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O VOO DE VIOLET ou, KAHBIA
O VOO DE VIOLET ou, KAHBIA
O VOO DE VIOLET ou, KAHBIA
E-book630 páginas8 horas

O VOO DE VIOLET ou, KAHBIA

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Sobre este e-book

Exércitos japoneses invadiram uma Birmânia quase indefesa em 1942, obrigando dezenas de milhares de pessoas a fugirem pelas montanhas rumo à Índia. Governaram com arrogância e brutalidade os birmaneses remanescentes, gabando-se de libertarem o país do domínio britânico. O VOO DE VIOLET narra as experiências de uma jovem garota anglo birmanesa, e seus familiares, crescendo alegremente sob a administração britânica, e sua posterior provação ao tentar escapar dos japoneses.

As batalhas vencidas pelos exércitos aliados que saíram da Índia para retomar a Birmânia em 1944-45, são vistas do ponto de vista dos oficiais japoneses, que observaram seus exércitos sofrendo, por sua vez, as agonias da derrota na guerra.

As sementes do fascismo plantadas por Aung San e seu Exército de Independência da Birmânia ao se juntarem à invasão japonesa, até a decepção com os pretensos libertadores, cresceram como uma erva daninha, que envenenou a sociedade birmanesa contra anglo birmaneses e outros grupos étnicos - estrangulando sua florescência com uma ditadura de ferro.

IdiomaPortuguês
EditoraBadPress
Data de lançamento24 de dez. de 2018
ISBN9781386344025
O VOO DE VIOLET ou, KAHBIA

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    Pré-visualização do livro

    O VOO DE VIOLET ou, KAHBIA - David Richard Beasley

    O VOO DE VIOLET

    OU,

    KAHBIA

    ––––––––

    DAVID RICHARD BEASLEY

    ––––––––

    Para o Ocidente o homem é o principal elemento, o herdeiro de toda a criação, e até um Deus morreu para salvá-lo; porém, no Oriente, o homem existe no limiar da realidade e, não raro, tem que morrer para que um Deus sobreviva. Da mesma forma, o Ocidente enxerga a realidade como uma entidade imutável e individual; enquanto o Oriente a entende como um fluxo transcendental eternamente mutável.—Ba Maw

    DAVUS  PUBLISHING

    COPYRIGHT  2010, DAVID R. BEASLEY

    Para Christopher e Michael Nicholas

    ––––––––

    Biblioteca e Arquivos do Canadá, Catalogado em Publicações Beasley, David, 1931-

    O voo de Violet: ou, Kahbia / de David Beasley.

    Incluindo referências bibliográficas. ISBN 978-0-915317-25-7.

    I. Título.

    PS8553.E14V56 2010 C813'.54 C2010-900852-9

    DAVUS  PUBLISHING

    150 NORFOLK ST S., SIMCOE, ON N3Y 2W2 CANADA

    EMAIL: DAVUS@KWIC.COM TEL: 519-426-2077

    web site: www.kwic.com/davus [para pedidos]

    Glossário

    Aya cozinheira, babá

    badmash ladrão

    basha palhoça ou cabana de folhas

    Bo título militar [honorário]

    chaung fluxo fluvial

    chinthe leão mítico birmanês

    dacoit bandido

    dah faca

    dak bangalô governamental

    Daw tia [honorário]

    gharry carruagem com cavalos

    godown barracão para armazenagem

    gyi veado muntjac

    htamein sarongue usado por mulheres

    jiff Quinta Força Nipo-Indiana (Coluna)

    kahbia mestiço

    Kempetai Polícia secreta japonesa 

    Ko Sr. [companheiro; honorário]

    kukri faca curva

    longyi sarongue

    Ma Senhorita [honorário]

    matas trabalhador

    nats espíritos

    pasoe saronque usado pelos homens

    phongyi monge

    sahib mestre

    thakin mestre

    U Sr. [tio; honorário]

    wallah trabalhador, menino

    Yoma cadeia montanhosa

    PERSONAGENS PRINCIPAIS

    Família Nicholas Família Mellican

    Aloysius [pai] John [pai]

    Marie aka Ma Gwyne [mãe] Josephine [mãe] Gwen Herbie.

    Donald. Agnes M., Walter Nicholas.

    Violet. Bunny.

