Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Garimpando pistas para desmontar racismos e potencializar movimentos instituintes na escola
Garimpando pistas para desmontar racismos e potencializar movimentos instituintes na escola
Garimpando pistas para desmontar racismos e potencializar movimentos instituintes na escola
E-book449 páginas6 horas

Garimpando pistas para desmontar racismos e potencializar movimentos instituintes na escola

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

No ano de 2004 defendi, na Universidade Federal Fluminense, a tese de doutoramento intitulada Racismo e Movimentos Instituintes na Escola, sob orientação da professora Célia Linhares.
Lembro bem que na altura, no Programa de Pós-Graduação em Educação daquela universidade, pouquíssimos pesquisadores se debruçavam sobre a temática das relações raciais na escola e que a professora Célia abraçou comigo este tema, mesmo não trabalhando diretamente com ele. Porém, por suas preocupações teóricas voltadas à questão das memórias daqueles que foram dados como vencidos pela História, na mesma linha de Walter Benjamin, a professora sentiu-se à vontade para me ajudar a percorrer as trilhas de uma discussão sobre o racismo e seus processos sutis de reprodução e de superação na escola.
Recordo-me também, especialmente, dos comentários tecidos pelo colega Luis Fernando Sangenis, no dia da minha defesa quando ele lembrou muito bem as estreitas ligações entre o tema em foco e a minha história de vida, cujos fragmentos ele havia tido oportunidade de conhecer durante nossa trajetória no doutorado.
Ressalto que, embora aparentemente datado, este trabalho apresenta uma atualidade desconcertante evidenciada ainda hoje pelos resultados recentes de nossas pesquisas que indicam a sobrevida de processos sutis de manutenção do racismo na escola, quase sempre encobertos pelo manto da cordialidade, e o que é pior, sob o discurso de cumprimento da Lei 10639 que torna obrigatória a inclusão de estudos sobre a história e cultura da África e dos africanos no Brasil nos estabelecimentos escolares.
Assim como há dez anos, uma das formas de enfrentamento do racismo na escola articula-se diretamente ao mergulho nas memórias e as narrações que as organizam, o que implica dizer que deve passar necessariamente pela compreensão dos afetos e das emoções quase sempre de negações das diferenças que ainda pulsam dentro delas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jan. de 2015
ISBN9788581925363
Garimpando pistas para desmontar racismos e potencializar movimentos instituintes na escola

Relacionado a Garimpando pistas para desmontar racismos e potencializar movimentos instituintes na escola

Ebooks relacionados

Métodos e Materiais de Ensino para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Garimpando pistas para desmontar racismos e potencializar movimentos instituintes na escola

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Garimpando pistas para desmontar racismos e potencializar movimentos instituintes na escola - EUGENIA DA LUZ SILVA FOSTER

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição – Copyright© 2015 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO – POLÍTICAS E DEBATES

    AGRADECIMENTOS

    Como De Certeau¹, estou plenamente convencida da dimensão coletiva de um trabalho desta natureza. Durante a elaboração desta obra, fui contraindo algumas dívidas. O meu agradecimento, portanto, endereça-se a todos as pessoas que contribuíram, de alguma maneira à concretização deste trabalho.

    Agradeço, portanto a este coletivo tão múltiplo e anônimo que constitui os povos negros no mundo. Devo muito, portanto, a todos os negros que foram covardemente escravizados, humilhados e destituídos de sua humanidade, mas que resistiram bravamente com a força do derramamento do seu sangue, e vários outros processos de resistência à dominação. A todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, ainda hoje enfrentam inúmeras barreiras, outro tipo de dominação, mas continuam lutando contra a desesperança, contra a falta de perspectivas e contra o niilismo².

    A todos aqueles cujas únicas armas foram as canções insolentes³ não plenamente compreendidas pelo colonizador português, mas que traduziam os sentimentos da população, na rejeição à imposição da cultura, da língua e da presença portuguesa nas ilhas de Cabo Verde.

