu sou faxineira, e não se preocupe com os rastros digitais. Esses iluminatti não deixam rastros. É a especialidade deles.

    E de novo o olhar de Mei Mei lhe vem à cabeça Eu sou muito sortuda ou muito azarada? Iluminatti?

    No dia seguinte, às seis da manhã, Gloria Sanson estava na Av. Brigadeiro Luís Antônio, número 3367, no Whilhelmina Gracie Building, no sexagésimo quinto andar, em uma sala, sendo observada por uma estátua de Ares que parecia lhe dizer, E aqui estamos nós de novo. Você não cansa de entrar nessas roubadas?

    "É um hobby", ela responde à pergunta imaginária.

    — O senador Álvaro Gandolfini entrou em contato comigo.

    — Huuummmmm....

    — Huuummmmm?

    — E? — Gloria pergunta como uma criança pega por um adulto fazendo algo errado.

    — Gloria — sua chefe, Marcela Zsa Zsa Gracie, apoia os cotovelos na mesa em forma de arco — ele quer que você seja a nova guarda-costas da filha dele.

    — Ah.

    — E, você não quer me dizer como é que isso aconteceu? — Zsa Zsa pergunta como se as duas estivessem encenando uma peça de teatro e aquilo fosse uma deixa.

    — Bem, quer dizer, eu estava num restaurante, e a filha dele ia ser sequestrada, e eu, é, acho, salvei a vida dela. Fiz mal?

    — Não, não, é óbvio que não.

    A Zsa Zsa que Gloria havia conhecido logo quando havia chegado ao Brasil havia mudado. Os cabelos rentes a cabeça haviam sido abandonados. Estes agora estavam longos, muito bem cuidados. O hábito de usar pouquíssima ou nenhuma maquiagem continuava igual. Mas as unhas, estas estavam sempre impecáveis. A forma de falar, de se expressar, de andar, de se mover, tudo parecia suavizado. Afinal, a vida de casada estava indo bem para Zsa Zsa, pensou Gloria.

    — Você sabe quantos clientes iluminatti nós temos? — Zsa Zsa pergunta de forma despreocupada.

    — Hã... não.

    — Nenhum. Álvaro Gandolfini vai ser o primeiro iluminatti, desde que esta empresa foi fundada, a virar cliente.

    — E isso é bom, certo?

    — O que você sabe sobre os iluminatti, Gloria?

    — Eles são ricos, muito ricos.

    — Isso é verdade. Mas além de serem um clube de zilionários, eles são pessoas que devemos manter distância, é o que dizia minha vó. Sabe, Gloria, esse povo é rico há muito tempo. Eles estão no topo da pirâmide há dezenas, centenas de gerações. Pra eles o mundo é um tabuleiro de xadrez. Nós somos as peças e eles são os jogadores. E você sabe o que isso significa?

    — Hã, acho que não.

    — Jogadores não se relacionam com as peças que jogam. As peças são só peças.

    Zsa Zsa se levanta, vai até um armário embutido e tira dele uma garrafa com água. O antigo hábito de beber Bubble Star havia sido abandonado. Ao que parecia, não beber bebidas alcoólicas fazia parte da nova condição de casada.

    — Água?

    — Sim, obrigada.

    Zsa Zsa dá uma garrafa para Gloria.

    Bebendo água da boca da garrafa descartável Zsa Zsa caminha lentamente de volta a sua cadeira.

    — Eu não posso dizer não para o senador Gandolfini. Isso seria péssimo para os negócios. Mas ter um iluminatti na minha carteira de clientes também não é exatamente bom para os negócios. Ou seja, você me trouxe um cliente bilionário, que é bom, e me trouxe um cliente que tem uma agenda secreta, que vai deixar todos os outros nossos cientes com uma pulga... não, não uma pulga, um elefante atrás da orelha. Então a minha pergunta é, como diabos você faz isso? Como é que consegue juntar tanto azar e tanta sorte numa coisa só? Você faz de propósito? É um dom? — Ela suspira aparentando cansaço mental.

    — A menina tava em perigo, eu fiz o que tinha que fazer. Eu não sabia quem era. Mas se soubesse, também, não mudaria nada.