    Eustace. Paulette M. , Lionel Rosario

    Rita  Popie

    Buster

    Tio Joe

    Tia Mary da Costa Combatentes clandestinos

    Mumsie [filha dela] Norman, líder dos  Chins

    Tia Helen Boucher Bo Juan, Chin

    Tia Lillie Ko Danag, Anglo Birmanês

    Cel.  Claude Peixe Herring, kachin

    Amigos de Toungoo  

    Sra. Thornton

    Elvira (Mamoo) Thornton Outros

    Henry Thornton  Dr. Alces des Villiers

    Alfred Beale  Alice des Villiers

    Hillary Beale  Annette

    Johnnie Beale  Bertie

    Amy Thein  Averell Jungjee

    Tio Moses Reg Carter, Rangoon

    Senhorita Kierney, professora 

    Comissário Kim Lung, chefe shan  do tráfico de  drogas

    Bunny Blessington

    Bo Seing-gyo, Chefe Toungoo

    Japoneses

    Dr. Capitão Indimorra  

    Cap.[mais tarde Coronel] Ichikorra

    General Reyna Mutaguchi

    PREÂMBULO

    ––––––––

    General Hideki Tojo acomodou-se junto a sua escrivaninha desprovida de papéis, deixando o olhar vagar na penumbra da sala. Tojo sorriu com a ironia do colapso daquele governo pressionado pelo exército ao falhar na negociação de um tratado de paz com os americanos, sendo que o desejo secreto dos militares era a guerra. Tojo acabou beneficiado em razão de outras facções do governo, incluindo o imperador que ansiava pela paz, temerem alienar o exército, e assim, ele, um oficial de extrema direita no qual o exército confiava, tornou-se Primeiro-Ministro. Tojo, um admirador dos nazistas e seu inigualável líder Hitler, cujo estilo de bigode escovinha ele imitava, aplaudira o ataque surpresa dos alemães à União Soviética que, dessa forma, deixara de ameaçar o Japão. Em preparação para a Nova Ordem, o Japão interveio na disputa territorial entre a Indochina francesa e o Sião, manobrando em favor desse último, e com a pressão alemã sobre o governo fantoche de Vichy, a França  concordou com os termos, permitindo bases aéreas e navais japonesas na Indochina. O Sião, em troca pelo favor, aceitou uma aliança militar com o Japão. Dessa forma, a cabeça de ponte na Indochina, tão necessária para um ataque à Cingapura, Malásia, e possessões holandesas ricas em óleos e produtos brutos, estava montada, e o Japão fechou a rota de suprimentos que seguia para a China via Indochina. A rota birmanesa tinha que ser fechada se o Japão quisesse sufocar todo o auxílio ocidental aos sitiados chineses, a quem os japoneses tinham contra-atacado, rechaçando-os para as cadeias de montanhas no oeste da China. Com  a Grã-Bretanha preparando-se para a iminente invasão alemã, os britânicos nada poderiam fazer para defender suas colônias na Ásia, como a Birmânia. Os trinta camaradas birmaneses liderados por Bo Aung San, a quem os japoneses treinaram para guerrilha, tratavam de recrutar centenas de jovens para a Minami Kikan, a organizaçao de inteligência que espalhara uma rede de espionagem pelo sul da Ásia, e, formava clandestinamente um exército de independência birmanês em bases na fronteira siamesa; e estavam prontos para apoiar um ataque japonês ao país.

    Tojo disse aos americanos que o Japão preferia a paz com o Ocidente sob duas condições—se pudesse manter os territórios tomados da China, e que a Grã-Bretanha e os Estados Unidos suspendessem o embargo comercial. Mas como ficou óbvio que a aliança japonesa com a Alemanha e a Itália baseava-se no princípio de dividir os espólios, Europa para eles e Ásia para o Japão, Tojo percebeu que   os americanos estavam usando as negociações somente para ganhar tempo

    na preparação para a guerra. Se tudo corresse conforme o planejado, entretanto, o Japão destruiria a frota americana em Pearl Harbor, Havaí, de surpresa, em 7 de dezembro de 1941. Em 8 de dezembro, as tropas nipônicas em conluio com os siameses, atravessariam o Sião para invadir a Birmânia e a Malásia.

    Outra preocupação de Tojo relativa à política invadiu seus pensamentos de repente; Gekokujo, regra dos inferiores, um problema que parecia tomar de assalto a sua mente sempre àquela hora do dia. Durante a década de 30, os oficiais de baixa patente dominaram o cenário militar, desprezando os superiores, e isto trouxe graves consequências quando o exército se tornou a principal força ao se sobrepor aos diplomatas. Causava preocupação que as diversas facções, que desprezavam as ordens de Tóquio , liderassem a guerra na China e precipitassem o conflito armado na Indochina, e com sua insubordinação traíssem toda a preparação do Japão para enfrentar os americanos e dominar a Ásia. Tojo lidara com insubordinação quando ministro da guerra , mas não poderia delegar tais problemas a outro tendo em vista que ainda acumulava tal função . Se por um lado estava encorajado com a atitude beligerante dos jovens oficiais, agressividade tão desejada na força militar; por outro, necessitava de generais capazes de controlar e canalizar toda essa energia explosiva.

    Tojo repassou a lista com os nomes de seus oficiais seniores capazes

    de realizar a complicada tarefa.

    Sob a luz do abajur, apanhou um bloco de notas na gaveta, ajustou o pesado óculos, e escreveu ao tenente-general Renya Mutaguchi, indicando-o para o comando da 18ª Divisão japonesa que se preparava para invadir a Malásia em 8 de dezembro.

    Naquela tarde, Mutaguchi estava se divertindo em companhia de suas gueixas favoritas, que performavam em instrumentos musicais enquanto cantavam para ele. Quando seu criado lhe trouxe a carta, tratou de ler com interesse, e então soltou uma sonora gargalhada. Guerra finalmente! Nunca mais, desde os combates aos chineses na Manchúria, sentira-se tão feliz!  pensou. Chamou sua garota favorita e retirou-se com ela para uma grande cama por detrás de pesadas cortinas enquanto as demais gueixas continuavam com o show.

    Enquanto isso, o povo do sudeste asiático, sem suspeitar dos sinistros planos, vivia pacificamente, confiante nas gentis intenções de seus vizinhos.

    UM

    Aloysius Nicholas conferiu as mensagens telegráficas que chegavam à estação ferroviária de Toungoo. Houve um acidente perto de Mandalay no norte, mas ninguém se machucara. Alguns descarrilhamentos davam margens à suspeita de sabotagem. Aloysius percorria todas as filas para ver se as operações transcorriam dentro do que era esperado. Promovido de coletor de bilhetes a guarda e, quando transferido de Rangoon para Toungoo, a chefe de estação,  recentemente chegou a chefe de controle; impressionava os superiores com sua boa vontade e confiabilidade. Era perito em avaliar o caráter de um homem,  tratava seus subordinados com justiça e boa vontade. Quando provocado, geralmente respondia de forma calma e controlada. Um incidente o qual a família jamais esquecera teve a ver com um indiano alto e parrudo encarregado de abastecer a casa com água. Como patrão, ele poderia ter punido o encrenqueiro, ou simplesmente despedido o infeliz. Ao invés disso, desafiou-o para uma luta; atitude que revelava bem o tipo de relação que Aloysius mantinha com as pessoas. Os dois brigaram e boxearam por uns quinze minutos até que Aloysius se encheu daquilo, impôs uma chave de braço ao oponente e o fez clamar por misericórdia. O indiano não voltou a criar caso, e por fim, tornaram-se amigos.