    Às outras lutas, tanto cotidianas, como no plano da teoria e das narrativas, nem sempre reconhecidas, que vêm, sistematicamente, corroendo uma estrutura opressiva. Lutas que tentam resgatar a memória silenciada dos negros deste país, na reconstrução de histórias negadas e silenciadas, na ultrapassagem das inúmeras barreiras que lhes são impostas cotidianamente, e que limitam sobremaneira a sua ascensão social e a sua busca de concretização da igualdade de direitos.

    Representando a todos eles e como uma expressão da luta em busca de superação das inúmeras barreiras sutis e explícitas pela quais o negro passa durante toda a sua vida, e como resultado da força da vida em cima da morte, é que trago aqui o meu agradecimento muito especial ao meu marido Edward Foster que continua lutando com orgulho e dignidade contra todos os mecanismos sutis de discriminação racial vivenciados no seu ambiente de trabalho. Ao meu filho Marvin Foster, que, já na sua infância e ainda sem compreender bem, muitas vezes se deparava com as mesmas barreiras. Agradeço aos dois também pelo apoio emocional e afetivo e pelo sacrifício realizado ao suportar minhas longas e intermináveis ausências.

    Reservo um lugar especial à minha professora e orientadora Célia Linhares pela confiança depositada em mim, pelo apoio e estímulo constantes, no sentido de vencer as barreiras comuns neste tipo de empreendimento e, sobretudo, por me ajudar a reencontrar minha africanidade. Devo a ela, também, a ideia de trabalhar a questão racial numa perspectiva amorosa. Sem a sua orientação, certamente, este trabalho não apresentaria o mesmo nível de sensibilidade e eu não estaria tão visceralmente ligada a ele.

    A minha dívida permanente com todos os colegas do doutorado e do Aleph (Programa de pesquisa em formação dos profissionais da educação – ensino e extensão), mais particularmente os colegas que me acompanharam nessa travessia, desde o ano de 2000, quando entrei no doutorado.

    Um agradecimento muito especial também se endereça a Rose Clair Matela pelas trocas muito proveitosas, pela paciência em ler e comentar parte dos originais desta tese, e, sobretudo, pelo carinho e atenção, sempre muito estimulantes.

    Ao colega Luiz Fernando Conde Sangenis, pela disposição em ajudar, sempre que necessário, pelo carinho, pela paciência, pela disposição constante em ler os originais, pela troca frutífera de opiniões e pelas sugestões, sempre muito pertinentes, e muito bem apreciadas.

    Agradeço também a José Américo Lacerda pela gentileza em ler um capítulo deste e pelas sugestões muito pertinentes.

    Não poderia esquecer a importante contribuição das/os professoras/es entrevistadas/ os, no Brasil e em Portugal, que, com suas narrações, compartilharam comigo alguns aspectos de sua trajetória de vida, familiar e escolar, as dúvidas, as inseguranças sobre o tratamento à questão racial, suas impressões sobre escola e questões que, entrelaçadas a outras, dão o tom a este trabalho.

    À Associação Cabo-Verdiana de Lisboa por disponibilizar o material para meu estudo.

    À professora Margarida Pina por ter sido tão atenciosa comigo durante o período em que estive realizando a pesquisa nas escolas da Damaia.

    Finalmente à Universidade Federal do Amapá, através do Curso de Pedagogia que possibilitou a minha dedicação integral à pesquisa e à elaboração deste trabalho.

    Por último, à memória da minha avó Nha Rosinha por ter identificado em mim, desde a mais tenra idade, características daquilo do que ela entendia por ser professora; agradeço aos meus irmãos que desde cedo tiveram que encarar a dureza de uma vida repleta de dificuldades para sobreviver. Se eu cheguei ao ponto em que estou hoje, além de toda a luta, em grande parte é porque de alguma forma eles se sacrificaram para que eu estudasse e fosse liberada das tarefas domésticas.

    Agradeço também a alguns professores portugueses que na época colonial não nos davam a mínima importância e nos tachavam de atrasados, pela possibilidade de provar a eles que sua certeza não era real. Aos outros que nos estimularam a continuar crescendo, para além das limitações das ilhas, eu não tenho palavras para agradecer.