    — Pois é, e tem isso também. Você faz de um jeito que a gente não consegue ficar com raiva de você — fala Zsa Zsa resignada.

    Silêncio.

    — Tá certo, tá certo. Agora vamos ao que interessa — Zsa Zsa se recompõe — Eu só vou te dizer três coisas.

    — Pode falar.

    — Faça um bom trabalho, tente se envolver o mínimo possível com essa gente e, principalmente, não morra durante o serviço. Isso seria péssimo para a imagem da empresa.

    — Mas e quanto ao El Toro?

    — Uma das empresas do senador é uma grande patrocinadora do El Toro. Ou seja, ele abriu mão dos seus serviços.

    "Não morda a mão que te alimenta", pensa Gloria.

    O rosto de Gloria não esconde a alegria de não ter mais que ser guarda-costas do famoso jogador de rúgbi, ídolo de milhões ao redor do mundo, mas que ela considerava, por falta de expressão melhor, um pé-no-saco. Mas logo depois de se dar conta que não teria mais que aturar as infantilidades dele, algo nela começou a sentir saudades do gigante que gostava que ela avaliasse se ele estava cheirando bem ou não.

    — Tem mais uma coisa. O senador pediu para triplicar o seu salário. Mas por favor, não comente isso com ninguém. A última coisa que eu preciso agora é um time enciumado porque uma novata está ganhando bem mais do que eles.

    — OK.

    — E é isso, você começa hoje.

    Gloria espera Zsa Zsa se levantar para só então fazer a mesma coisa.

    Não passa despercebido de Zsa Zsa que Gloria esperou que ela levantasse primeiro. Então estamos aprendendo boas maneiras, não é, dona sortuda-azarada? , pensou ela.

    Durante o aperto de mão Zsa Zsa faz uma cara que causa estranhamento em Gloria.

    — O que foi? — Gloria pergunta.

    — Eu não sei. E esse é o problema.

    CAPÍTULO 2

    Obairro prisão Green Fly, também conhecido como Morumbi, era maior prisão do planeta. Projetada para ser um modelo de recuperação de infratores da lei e da ordem, a prisão Morumbi tornou-se uma espécie bizarra atração turística da cidade de São Paulo.

    Além de ser vigiado por uma nuvem de drones e robôs de vigilância, o bairro era rodeado por uma muralha de cinquenta metros de altura e com cinco metros de espessura.

    Com uma população de trezentos mil presos, o Morumbi era um bairro cidade com sua própria lógica, economia e lei.

    A propaganda do governo brasileiro era a de que o índice de recuperação de presos, e a reinserção destes na sociedade promovida pela Morumbi, era o maior e mais bem-sucedido do planeta. Porém, como sempre, há uma diferença muito grande entre propaganda e realidade. Alto índice de recuperação, sim. Motivo? Quanto mais tempo no bairro prisão, menores as chances de sobrevivência do prisioneiro. Trezentos mil detentos, milhares de facções, um número infinito de combinações de interesses, dezenas de chefes de gangues, tudo isso fermentando em um ambiente autoregulamentado pela lei do mais forte. Desta forma, só existiam três possibilidades. Tornar-se um líder criminoso, recuperar-se e dar o fora daquele lugar, ou sucumbir. Das três opções, a segunda era a mais adotada, mas a terceira era a mais frequente. Quanto a tornar-se o líder de alguma facção ou gangue, bem, isso era algo para muito poucos.

    De longe, tinha-se a impressão de que a Morumbi, a grande mosca verde na orgulhosa e rica cidade de São Paulo, era um ecossistema fechado e isolado do resto da cidade. Grande engano.

    O fluxo de informações entre o bairro prisão e o mundo externo era intenso. Apesar do total bloqueio de sinais de satélite, ou qualquer outro sinal que tivesse o intuito de penetrar na cidade prisão, a informação escoava para dentro e para fora do bairro prisão tal qual óleo hiperfluido.

    E quando e como as informações escoavam para dentro e para fora? Isso acontecia durante as visitas, as quais eram monitoradas pelos mais avançados robôs de vigilância do planeta, a.k.a., spyrobots.