    Certificando-se que a equipe noturna postara-se nas devidas posições, pois aquela estação era o centro nervoso do sistema e requeria muita atenção aos detalhes, ele caminhou na penumbra do anoitecer rumo a sua casa. Uma movimentação logo adiante o colocou em alerta. Conforme a figura se aproximou, ele ouviu a saudação em tom melodioso: Noite, Sr. Nicholas. Tratava-se de Mumshoe, um dos derwans ou vigias, que patrulhavam aquela área da cidade. Os derwans anunciavam cantando a hora no idioma hindi durante a noite—9 bala hay, 10 bala hay—transmitindo à comunidade uma sensação de segurança. Mumshoe acompanhara Marie Nicholas à casa dela quando, em certa noite, um birmanês tentara importuná-la. Os derwans, com a cabeleira branca escapando dos turbantes, seus rostos benevolentes e aparência enorme, tornaram-se amados pela comunidade devido à lealdade e auxílio que prestavam.

    Mumshoe, Aloysius respondeu calorosamente, vai dar uma vigiada em minha casa por uns dias? Vou me juntar à minha família em Rangoon.

    Sei disso, sahib. Sua Aya me contou. Tudo ficará bem. Algum problema? Aloysius perguntou.

    Poucos, bem poucos, Mumshoe acenou com a cabeça em direção à seção birmanesa além dos trilhos.

    Boa noite, Mumshoe.

    "Sahib."

    Aloysius valorizava a tranquilidade prazerosa de sua vida. Servos se encarregavam de tudo, cozinhar, limpar, e até levar recados. Os amigos como Bonnie Miller, um inglês com esposa birmanesa, eram solidários e confiáveis. Ele gostava de saudar os velhos amigos nas várias estações e participar de pequenos festejos nos bosques quando visitava as vilas e sentia o ânimo das pessoas. Foi invadido por uma agradável sensação de conforto ao pensar na esposa Marie. Lembrou-se da primeira vez que a viu; a bordo de um trem de conexão, quando ainda era coletor de bilhetes da estação. Tratou de se aproximar dela. Chamava-se Ma Gwynne, era esquia, linda, tinha longos cabelos negros penteados para trás e enfeitados por uma flor. Falava um inglês vacilante, mas o sorriso era encantador. Contou a ele que perdera a mãe quando ainda não passava de um bebê. A segunda esposa de seu pai  contraíra uma grave doença reumática e dependia dela para olhar as crianças; e o pai, após ter se convertido do budismo, viajava frequentemente como pregador batista. As crianças, saíram de casa ainda muito jovens, e sumiram dentro da comunidade birmanesa. Uma de suas irmãs casou-se com um local e também desapareceu num dos vilarejos próximos ao rio Irrawaddy, mas o irmão Yo Pio, alto e bonitão, que tinha lutado sob o regimento britânico na Mesopotâmia, na guerra, a visitava de vez em quando ao vir de Pyinama, onde comprara uma fazenda. Igual a todos os birmaneses, ele gostava de crianças. E os filhos de Aloysius retribuíam esse amor.

    O melhor atributo de Ma Gwyne era o senso prático, que ela punha na conta da educação recebida da escola anglo vernacular dedicada às mulheres inglesas. Treinada em enfermagem, enviaram-na ao norte de Mogul, onde os rubis eram extraídos das colinas. Uma viúva rica, temerosa de ser atacada por bandidos se a notícia se espalhasse, pedindo juras de segredo, convidou-a para apreciar um imenso rubi trancado num quarto escuro. Quando uma epidemia de febre tifoide matou os doutores e as enfermeiras mais antigas, Ma Gwyne, embora aterrorizada com a responsabilidade, cuidou dos pacientes.

    Aloysius pensou  que o bom senso dela contrabalançaria a  tendência dele à imprudência e indisciplina. E desposou Ma Gwyne em uma igreja de Rangoon. Ela aprendeu sobre a fé católica e adotou  o nome de Marie. Como a maioria dos convertidos, tornou-se uma praticante devota das regras do catolicismo. Quando vieram para a casa atual,  que estava em ruínas e tomada pelo matagal ,  eles  a consertaram durante as tardes e finais de semana. Ajeitaram o gramado e construíram uma quadra de  badminton. Marie, usando um imenso chapéu chinês de abas largas, lutou com afinco para construir um jardim de rosas, hibiscos e outras flores de cores vibrantes, enquanto  Aloysius construía um pórtico de bambu e plantava  mangueiras. Mantiveram as crianças e os patos à distância.   A ferrovia e a comunidade rural prosperavam, embora algumas questões necessitassem de cuidados, por exemplo a fábrica de concreto de Mariano,

    na qual vários amigos tiveram prejuízos, o trabalho do governo que empregava vários habitantes continuava indo bem. Seu mundo compreendia a imutável realidade da comunidade birmanesa percorrida pelos trilhos da estrada de ferro. Mas, então, o universo daquele país começou a mudar gradualmente sob a influência dos estrangeiros. Bastava apenas olhar pela janela dos fundos de seu escritório para ver as torres da imponente fortaleza birmanesa cercada por um fosso; verdadeira testemunha de uma era bem diferente.

    Aloysius gostava de visitar Rangoon, pois assim podia ouvir o ponto de vista de seus irmãos sobre os rumores da guerra. Vasculhava a Rangoon Gazeta todas as manhãs em busca de notícias sobre os exércitos japoneses. Desde os anos de lutas nas selvas da China e Coreia, os japoneses pareciam possuir uma formidável força militar. O lema de Ásia para os asiáticos pode ter impressionado alguns birmaneses, mas ele esperava que a maioria fosse esperta o bastante para não acreditar nessa tolice.

    Orava para que a sua comunidade permanecesse livre da guerra e os regimentos de indianos, birmaneses, e gurkhas nepalenses, comandados pelos indomáveis ingleses, imbatíveis. Sentia-se tolo por sequer desconfiar que os britânicos não dessem conta de defender o país; embora fosse mesmo melhor contar com a ajuda de Deus.