    À minha família toda pelo incentivo e por acharem um dia que eu ia longe, não só geograficamente, em um país marcado pelo analfabetismo, e que depositaram em mim parte de suas esperanças em um futuro melhor.


    ¹ DE CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.

    ² De acordo com Cornel West, o niilismo pode ser entendido, neste contexto, como a experiência de viver dominado por uma pavorosa falta de propósito, de esperança e (acima de tudo) de amor.

    ³ Canções insolentes eram canções que, na época colonial, contestavam, de alguma forma, a dominação.

    PREFÁCIO

    GARIMPANDO PISTAS PARA DESMONTAR RACISMOS E POTENCIALIZAR MOVIMENTOS INSTITUINTES NA ESCOLA

    O racismo

    O vivente só sobrepuja a vertigem do aniquilamento na embriaguez da procriação

    Walter Benjamin

    Existem nas recordações de todo homem coisas que ele só revela aos amigos. Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio, e assim mesmo em segredo. Mas também há, finalmente, coisas que o homem tem medo de desvendar até a si próprio.

    Fiódor Dostoiévski

    Toda obra, toda tese, todo livro, todo texto, guarda em si um conjunto de apriores, em parte desconhecidos dos próprios autores. Escrever inclui viver esta pugna de descobrir-se e de inventar-se, combatendo sob nevoeiros que nunca se dissipam totalmente, mas mudam e se deslocam sempre. E essa é uma das potências da escrita, pois o impensado que carregamos quando escrevemos não só mobiliza o pensado, como afirmou Bourdieu em sua Lições da Aula, mas demarca possibilidades por onde vamos desenvolvendo o texto. E a cada escrita podemos nos apropriar de parte dessa selva, que nunca chegaremos a dominar totalmente. Isso me parece fascinante e alguns compreendem cedo o quanto balançamos em nossas caminhadas pela vida, por não conseguirmos decifrar a realidade em sua complexa inteireza sempre em movimento. Ao falar nisso, volto à presença de Andréa, Andréa Linhares, minha filha, quando tinha uns 13 ou 14 anos. Conversando comigo, muitas vezes ela afirmava que na vida, atiramos sempre no escuro, e só sabemos se acertamos e em que medida o fazemos, depois de avaliarmos os acontecimentos.

    Se a vida tem rumos imprevisíveis, os textos também não são controlados por nós. Pelo contrário, emperram e embirram, quando procuramos sufocar o oxigênio secreto do qual se alimentam, dos quais raramente temos clareza. Por tudo isso, sempre estive convencida de que o melhor de uma leitura é esse espaço de elaborações recíprocas entre os impensados que sustentam os movimentos textuais do autor e aqueles outros enigmas que organizam os trajetos significadores por onde transitam o leitor e suas confluências ou embates criadores.

    No caso deste livro, que se origina de sua tese de doutorado, Eugénia Foster vai se apropriando de momentos em que se abismou em diferentes tipos de vertigem do aniquilamento para resistir, mergulhando na embriaguez da procriação.

    É difícil separar a trajetória, com que a autora foi lançada às intempéries de uma infância e adolescência submetida às hierarquizações enrijecidas da sociedade racista de Cabo Verde, onde foi procurando ir na contramão, na busca de sentido para sua própria vida, às opções teórico-metodológicas que foi assumindo no decorrer de gestação de sua tese.

    Lá como aqui, Eugénia respondeu aos caminhos ainda fechados, construindo trilhas, existenciais e coletivas, em múltiplas tentativas de alargar sua verdade, por nela acolher seu povo, que mais das vezes, de forma difusa e até quase emudecida, buscava e busca se comunicar, agindo e transformando a vida pequena que não comportava a grandeza de uma gente que se mira no oceano com que se mistura diariamente. Como eles, sentia-se balbuciante e desejosa de aprender a pronunciar o mundo com diferentes tons, na busca de expandi-lo para que nele coubéssemos todas e todos inteiros, porque com nossos sonhos.