    As visitações eram feitas em cabines separadas por uma barreira de alovidro de vinte centímetros de espessura. Mas graças aos chips zscinolex embutidos, a imagem e som eram transmitidos através da barreira como se ela não existisse. O que podia ser algo bom, mas, dependendo da visita, algo profundamente perturbador.

    Em uma dessas cabines, uma mulher toda vestida de preto, de óculos escuros, sentada com as costas perfeitamente retas, com as mãos pousadas sobre as pernas, esperava.

    Do outro lado da cabine, aproxima-se um homem magro, desgastado, olhos fundos, rosto triangular e cabelos precocemente brancos.

    Ele se senta e não reconhece quem está a sua frente.

    — Quem é você? — Ele pergunta com um tom agressivo.

    — Quem sou eu?

    — É quem é você?

    — Eu sou uma mãe que teve a filha atacada e estuprada por um marginal filho da puta que achou que ia conseguir se esconder — ela fala com uma calma gelada.

    Ele arregala os olhos e, assustado, levanta e some com um pavor colado em sua face.

    A mulher continua imóvel.

    Reconduzido a cadeira por dois guardas fortes como halterofilistas, ele volta à cadeira. Mas desta vez, mãos com dedos de alicate o deixam imóvel.

    Ele começa a se debater.

    — Essa mulher quer me matar! — Ele grita para que algum robô de vigilância acione algum protocolo. Mas nada acontece.

    — Essa mulher quer me matar! — Ele grita de novo, dessa vez para os guardas. Mas nada acontece — Vocês estão ouvindo?! Me tirem daqui! Agora! Alguém tá me ouvindo?! Essa mulher quer me matar!

    A mulher de preto acena para um dos guardas.

    Ele tira uma massa do bolso, aproxima-a da boca do detento e esta se transforma em uma mordaça. Ele ainda tenta se livrar das garras que o prendem na cadeira, mas o esforço é em vão.

    — Acabou? — Mei Mei pergunta, tirando os óculos.

    O homem não dá sinal de que entendeu a pergunta.

    — Você não é uma pessoa fácil de achar, Nino. Eu demorei cinco anos pra entender que o único lugar que poderiam ter escondido você era aqui, na América do Sul, nessa prisão. E durante todos esses anos, eu ficava me perguntando O que eu vou fazer com aquele filho da puta quando encontrar ele? .

    O coração de Nino se acelera ainda mais.

    — Você não destruiu só a vida da minha filha, Nino, não. Você destruiu uma linda possibilidade de futuro. Você destruiu o meu sonho de ter uma vida normal. Huummmm... eu sei, eu sei, gente como eu não tem vocação pra ter uma vida normal, mas você entende o que eu quero dizer, não entende?

    Ela suspira.

    — E aqui estou eu na sua frente. E olha só, depois de cinco anos todo aquele ódio que eu sentia sumiu. É isso aí. Não é esquisito? Mas como assim? Você deve tá se perguntando. Bem, chegou uma hora que eu cansei de ter ódio. Eu sabia que um dia eu ia te pegar. Era só uma questão de tempo e paciência. E essas são duas coisas que eu tenho de sobra. E pra completar, uma coisa ótima aconteceu.

    Ele parece confuso.

    — Pois é. Ela se recuperou. E isso é muito bom. Principalmente pra você. E quer saber por quê?

    Ele tenta falar, mas a mordaça transforma sua tentativa em grunhido.

    — Porque eu decidi que não vou te matar.

    Nino sente um breve alívio.

    — Maaaaassss... — ela sorri — isso não significa que eu perdoei você. Nã-nã-ni-nã-não. Isso significa que eu não preciso mais te matar porque a sua vida, daqui pra frente, está nas minhas mãos. Eu vim aqui pra que você saiba, que eu sei como te encontrar não importa o quão bem escondido você acha que esteja. Além disso, eu quero que você saiba que pode acontecer de, um dia, eu acordar de mal humor e, por nenhuma razão aparente, decidir que não quero mais que você viva. E isso pode acontecer hoje, amanhã, daqui a um mês, um ano, ou nunca. Então, todos os dias quando você acordar, você vai se perguntar Será que é hoje? .