    Bem cedo na ensolarada manhã seguinte, a Aya serviu o desjejum na varanda. Ele leu a Gazeta enquanto comia ovos cozidos. Uma sensação de horror pelas atrocidades japonesas contra os civis chineses tomou-lhe de assalto. Bonnie Miller chamou-lhe da calçada em frente. Aloysius acenou para o amigo enquanto engolia mais um pedaço do ovo apetitoso. Miller, homem de meia altura, silhueta atlética, falou num tom de voz educado.

    Quais as novidades, Nick?

    Deseja alguma coisa de Rangoon?

    Uma nova bola de futebol, Nick. Vamos jogar domingo que vem e acho que a antiga não vai aguentar o tranco.

    Aloysius sorriu.

    Miller acenou, e sorrindo continuou seu caminho rumo ao trabalho no prédio da administração civil.

    Aloysius olhou para o relógio de pulso. Ainda tinha quinze minutos. Viu a senhora Thornton abrir as portas da casa do outro lado da rua para um monge trajado com manto açafrão, e entrar de novo em busca de algum trocado. O monge, de cabeça raspada fez menção de subir na varanda, mas rapidamente retornou sobre os próprios passos. Alguns ladrões se passavam por monges para espiar dentro das casas, observar algo de valor e depois voltar para furtar.

    A sra, Thornton, ou Karen, a alta, era a melhor amiga de Marie. Seu marido, um branquelo, de maneiras discretas até a ocasião em que participaram dos exercícios militares anuais, quando então conheceram-se melhor e se aproximaram. As crianças dos Thorntons eram amigas dos filhos dele. Aloysius admirava Elvira Thornton, apelidada de Mahmoo, uma linda jovem.

    Ela fazia par com o jovem encarregado do centro de danças e recreação. Mahmoo contou a sua filha, Violet, que um rapaz bonito disse enquanto dançavam Olhe bem, olhe nos meus olhos. Violet considerou que foram as palavras mais românticas que ela já escutara. Quando Violet segredou a Aloysius que desejava se tornar popular, ele respondeu, Se quer ser popular, seja popular. Daí em diante, a garota, embora sempre com ares românticos, realmente tornou-se popular.

    Todos eles brincavam ao anoitecer sob a lua e as estrelas. As crianças marcavam com giz as fronteiras, e a linha tinha que ser ultrapassada, e, conforme brincavam, suas risadas atraiam os adultos e logo, logo, toda a vizinhança estava envolvida na diversão. O mesmo acontecia com a quadra de badminton. Os vizinhos se revezavam na quadra durante os finais de semana, e, algumas vezes, promoviam torneios.

    Quando o sr. Thornton morreu, Aloysius organizou o funeral com honras militares, pelo qual angariou a eterna gratidão da viúva.

    Privilegiado pelos britânicos, que confiavam neles para tocarem o país, a classe anglo birmanesa preservava suas crianças da discriminação dos brancos europeus, que os faziam se envergonhar das raízes locais.  Tinham a aparência de nativos, exceto quando os genes europeus predominavam, e, como birmaneses, eram reticentes, aceitando tudo como inevitável e demonstravam poucas emoções. Por outro lado, os birmaneses rotulavam as pessoas mestiças de Kahbia, termo que se tornava cada vez desdenhoso à medida que a autoridade desses kahbia aumentava, e diziam que o lado anglo não passava de uma farsa e os nomes tinham sido roubados de cemitérios. Em sua defesa, os anglo birmaneses e anglo hindus festejavam entre si, entoando canções inglesas, contando histórias divertidas e imitando os sotaques indianos em meio às muitas gargalhadas. Apesar de serem barrados em certos clubes e eventos reservados aos europeus, mantinham-se satisfeitos em razão dos ingleses assegurarem a paz e prosperidade ao país por meio da exportação de chá, madeira, arroz e petróleo. O ressentimento dos birmaneses contra os indianos, que os britânicos importavam como coolies, para trabalhos venais que os nativos do país recusavam-se a fazer, também influenciavam suas atitudes. Suas crianças ignoravam os indianos que os serviam—os pani wallahs, hindis para os meninos, que traziam a água em latas de querosene e enchiam as caixas d'água da família, os matas, trabalhadores que limpavam os banheiros e retiravam o lixo, os riquixás wallah, a quem as crianças demandavam que corressem sem demora quando eram transportadas para a escola, pouco se importando se aqueles homens tinham que correr o dia inteiro em troca de uma miséria, a indiana Aya ou doméstica, que morava num cômodo godown atrás da casa e era devotada integralmente à família. Atrás do godown viviam os indianos chamados intocáveis, em  barracões, locais jamais visitado pelos pequenos,

    mas nas noites quentes de verão, todos ouviam os cânticos e sons sincopados dos tambores e instrumentos musicais vindos de lá. Os Chettiar, agiotas do sul da Índia, aos poucos foram se apossando das ricas terras agrícolas e as exploravam usando a mão de obra indiana barata e importada, fato este que frustrara os aldeões birmaneses. Temendo que seu país fosse dominado pelos estrangeiros, incitaram conflitos raciais que tinham que ser controlados pelos britânicos. Além do mais, noventa por cento da polícia e da força militar era composta por indianos, que serviam aos ingleses e pouco se importavam com os birmaneses. O mundo birmanês com seus templos e escolas budistas, seus labirintos multicoloridos e indústrias, mal tocavam suas consciências; não passavam de uma sombra, um espectro da realidade ao redor. Apesar dos nativos serem um povo feliz, que vivia bem e gostava de apanhar frutas das árvores que abundavam em sua terra fértil, um lugar onde dificilmente encontrariam famintos e necessitados, Aloysius temia que o orgulho, o senso de superioridade e o temperamento explosivo pudessem entrar em erupção feito um vulcão.