    Eugénia chegou ao Brasil, com o coração cabo-verdiano, em que o tempo corre com o ritmo das marés, a separar ilhas e ilhotas de um belo arquipélago e, por isso mesmo, exigente de peripécias para sobreviver e viver. Ouviu falar do Brasil e de seu potencial de convivências multirraciais. Fez deste nosso país seu campo de investimento para superar desigualdades e dominações étnicas e culturais, sonhando sempre que os atalhos com que enfrentamos as opressões racistas e vamos potencializando os movimentos afro-brasileiros pudessem confluir com o que fazem os povos africanos, principalmente, abraçando Cabo Verde.

    Na sua pesquisa de doutorado, Eugénia Foster ausculta a gravidade das asfixias do pensar e falar com que se processam a grande maioria da educação escolar destinada à população negra, com espelhos em que são vedados os movimentos de tenacidade e beleza de um povo que vem resistindo criadoramente a tantas opressões.

    Por mais terrível que seja a cumplicidade da organização societária no Brasil, sufocando a população negra, Foster procura encontrar e reinventar sementes e pistas de movimentos instituintes que, mesmo pouco conhecidos, marginalizados, desconsiderados em sua importância, experimentam outras modalidades de formar professores, escapando dos modelos padronizados por insistirem em lógicas de horizontalização das experiências educativas, valorizando os processos de diferir e criar com responsabilidade ética que vão inaugurando estéticas em que possamos participar e criar uma outra escola, contribuindo para um mundo mais plural e includente.

    Célia Linhares

    Professora Emérita da Universidade Federal Fluminense.

    Professora do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da UFF. Professora Visitante Nacional Capes, atuando no Programa de Pesquisa e Pós-Graduação

    Contextos Populares e Demandas Contemporâneas.

    Pesquisadora do CNPq.

    APRESENTAÇÃO

    Manhã Dialéctica

    Foi numa manhã de flores lúcidas

    (com o sol a nascer oculto)

    que vi de repente

    romper das pedras e das árvores

    uma luz de terra

    a iluminar a discórdia de tudo

    da harmonia de haver alma a sangrar da realidade

    e desde então

    fiquei preso ao suor do sol do mundo

    pelas algemas da liberdade.

    José Gomes Ferreira – Poesia III

    A construção deste trabalho, para mim, tem sido um empreendimento complexo, ainda que não menos interessante. Ele constitui o coroamento e o eterno reinício de vivências, de questionamentos, de crescimento intelectual, de amadurecimento, de reflexões, dúvidas, inseguranças, medos e desejos de – não só no final, mas em seu processo – poder reconhecer que vale a pena o esforço. Nodecorrerdaorganizaçãodestetrabalho, umadificuldadeeumadúvida foram se fazendo presentes: como usar o conhecimento teórico, as vivências, as memórias adquiridos na minha trajetória de vida como cabo-verdiana hoje radicada no Brasil, memórias de estudante e de professora, para analisar as memórias de professores brasileiros e portugueses, bem como as questões concretas de discriminação racial, percebidas nas escolas desses dois países? A teoria sobre educação adquirida durante a trajetória do curso de Pedagogia e de Mestrado em Educação me parecia muito distante das questões concretas de desigualdade racial no país.

    Vale ressaltar que essa dificuldade de aliar teoria e prática, num primeiro momento percebida, não se limita aos aspectos da organização deste trabalho; ela se estende por todo o corpo desta obra e configura o cerne da problemática que norteia a pesquisa, embora não se trate aqui de qualquer questão relativa à relação teoria e prática, e sim de analisar a distância entre um discurso proclamado pela escola e contido no seu currículo oficial e as práticas ora explícitas, ora sutis que, cotidianamente, vão excluindo as crianças negras. Assim, se, de um lado, houve uma dificuldade de aliar teoria e prática na organização das questões deste trabalho, de outro, as próprias questões da minha problemática revelam que este mesmo obstáculo está presente no nosso sistema educativo que, teoricamente, na sua organização, funcionaria como espaço de socialização e de formação dos indivíduos para uma certa racionalidade.

    Este divórcio entre teoria e prática, uma certa exterioridade do conhecimento, não são marcas alheias a esta forma de inteligir o mundo. Dentro dela, há uma série de políticas sutis que, paulatinamente, vão reforçando os mecanismos de discriminação racial presentes na sociedade. Caberia então trabalhar mais esse distanciamento da teoria e da prática, da razão e da emoção, na sua articulação com a questão das diferenças étnico-raciais.