    Ela cruza as pernas.

    — Mas e quanto a todos esses robôs de vigilância? E quanto a todas essas I.A.s que monitoram esse pequeno pedaço do inferno em que você vive? Por que nenhum deles dispara um alarme ou coisa parecida? Por que Nino? Porque eles são bons, mas eu sou melhor. E, antes que eu me esqueça, mantenha-se informado. Daqui pra frente, você é meu informante oficial desse lugar. E é isso. Adeus, Nino.

    Ela acena com a cabeça para os guardas. Em resposta, eles arrastam Nino para longe da cabine. Ele grunhe alguma coisa. Mas ela não entende o que é, e nem está interessada.

    Do lado de fora, na calçada, um homem alto, esguio, branco, cabelos pretos, barba serrada, rosto fino, olhos levemente orientais, ombros largos, vestido com algo que parece um quimono preto estilizado e perfeitamente ajustado ao corpo, a esperava.

    — E então? Como foi o seu encontro? — Ele pergunta.

    — Satisfatório.

    — Fico feliz em ouvir isso.

    Ela tira do bolso um pequeno envelope. Nele, uma fina lâmina quadrada preta.

    — Aqui está, como prometi — ela diz, entregando-lhe o envelope.

    Na lâmina estavam todas as transações comercias legais e ilegais da máfia russa dos últimos dez anos.

    Como um experiente prestidigitador, ele faz o envelope sumir das mãos dela como em um passe de mágica.

    — Foi muito bom fazer negócios com você — ele diz.

    — Um presente valioso pede um presente de igual valor, Koli San.

    Ele se vai, leve e sorrateiro como uma raposa.

    Seu nome era Koli Yamashita. Uma das criaturas mais intrigantes com quem Mei Mei já havia tido contato. Tirando sua indecifrável fisionomia, Koli Yamashita não tinha rastros significativos na hypernet e nem na shadownet. As informações sobre ele eram superficiais e óbvias. Pai russo, mãe descendente de japoneses, membro do clã Soga, detetive particular, solteiro e fim. Transações bancárias, lugares que visitou, pessoas que conhecia, vídeos, fotos, nada disso se conseguia achar. De que forma ele apagava todas essas coisas do cyberespaço? Ela se perguntava. Ele era um enigma a ser decifrado, mas não naquele dia. Aquele era um dia para celebrar. Nino Lamidto, finalmente, estava em suas mãos, ou garras, e ela poderia matá-lo quando bem quisesse.

    Um magno-táxi amarelo para a sua frente e uma porta se abre.

    No banco de trás está um homem negro, de traços achinesados, cabeça cuidadosamente raspada, vestido com uma camisa branca de manga longa, calça de linho bege e alpercatas de couro.

    — Entre — diz o homem de cabeça raspada.

    Mei Mei atende o pedido sem titubear.

    O veículo parte.

    — Como está se sentindo?

    — Agora vamos falar dos meus sentimentos?

    — Como você está se sentindo, Mei Mei? — Ele usa a entonação, Não fuja da pergunta.

    — Melhor.

    — Você não vai matá-lo, vai?

    — Não.

    — Estou surpreso.

    — Eu também.

    Silêncio.

    — Perdoou aquele que quase destruiu a vida de nossa filha e disse a verdade para Gloria. Afinal, você melhorou seu carma e recobrou sua honra. Nossa filha pode ter uma vida sem a sombra da traição da mãe.

    — Você precisava se ouvir. Você soa tão convincente.

    Apesar da tentativa infantil de desqualificá-lo, ela sabia que ele tinha razão. Ela era uma das pessoas mais inteligentes do planeta, a maior hacker da shadownet, mas a culpa a consumiria e a deixaria vulnerável. A longo e médio prazo, isso afetaria sua performance em tudo.

    Do bolso da camisa, ele tira um par de óculos escuros e dá para ela.

    Assim que coloca os óculos, através das lentes, ela começa a ver números, signos e protocolos passando a uma velocidade vertiginosa.

    — Novidades? — Ele pergunta.

    — O de sempre.

    O de sempre

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