    Existiam outras etnias, tais como os chineses, ricos mercadores de  pedras preciosas, e os japoneses, que trabalhavam como fotógrafos e dentistas, além dos altos Pathans de olhos azuis e turbantes coloridos que vinham do norte em determinadas épocas do ano, e cujos passos largos impressionavam as crianças que relatavam aos pais como se tivessem acompanhado à distância verdadeiros gigantes míticos.

    Embora fosse tarefa de Aya se aventurar pela ponte da ferrovia até a seção birmanesa para efetuar compras e dar conta à patroa do que tinha gasto, ocasionalmente a própria Marie levava suas crianças ao mercado com a intenção de familiarizá-las com aquele ambiente. Em frente de barracões baixos ficavam sentados os gordos indianos baboos, pernas cruzadas, as imensas barrigas caindo sobre os joelhos, as cabeças balançando enquanto os braços acenavam freneticamente para negociarem de tudo, desde roupas até bugigangas, com birmaneses e europeus. Então vinham as longas tendas onde birmaneses vestidos em coloridos longyis e largos chapéus vendiam frutas, vegetais, galinhas vivas e doces que as crianças adoravam.

    Um condutor de tuctuc cantava a plenos pulmões tuc-tuc, tão alto que machucava os ouvidos dos transeuntes. Lagartos lembravam crocodilos em miniaturas, eram pendurados na véspera e muito conhecidos por, de vez em quando, caírem dentro dos vestidos de costas nuas de algumas mulheres visitantes. Serviam para manter a população de insetos sob controle, assim como os mosquiteiros pendurados nas paredes perto dos tetos, desagradáveis, mas sem nenhum barulho. Perigosas eram as serpentes venenosas que apareciam nas estradas e escapavam para as calçadas durante as chuvas, além dos mosquitos de malária ; mas as crianças eram orientadas a evitar répteis e a se cobrir com as redes durante a noite.

    Consultando seu relógio, Aloysius pulou de sua cadeira, e meio que andou, meio que correu até a estação. Chegou no momento em que o trem encostava e, minutos antes da partida, encontrou um assento.

    Um jovem birmanês também sentou no mesmo compartimento, pegou um livro da sacola e começou a ler. Nem sequer olhou para Aloysius. Trajava um colete birmanês e calças de um azul brilhante ao invés do longyi. Seu rosto moreno parecia fundido em bronze como se fosse incapaz de alterar a expressão carrancuda. Poderia tratar-se de um thakin, Aloysius pensou, um daqueles militantes que desejavam banir as regras britânicas e pedir auxílio dos japoneses. O termo Thakin significava, em parte, mestre, que parecia-lhe meio irônico para alguém que se intitulava defensor da liberdade. Na parada seguinte, outro jovem nativo trajado da mesma maneira e também de olhar severo entrou no compartimento, sentando-se ao lado do primeiro. Os dois conversavam quase cochichando e o barulho do trem tornava as palavras indistinguíveis. Crescido na Birmânia, Aloysius não considerou aquela atitude como algo hostil. Os birmaneses costumavam ser amigáveis e comunicativos. Recentemente, no entanto, notou que jovens rapazes passaram a agiar como se fossem conspiradores. Em algumas estações de trem surgiram cartazes grosseiros clamando à população a se rebelar contra os opressores colonialistas.

    Os britânicos subjugaram um movimento pela independência em 1939. As pregações de Mahatma Ghandi na Índia inflamaram os clamores pelo direito de se autogovernar. Os jovens deram início às reuniões pela independência. Com a repressão a tais encontros e a proibição à imprensa nacionalista, o movimento cresceu na clandestinidade. Aloysius presenciara pouco disso, mas lia sobre o assunto e sentia que a população era simpática à causa. Também nutria certo apreço pelo movimento. Gostaria de ver os birmaneses encarregados da condução do próprio país, embora temesse as diferenças raciais, a quebra da ordem, e o caos que poderia advir. As regras britânicas não eram opressivas, apesar da humilhação que representavam. À medida que olhava para os sérios jovens birmaneses, considerou o grau de humilhação que poderiam infligir caso tomassem o poder.

    Mais tarde naquele dia, quando o trem fez uma parada, os jovens levantaram-se para desembargar e, antes de descerem para a plataforma, lançaram olhares raivosos para Aloysius.

    Boa tarde, jovens cavalheiros Aloysius sorriu. Aproveitem o dia

    A dupla o ignorou, e dirigiu-se rumo à saída.

    Alguns amigos relataram que tais incidentes estavam se tornando mais numerosos. Sua classe, cativa entre governados e governantes, sofreria muito com a revolução, porque, ao contrário dos europeus e indianos, não tinha para aonde ir. A Birmânia era a sua pátria. Ele tinha viajado para cada canto dela. A conhecia como a palma de sua mão.

    Esses jovens thakins não tinham ideia do tumulto e, eventualmente, dos desastres que causariam. Tolos!, pensou. Os britânicos precisavam permanecer fortes.

    Antes do anoitecer, Aloysius comprou algumas bonecas e guloseimas na parada da estação povoada de vendedores que apregoavam as comidas em largas bandejas junto às janelas. Observou os condutores fechando as janelas com pesadas venezianas de madeira para prevenir o assédio violento dos bandidos dacoits. Ficava sempre preocupado ao enviar a família antes dele na jornada de quase 500 quilômetros até  Rangoon, repleta de dacoits, mas Marie sabia lidar com as situações perigosas, e Violet tinha presença de espírito. Violet tinha uma estrutura corporal um tanto bruta, pobre menina, e pouco da beleza da mãe, mas era sua personalidade vibrante que a distinguia. Ele conseguia reconhecer as qualidades de cada um de seus filhos. Gwen, quatro anos mais velha que Violet, era confiável, mas tão brincalhona que repetiu de ano na escola e foi alcançada pela caçula. Violet contou a ele que um professor reprovara a irmã por ela ser uma aluna fraca quando ingressou numa nova turma.