    A ineficiência da escola nascida de problemas concretos, configurada nessa distância entre a teoria e a prática, pode ser analisada pela sua dificuldade em produzir conexões entre o que se ensina, o que se aprende e as necessidades e desejos dos alunos. Distância que foi transformando os saberes escolares em uma "bagagem de informações ressequidas pela ausência de contato com a vida" (LINHARES, 1999, p. 14).

    Nesta linha de análise, o privilegiamento de um determinado tipo de conhecimento escolar surge calcado em concepções e práticas de uma racionalidade e política hegemônicas, fortalecedoras de controles e reforçadoras de um pensamento único, sobre o qual a escola se ergueu, e que nos engessam, impedindo de formular com magnitude teórica os problemas que afligem nossa sociedade, criticando tanto as cadeias internas, com seus mecanismos reprodutores, como indicando alternativas de encaminhamento (p. 37).

    Assim, é necessário refletirmos sobre os modos de aprisionamento do pensamento que, historicamente, têm condicionado nossa visão de ciência e de mundo, a partir de uma objetividade que reduz a vida e o movimento na construção do conhecimento.

    A metáfora da cegueira usada por Saramago é um exemplo interessante da necessidade de retomarmos algumas questões relacionadas à contradição entre o proclamado no discurso e a prática efetiva. Ela sugere uma ressignificação dos nossos conhecimentos, a partir da percepção de um vazio de significados enquanto transbordamos de informações. A cegueira pode ser entendida como o excesso de uma civilização analítica, perspectiva que parece ir perdendo a escuta, o tato, o olfato, como uma manifestação da distância entre nós e o(s) outro(s).

    Outra inquietação que foi surgindo na elaboração deste trabalho, refere-se à complexidade de que se reveste uma empreitada desta natureza. Levando em consideração que a nossa trajetória de vida é marcada por concepções e leituras do mundo, estas, neste momento, estão em franco processo de revisão, por se revelarem incompatíveis com a postura política que vamos construindo. Portanto, o processo de aprendizado seria muito menos longo e difícil do que é, se eu já houvesse operado essa revisão de conceitos que implica em mudanças das premissas da própria existência. Estas inquietações podem ser resumidas pela citação de Michel Serres (1993, p. 11), que diz: Ninguém sabe nadar de fato antes de ter atravessado, sozinho, um rio largo e impetuoso, um braço de mar agitado. Só existe chão em uma piscina, território para pedestres em massa.

    Afinal, aprender nos lança na errância, pois nenhum aprendizado dispensa viagens. A aprendizagem é uma aventura que nos exige coragem para partir e se lançar em um caminho de destino incerto, inicialmente ignorado, mas que cada um, a seu tempo, descobrirá.

    Aprender significa coragem de partir, deixar-se seduzir por outros caminhos, contrários a uma suposta direção natural. Implica tomar a vida a contrapelo, livre de naturalizações e certezas e expor-se perigosamente ao outro e às estranhezas, deixando a segurança da margem, do ninho, da casa, dos hábitos e das verdades cristalizadas para decidir embrenhar-se em trilhas tortuosas e caminhos desconhecidos.

    Eis o desafio: abrir espaço para novas formas de conhecimento, outra concepção de conhecimento que não se limite sempre às lógicas de alternâncias do ou isto, ou aquilo para conjugar avesso com direito, ou seja, diferentes níveis da realidade, diferentes lógicas, uma terceira luz que acolha um conhecimento mestiço capaz de dar encaminhamentos a perguntas difíceis que cada encruzilhada nos faz.

    É necessário, assim, questionar nosso saber, escolhido nos limites das cruéis divisões entre ignorância e conhecimento, o erro e a verdade, a ciência e a ficção, o obscurantismo e o progresso. Rever o conhecimento centrado unicamente em verdades cristalizadas e sedimentadas nos triunfos de uma história unitária, para produzir o tempo não do relógio, mas o nosso tempo, o das nossas almas, de nossos conhecimentos, o tempo das coisas e da história (SERRES, 1993).

    Qualquer esforço de relembrar nossas experiências tanto remotas quanto de um passado recente torna-se gratificante, quando essas mesmas lembranças, ao servirem de objeto de reflexões teóricas, venham a contribuir para a ampliação de nossa prática política-educativa. Deste modo, tocado por lembranças e reformulações de experiências, o percurso de aprendizagem deste trabalho – mesmo que pareça inaugurar novo processo –, a sua tessitura, as tramas, as ideias nele contidas estão em um longo processo de gest + ação+ reflexão + ação, que se originou no período colonial em Cabo Verde, e que vêm sendo, permanentemente, criadas e recriadas no Brasil.

    É neste sentido que trago as memórias de Cabo Verde. Algumas foram conformadas na infância, outras, posteriormente; mas todas, entrelaçadas, são importantes para configurar uma leitura do mundo que norteia todo este trabalho, pois, a volta ao passado, o reviver de experiências é uma possibilidade de ampliá-las, de nelas intervir. É importante assinalar, ainda, que a construção deste trabalho implica num processo longo de amadurecimento de ideias e que vem ganhando corpo com a minha participação em Congressos, Seminários, Simpósios e Jornadas, com trocas bastante fecundas, estimuladas no intercâmbio com outros colegas pesquisadores.

    Esta obra constitui, portanto, a concretização de um novo projeto de vida, uma construção coletiva e pessoal que se ampliou com a minha entrada no doutorado em 2000 e com a participação nos projetos de pesquisa e nas disciplinas da professora Célia Linhares, mas também nos Movimentos Negros que se espalham no Brasil e que têm na UFF programas e profissionais emblemáticos, tais como os conduzidos pela professora Iolanda Oliveira (PENESB) e pela Professora Laura Padilha (Faculdade de Letras).

    Nesta versão que aqui segue para publicação, algumas notas precisam ser colocadas: em primeiro lugar, trata-se aqui de reflexões datadas, mas que não perdem a atualidade, por nos permitirem comparações ao longo desse período: como avançou essa temática nos dois países? O que estagnou? Quais possibilidades de encaminhamento da questão racial na escola foram se abrindo e quais têm sido seus alcances?

    Por outro lado, a abordagem do trabalho, tanto no que se refere ao contexto brasileiro como português, permite-nos um olhar mais abrangente sobre essas duas realidades, em suas especificidades, sem perder de vista seus pontos de confluência e suas diferenças.

    Sumário

    PARTE I

    CONTEXTUALIZANDO O PROBLEMA

    Introdução

    Opções teórico-metodológicas

    Caminhos da pesquisa

    Memórias de uma condição de fronteira – Brasil, estranhamentos iniciais

    Fragmentos de minhas memórias existenciais e políticas da infância e adolescência em Cabo Verde

    Capítulo I - TRAÇOS da formação cultural brasileira referente à questão racial

    1.1 Aspectos de uma ideologia racial brasileira

    1.2 Raça e etnia: confrontando conceitos

    1.3 Alguns aspectos da questão racial e seus desdobramentos na educação escolar

    Capítulo II - Narrativas e mitos sobre racismos e raça negra

    2.1 Narrativas históricas do racismo

    2.2 Racismo e traços de representações do negro na literatura das luzes

    2.2.1 Traços de uma memória racista na literatura brasileira

    2.2.2 Traços da representação do negro na literatura infanto-juvenil

    Capítulo III - A questão racial na oralidade e suas expressões literárias

    3.1 A oralidade e sua separação da literatura: controvérsias

    3.2 Traços da representação do negro na literatura da península ibérica e algumas contraposições72

    3.2.1 Traços de representações do negro na literatura oral brasileira

    PARTE II

    GLOBALIZANDO E LOCALIZANDO A QUESTÃO RACIAL

    Capítulo I - Aspectos da questão racial na região amazônica

    1.1 Aspectos da trajetória da população negra no amapá – alguns subsídios para sua compreensão

    1.1.1 O negro no Amapá: o quilombo do Curiaú – Considerações acerca de sua história e memória. Entrelaces com a história dos negros na região amazônica.