    Esses Nicholas!—falou um colega de classe, Violet é sempre a líder da turma., quando a menina passou em primeiro lugar nos testes, angariando o respeito do professor. Aloysius admirava o filho Donald—bonito, atlético e preparando-se para entrar na Universidade de Rangoon—por seu espírito competitivo, embora soubesse que Violet o considerava um tanto temperamental, imprevisível e exibido na frente das garotas. Eustace, de aparência mais simples e bem centrado, parecia destinado a ter baixa estatura. Rita, sendo a mais nova, demandava atenção, uma disposição que ele temia merecer maior acompanhamento.

    Antes de adormecer, imaginou a chegada matinal na frenética imensa cidade repleta de carros, trens, riquixás, carruagens a cavalo, e bicicletas que teria de enfrentar até achar o caminho para o apartamento da irmã Mary e, finalmente se jogar nos braços da esposa e dos filhos.

    DOIS

    Em vez de despertar com o som suave das mulheres birmanesas passando ao longo das ruas, as graciosas formas levando cestos de comi-bahns, bolos de arroz com coco e outras delicias para o desjejum, no lugar dos aromas das imensas palmeiras e dos grandes rododendros e cornucópia de flores de jardim, Violet Nicholas ouviu o barulho do trafego pesado através da janela aberta. Ela não estava em Toungoo, no planalto central, e sim na agitada  Rangoon, onde conjuntos de prédios de apartamentos margeavam amplas avenidas, ao lado de casas no estilo vitoriano e as birmanesas dois andares

    com varandas e paredes devassadas aos elementos da natureza, os pagodes com cúpulas douradas e templos que remetiam a um glorioso passado. Afastando a rede de proteção contra os mosquitos, ela saltou para o chão e avistou seu faceiro e largo rosto bronze no espelho. Lembrou-se de ter suportado a paixão birmanesa pela limpeza quando criança, aguentando o pai dar-lhe banho sob a ducha fria e a mãe, a disciplinadora, esperando para enxugá-la e vestir-lhe as roupas. Aqui um banheiro com água corrente substituía a ducha exterior.

    Viajara com os pais pois a escola ficava fechada durante o calor de abril até maio, quando vinham as monções. A família estava com a irmã mais nova de Aloysius, tia Mary. Desde que todos tomaram consciência da cor da pele, Mary,  a mais branca e bonita, tornara-se também a mais autoconfiante. Ela adorava festas ao ar livre, tentava ir a todos os eventos e, aos sábados, não perdia as corridas de cavalos. Seu marido português, um funcionário público, morrera. Ficou um tempo de luto pelo marido.

    As irmãs de Aloysius, Lillie e Helen, que ajudavam a hospedar os parentes para a reunião em Rangoon, dependiam do irmão. Helen era casada com um francês açougueiro que a espancava; quando Aloysius soube do fato, foi até a casa dela, pegou o patife de surpresa e aplicou-lhe uma boa sova.

    Violet estava triste com o não comparecimento de tia Josephine, a irmã mais velha de seu pai. O marido ruivo dela, tio John Mellican, não suportava viagens. Moravam em Moulmein perto da foz do poderoso rio Salween, leste de Rangoon, onde o bisavô branco de Violet estabelecera-se, casara-se com uma moça indiana e administrava uma plantação para extração de borracha. De pequena vila de pescadores, Moulmein tornou-se um grande porto, com arrozais, serrarias e madeireiras, além de seringais em meio a mata densa que se estendia até uma baixa cadeia de colinas a sudeste. A leste podia-se avistar as grossas escarpas cobertas com a vegetação da cadeia montanhosa Dawna, com quase dois mil metros na divisa entre a Birmânia e o Sião. Quando pequena, Violet foi persuadida pelo pai a usar a palavra panorâmica, dessa forma, ao entrar na varanda da casa do tio John, poderia olhar o mar e exclamar Que linda vista panorâmica!, exibindo toda a sua inteligência. E ela fez isso obedientemente, enchendo o pai de orgulho.

    As crianças dos Mellicans eram rebeldes ao extremo. Tio John exigia obediência absoluta e ditava regras bem rígidas, chegando ao extremo de obrigar a esposa a usar mangas longas mesmo durante o verão abrasador. Nas vezes em que a agredia verbalmente, os filhos se voltavam contra o pai. O mais velho, Herbie, desafiava-o para uma briga, que a mãe tratava logo de neutralizar. Previsivelmente, quanto mais rígido John se tornava, mais rebeldes ficavam os filhos.

    Herbie passava as noites fora de casa, vagando pela mata ou caçando mulheres, e até mesmo roubando residências. O segundo filho, Bunny, assim como Herbie, era perito em seduzir as garotas. O outro, Popie, escrevia poesias e pintava. Ele se embrenhava na cultura birmanesa com o mesmo entusiasmo que os demais admiravam o modo de vida europeu. A irmã, Paulette, gostava de usar a beleza para seduzir os homens. Quando seu charme falhava para obter os resultados desejados, culpava as vítimas masculinas. Por exemplo, Paulette queria se casar com o primo alto e bonitão, filho da tia Kathleen Le Cerf, que vivia em Maymyo, a capital de verão e das brisas refrescantes nas montanhas ao norte de Rangoon, mas o rapaz, pessoa sensível, rejeitou-a e casou-se com outra prima, de aparência simplória, parcialmente cega e com problemas nas articulações, que não conseguia nem cuidar de si própria. Bestificada com tal atitude, acabou se casando com Lionel Rosário, um luso birmanês de pele escura.

    De manhã, Walter Nicholas, o genial primo mais velho, ofereceu-se para preparar o café. Os adultos sentaram-se na sala de estar cujas portas abriam-se para uma varanda com vista para a rua arborizada, e aproveitavam a brisa do mar logo adiante. Violet vagava por entre eles prestando atenção nas conversas. Havia uma guerra na Europa, recém-iniciada pela Alemanha. Um dos tios falou que isso criaria dificuldades para a Grã-Bretanha em virtude dos alemães estarem dominando todo o continente; sem falar nos armamentos superiores e poderosos aviões. Tudo soava distante e provavelmente não afetaria a Birmânia. Tio Joe alertou que alguns birmaneses foram ao japão receber treinamento em guerra na selva. Tio Joe, casado com uma birmanesa e pai de Walter, tocava uma plantação para extração de borracha em Mergui, bem ao sul de Rangoon.