    Capítulo II - Sutilezas do racismo e pistas de reinvenção da escola: aproximações entre Brasil e Portugal

    2.1 Amapá – uma experiência escolar com características instituintes: pistas de reinvenção e de luta contra o racismo

    2.1.1 Relação entre teoria e prática no tratamento da questão racial

    2.2 Escola cabana em Belém – PA e o tratamento à questão racial

    2.2.1 Análise da fala do professor

    2.2.2 Visita ao CEDENPA – Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará

    2.2.3 Visita ao Conselho Municipal do Negro

    Capitulo III - Uma incursão por damaia-lisboa: aspectos da questão racial em escolas portuguesas

    3.1 Algumas explicações necessárias para a realização da pesquisa em Portugal

    3.2 Breve caracterização da população de imigrantes cabo-verdianos em Portugal

    3.3 Traços da questão étnico-racial em escolas do bairro da DamaiaLisboa-Portugal

    3.3.1 Caracterizações gerais das escolas da Damaia e dos alunos de origem africana

    3.3.2 A questão racial e intercultural nas escolas estudadas

    3.3.2.1 Memórias de professores sobre a questão étnico-racial (memórias de infância, adolescência, escolares, formação e prática pedagógica). Lembranças sobre a questão racial em Portugal.

    3.3.2.2 Percepções sobre dificuldades de aprendizagem dos alunos africanos e descendentes

    3.3.2.3 Pistas de práticas racistas e de reinvenção da escola

    3.3.2.4 Formação Inicial e Ações de Formação

    3.3.2.5 Prática pedagógica e conflitos entre alunos

    3.3.2.6 A professora enfrenta barreiras para lecionar, mas depois engaja-se nos projetos

    3.3.2.7 Narrativas na escola e a questão racial

    (In) Conclusão

    Referências

    PARTE I

    CONTEXTUALIZANDO O PROBLEMA

    INTRODUÇÃO

    Neste trabalho intitulado Garimpando Pistas para Desmontar Racismos e Potencializar Movimentos Instituintes na Escola procurei estudar as tensões presentes nos processos de manutenção do racismo que convivem com movimentos instituintes endereçados à invenção de uma escola mais igualizadora, mais includente e, portanto, mais plural etnicamente e mais democrática.

    O problema que me incomodou nesta pesquisa é a manutenção do racismo na escola, procurando focalizar a questão, a partir de dois eixos, tensionados dentro do contexto educativo escolar: de um lado, os processos de manutenção do racismo na escola que perpassam o domínio das memórias e das narrativas, nas suas dimensões sutis, nem sempre consideradas, reconhecidas e tão pouco valorizadas, mas que suponho terem uma importância crucial no reforçamento das desigualdades presentes na escola. De outro, os movimentos instituintes que anunciam possibilidades de ultrapassagem do racismo.

    Em termos escolares, essa memória, decorrente da racionalidade a que me oponho, faz-se presente no estímulo à competição, tanto entre escolas como entre alunos, no privilégio a um determinado tipo de conhecimento, na desvalorização de outros, nas atitudes de negação do outro como legítimo outro na convivência, numa cultura que promove e estimula a guerra, o aniquilamento e a destruição do outro, a homogeneização e a verticalização das diferenças (MATURANA, 1998).

    Observo que a escola, no seu currículo oficial, indica uma educação democrática, crítica e participativa. Um discurso de democracia e pluralidade que se amplia cotidianamente e se sofistica. Os PCN são um exemplo claro disso, ao enfatizarem o tema transversal pluralidade cultural como forma de superação da discriminação racial. No entanto, na experiência vivenciada pelos sujeitos no cotidiano escolar, verificam-se muito mais processos de manutenção sutil do racismo do que práticas que caminhem na direção de sua ultrapassagem.

    A revisão da literatura produzida sobre o assunto, aliada à minha experiência vivida e mais alargada sobre a temática racial, apontam em uma direção, ainda que apresentem várias interpretações, a respeito de onde podem ser captadas as práticas discriminatórias que ainda subsistem na escola: o racismo se mantém em vários domínios do cotidiano escolar e nem sempre é percebido pelos professores. Aliás, na maioria das vezes, ele é negado, contrariando todas as evidências.

    Gomes (1995) e Cavalleiro (2000), por exemplo, assinalam uma série de situações de discriminação racial de crianças afrodescendentes, ora veladas ora explícitas, que vão decretando o seu fracasso e alargando, cada vez mais, as margens de uma desigualdade já situada em níveis estratosféricos. Situações que, conjugadas às baixas expectativas dos professores, a respeito dos alunos negros, contribuem para a construção de uma fraca autoestima e de identidades étnicas fragmentadas.

    Se de um lado essas situações revelam uma memória que ainda prevalece na escola, de outro, indicam um despreparo grande de professores no encaminhamento das questões raciais. Não seria esta uma evidência de que a escola e os cursos de formação de professores não estão muito preocupados com a diversidade, com a desmistificação dos estereótipos, com a visão negativa de negritude, presente nas atitudes dos professores e também dos alunos? Não seria um indício de que os cursos de formação de professores estão carregados de silêncios, lacunas, distorções, memórias opressoras e emudecedoras da experiência vivida dos negros, suas lutas seus projetos de um futuro, na constituição da nação brasileira?

    Os dados do IPEA⁴ confirmam, em linhas gerais, essa desigualdade, mostrando que a diferença de escolarização entre negros e brancos se mantém inalterada há, pelo menos, 50 anos, ou seja, embora as taxas de escolaridade dos negros e brancos tenham crescido no século vinte, as desigualdades raciais continuam as mesmas: um jovem branco tem, em média, mais 2,3 anos de estudo do que um jovem negro da mesma idade.

    No período recente, apesar nas melhorias no acesso à escola, expressas na redução do número de jovens de 7 a 13 anos fora da escola, o que se verifica é que os negros ainda têm níveis de desempenho muito inferiores aos brancos. Os níveis de analfabetismo são piores entre negros do que entre brancos.

    A escola silencia sobre o racismo, até mesmo quando ela afirma estar falando sobre a questão racial. Todos se dizem não racistas, mas apontam o racismo no colega. Atualmente, fala-se de respeito à diversidade cultural, à pluralidade, à diferença, mas parece que ainda são pouquíssimas as escolas que vêm se debruçando sobre o racismo, que está presente em várias dimensões do cotidiano. O que nos leva a concluir que o racismo, embora negado no discurso, é confirmado cotidianamente, na prática das nossas escolas. É impressionante como, além da simples omissão, o recurso que mais se adota para a questão racial ainda é o silêncio. Daí a sensação de estranheza que é despertada quando se convida um professor para falar sobre o assunto.

    Instigada pela percepção da existência desse desencontro, a minha preocupação, neste trabalho, é justamente buscar compreender os processos de manutenção do racismo na escola, a despeito dos esforços que vêm sendo empreendidos no seu combate, considerando que a problemática racial no Brasil tem interdependências históricas que, ao mesmo tempo, cruzam com a complexidade teórica com que essas questões atualmente são tratadas.

    Por que razão o racismo persiste na escola, se temos notícia de uma variedade de iniciativas que vêm sendo desenvolvidas no país e em termos de políticas educacionais, visando combater a discriminação racial? Entre elas, vale considerar, pela sua importância, no âmbito das políticas educacionais do país, os PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), com o tema transversal Pluralidade Cultural. Não esquecemos, porém, a força de organização dos movimentos sociais, particularmente, do Movimento Negro, cujo espaço de luta e de reivindicação por melhorias e pela efetivação dos direitos de cidadania, para a população afro-brasileira, entre elas a educação, é histórico e permanente.

    Entretanto, o que mudou em termos das práticas efetivas? Por conta do novo discurso que os PCN impuseram à escola, ela se tornou uma instituição mais democrática e menos racista? Como então aprofundar o aspecto da diversidade na escola, de fazer com que as memórias negadas ocupem um espaço no currículo? Como explicar a persistência do racismo, do silenciamento sobre a questão? Que outros caminhos se vislumbram para a ultrapassagem do racismo na escola?

    O problema talvez seja o seguinte: a questão

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1