    Sim, Walter interpôs, eles querem chutar os ingleses para fora daqui. Acredito que tenham mais simpatizantes no país do que nós supúnhamos.

    Teremos que esperar Aloysius chegar aqui para saber o quê realmente está acontecendo, Tia Mary disse, bebericando o gim com suco de laranja. O pessoal da ferrovia costuma dar notícias quentes para ele.

    Houve um acesso de riso entre os tios e tias presentes e isso

    chamou a sua atenção. Todos se aproximaram para escutar qual a graça. Violet se perguntava por que alguém queria chutar os britânicos. Os soldados britânicos que ela vira nas ruas pareciam tão garbosos e distintos como se fossem donos do mundo, e superiores às demais raças, que chutá-los para outro lugar soava impensável. Seus professores ingleses demonstravam tal confiança e sabedoria que ela ansiava imitá-los, mas sentia-se incapaz de fazê-lo. Pareciam manter-se à parte do país, mais do que os italianos, anglo hindus e dos demais professores mestiços. Lembrava-se vividamente de sua primeira diretora escolar, Miss Selby,

    uma mulher de bochechas rosadas e cabelos grisalhos num coque, como se ali, diante dela, aquela senhora estivesse.

    Ao mudar-se de Rangoon para Toungoo, sua mãe enviou ela e os dois irmãos mais velhos para a escola protestante de Miss Selby, que tinha a boa reputação de possuir professores competentes. Miss Selby alertava os estudantes contra a compra de doces dos vendedores birmaneses, que circulavam por perto da instituição. Doenças como o tifo e o cólera poderiam ser contraídas e contaminar toda a escola. Donald encontrou alguns annas e Miss Selby, da janela de seu apartamento, o flagrou comprando doces. Ela pediu a um professor que mandasse os três ao gabinete da diretoria. Gwen, Donald e Violet, idades entre 8 e 4 anos, parados diante da mesa e encarando os longos chicotes pendurados na parede. Violet, que mal conseguia enxergar por cima do móvel, estava paralisada com o tamanho dos açoites. Conforme aguardavam a chegada de Miss Selby, seus olhos se arregalavam pensando na dor que aquilo poderia infligir.

    A porta foi aberta e a diretora entrou; no rosto a mulher trazia uma terrível carranca. Crianças, o que eu disse sobre comprar doces desses vendedores?

    Donald conseguiu pronunciar, Para não comprar.

    Vendo as feições aterrorizadas de Violet, Miss Selby de repente se condoeu e, abaixando-se, abraçou a menina. Não houve punição.

    Os padres católicos exigiram que a família transferisse as crianças para a escola católica romana, que, embora mais distante, também gozava de boa reputação. Alguns anos mais tarde, Violet ouviu que os dacoits tinham assassinado Miss Selby na cama em que dormia.

    Mais primos chegaram na casa de tia Mary. E quando a multidão de familiares começou a ficar barulhenta, as crianças menores foram brincar num cômodo separado. Tia Mary tilintou o garfo contra uma taça de vidro. Todos pararam de conversar.

    Bem, ela começou modestamente diante dos olhares curiosos, Tenho um importante anúncio a fazer. E prefiro dizer a todos vocês juntos, porque se eu contar somente a uma pessoa, talvez os demais sintam-se desprezados ao ficarem sabendo do fato por algum boato.

    Houve um silêncio total, e então tio Joe falou, Você está grávida!

    Tia Mary franziu a cara para ele e todos riram, inclusive as crianças, que riam imitando os adultos.

    Eu assumi um compromisso de casamento, tia Mary anunciou orgulhosamente.

    Todas as irmãs correram para abraçá-la. Quem é ele? exigiram saber. Quem é o noivo?

    Tia Mary ergueu os braços pedindo que parassem com o burburinho. Vocês não o conhecem. Ele vive perto de Calcutá.

    Calcutá! tio Joe espantou-se. Você não tem viajado escondida para a Índia, ou tem?

    Ele tem vindo aqui, ela respondeu. Me encontrar. Eu não fui ao encontro dele. E qual o nome do homem? Walter quis saber.

    Dick da Costa. Ele trabalha para a Companhia Britânica de Difusão. Os presentes imediatamente souberam que se tratava de um anglo hindu, mas com raízes portuguesas.

    Isso é maravilhoso! tio Joe proclamou. Ergam suas taças bem alto, pessoal. Brindo à Mary, nossa jovem e bela irmã, cujo charme enfeitiçou outro homem para prendê-lo nas garras do casamento.

    Após brindarem, as mulheres quiseram saber quando o casório aconteceria, qual a aparência do noivo; enquanto os homens se reuniram num dos cantos da sala e retomaram o assunto do movimento da independência do país e da Índia, que eles achavam um simples aborrecimento, mas não uma ameaça. As crianças foram procurar algo com o que se divertir.

    A filha de Mary, Mumsy, foi ter com Violet, que, entretida, observava a rua abaixo.

    Estou contente por mamãe se casar, Mumsy declarou, assim ela terá com o que se ocupar além de mim.

    Mumsy era alta, seios grandes, uma adolescente sexy, que gostava dos homens e, de quem os homens gostavam. Mary esforçou-se por discipliná-la, mas seus esforços mostraram-se contraproducentes, como a própria Mary repetia ao se queixar às irmãs.

    Você sabe que mamãe vai pedir aos seus pais que me hospedem enquanto ela estiver na Índia, Mumsy continuou. Espero que a vida em Toungoo não seja um tédio.

    Existem bailes no Clube Ferroviário, Violet disse, animada. Eles são bem divertidos. Ela jamais tinha dançado lá, mas assistira os outros se divertindo e, enquanto escutava de longe as músicas, frequentemente sonhava em dançar com algum rapaz bonito.

    Achei todos esses primos tão chatos, não acha? Mumsy suspirou. Eu queria é que saíssemos daqui. Ela olhou em torno da sala.

    Os primos mais velhos, aqueles na casa dos vinte, pareciam interessados em festejar e ficar a par dos mexericos. Adolescentes como Mumsy eram inquietos. Queriam sair por conta própria; porém, sem um motivo muito forte e a permissão de um adulto, isso não era permitido. Além do mais, a seletividade em relação a quem poderia fazer parte de seus grupos de amigos era algo bem característico. Mumsy se dava bem com Violet, mesmo a menina sendo alguns anos mais jovem, gostava dela, pois a prima era circunspecta. Mumsy não fazia questão da companhia dos primos homens, como Donald, pois viviam se metendo em seu caminho. Ela tolerava a divertida Gwen, mas evitava os primos mais novos; os que tinham menos de doze anos. Violet, ela murmurou, "peça a sua mãe

    para nos levar ao mercado. É excitante ver tudo que acontece lá ao anoitecer."

    Violet sorriu com a ousada estratégia da prima para conseguir ir à rua. Crianças birmanesas eram obedientes e bem-comportadas. Seus pais davam as instruções e eram obedecidos prontamente. O espírito de independência de Mumsy inicialmente surpreendeu Violet, depois se transformou em admiração. Violet viu a mãe fumando um charuto, o que acabava por lhe conferir uma aparência birmanesa em meio ao grupo de anglo birmaneses. Os anglos apreciavam tê-la junto deles, pois aquela presença acabava fortalecendo seus laços com o país. Talvez não fosse um sentimento consciente, mas de forma subconsciente admiravam a confiabilidade e integridade de Maria Nicholas e Aloysius, o casal necessário para contrabalançar suas instáveis e, algumas vezes, fragmentadas existências. Violet foi até a mãe e tocou-lhe no braço.

    Marie Nicholas ouviu e consentiu com a cabeça. Eu levo vocês. Já está tarde, temos que ir. Precisamos nos alimentar, criança.

    Violet falou à Mumsy que deveriam esperar um pouco antes de saírem. Mumsy fez careta, mas, feliz por poder sair um pouco, foi até  o quarto vestir roupas mais apropriadas. Violet sentiu a mão de Walter sobre a sua cabeça. Então, caipirinha, quais os plano? Walter apelidara todas as crianças Nicholas de caipirinhas, tratando-as dessa forma sempre que visitava Toungoo.

    O que você manda? ele continuou. Não me esconda nada, certo?

    Vamos ver os barquinhos sampans, as quinquilharias antigas e todas as coisas no mercado, Violet contou animada.

    Vou com vocês, Walter declarou solenemente. Mal posso esperar!

    Walter sabia ser o sobrinho favorito de Marie Nicholas, e, por isso, ela era a sua tia preferida. Graduado na Universidade de Rangoon e sendo um executivo na Companhia de Petróleo da Birmânia, era o mais bem instruído, o mais educado, o menos crítico e mais espirituoso entre todos os jovens da família. Uma hora depois estava ciceroneando Marie Nicholas, as crianças dela, exceto Donald e os mais jovens, rumo a uma charrete gharry. Ajudou Mumsy a entrar na carruagem como se ela fosse a mais gentil donzela, o que funcionou como uma compensação por ela ter que aturar tantos primos. As razões para ele querer sair do apartamento iam bem além de apenas ver o movimento no mercado. Sua esposa Agnes começara uma discussão com a irmã Paulette enquanto se arrumavam para os eventos noturnos. Walter tinha pressentido que a querela iria ter início. Conquanto amasse Agnes, a filha mais velha de tio John, por sua tendência dramática e sagacidade, não gostava de discordar dela.

    Agnes agia como se fosse uma estrela de Hollywood. O irmão dela, Albert, apelido Bunny por se assemelhar a um coelho quando criança, tornara-se amigo de Walter mesmo tendo vários anos a menos. Os dois compunham canções e divertiam os parentes com

    danças e piadas que sempre rendiam algumas moedas. Conforme cresciam naquela camaradagem, suas anedotas e imitações de indianos cantando canções inglesas continuaram a ser demandadas pelos familiares, e, sorrindo com prazer, davam os braços e performavam para manter a audiência às gargalhadas. A noite mostrava-se amena. Todos desceram da gharry perto das docas e caminharam entre vendedores que apregoavam mercadorias, alguns indianos, alguns birmaneses, algumas outras nacionalidades asiáticas, todos de bom humor como se os negócios fossem um jogo e os clientes dele participassem. Marie Nicholas parava para falar em birmanês com os comerciantes e, algumas vezes, comprar vegetais e frutas que então passava para Walter  carregar. Em outras barracas, falou em hindi com um gordo mercador indiano. Walter e os outros ficavam escutando e, vez por outra, adicionavam algumas palavras, embora tivessem pouco conhecimento de ambas as linguagens. A dificuldade de Violet para aprender o birmanês tinha atrapalhado sua vida na escola. Sua principal rival, Amy Thein, uma anglo birmanesa, cujo pai era siamês, sabia muito o idioma birmanês e suas notas elevadas ajudaram a superar Violet como melhor da turma, algumas vezes. Aloysius contratou um tutor para treinar a filha no idioma, mas o acadêmico magérrimo, polido; com os dedos cheios de anéis cravejados de pedras preciosas, anunciou que tal tarefa era perda de tempo. Violet gostava e respeitava o homem, mas tinha uma inabilidade natural para aprender a linguagem.

    Quando chegaram nas docas, o turbulento panorama de navios e barquinhos trazendo peixes para o mercado, os grandes balaios em plataformas de madeira, os pescadores birmaneses e suas esposas em coloridos vestidos, indianos e chineses negociando badulaques em meio ao tráfego de barcos nas docas, o cheiro

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