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O Brasil tal qual ele é
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E-book412 páginas6 horas

O Brasil tal qual ele é

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Sobre este e-book

O Brasil tal qual ele é, de Charles Expilly, retrata a vivência do autor no Rio de Janeiro em meados do século XIX. O viajante francês, após algumas publicações muito sinceras quanto à vivência no país, ficou conhecido como o "Inimigo do Brasil". Publicado originalmente em 1862, foi agora traduzido pela primeira vez, na íntegra, por Katia Aily Franco de Camargo, que apresenta uma obra com notas relevantes sobre a visão do viajante francês e da sociedade brasileira da época, resultando em um livro rico e uma contribuição importante para a compreensão da história social e política do nosso país.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de jan. de 2017
ISBN9788546205059
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    O Brasil tal qual ele é - Katia Aily Franco de Camargo

    final

    Apresentação

    A prática da narrativa de viagem remonta os séculos e suscita, no correr do tempo, o interesse de inúmeros leitores. Desde a Antiguidade coloca-se lado a lado as viagens de descoberta, as explorações do desconhecido, as viagens de retorno à terra natal e a reapropriação daquilo que é familiar. Viajar não deixa de ser a experiência do e no estrangeiro, vivido ou imaginado, ou ainda as duas coisas ao mesmo tempo: [...] a viagem é, simultaneamente, uma experiência humana singular, única, inconfundível para aquele que a viveu, e um testemunho humano que se inscreve num momento preciso da história cultural de um país: o do viajante (Machado, A.; Pageaux, D.-H. 2001, p. 33).

    Miriam L. Moreira Leite lembra, em Livros de viagem (1997), que o habitante local tem uma visão que é comum ao grupo, diferentemente daquela do viajante que, por ser alguém de fora, que está ali de passagem e, portanto, sem a preocupação de ser aceito pelo grupo visitado, possui um olhar mais observador, mais alerta. Ainda segundo a autora, o viajante do século XIX traz a postura do homem civilizado face ao atrasado (o Outro brasileiro), o que é reforçado por uma série de obstáculos linguísticos, culturais e econômicos responsáveis, muitas vezes, por mal-entendidos entre o estrangeiro e o homem da terra e que por sua vez são registrados nas páginas dos escritos desses viajantes-autores. A população brasileira que podia ler esses textos nem sempre se identificava com a imagem ali descrita. Essa querela entre a auto e a heteroimagem do brasileiro está presente na obra ora apresentada.

    Segundo o Dicionário Literário Brasileiro, de Raimundo de Meneses, Charles Expilly nasceu em Salon, Bouches-du-Rhône, em 1814. Foi jornalista e romancista. Partidário das doutrinas liberais, exaltado, declamatório, melodramático, abandonou a França após o golpe de Estado do presidente Luís Napoleão, em 1851, e veio para a América do Sul buscar fortuna. Foi diretor de uma fábrica de fósforos no Rio de Janeiro, juntamente com seu primo. Era casado com uma brasileira. Era adversário tenaz da escravidão negra, daí seu codinome de inimigo do Brasil. Tencionava fundar, juntamente com sua esposa, um estabelecimento de educação profissional para os filhos pobres dos funcionários públicos. Falido, retornou à França onde publicou inúmeros livros e artigos de jornal criticando o Brasil, seus usos e costumes. Foi nomeado comissário adjunto de Emigração no Havre e em Marselha. Faleceu em Tain, Rhône, em 1886.

    Gilberto Freyre em Dom Pedro II julgado por alguns estrangeiros seus contemporâneos (1970), escreveu:

    Quem já leu o livro de Charles Expilly sabe quanto há nas suas 382 páginas de injusto, de malicioso, de caricaturesco contra o Brasil – todos esses abusos disfarçados sob o aspecto do que hoje alguns chamariam de objetividade. O autor é […] Na realidade, é mais do que panfletário.

    Num livro assim em seu modo de ser mais que panfletário é significativo encontrar-se, da parte do furioso autor, um irreprimível respeito pela personalidade de Pedro II: ";honnête homme autant qu’homme instruit avant tout... Monarca a quem o panfletário não conseguiu negar uma ;philantropie éclairée".¹

    O hipercriticismo que Gilberto Freyre atribui a Expilly deve-se, talvez, à abordagem sem condescendência com que este autor descreveu um tema novecentista pouco apanhado pela historiografia brasileira: a escravidão branca. Ou seja, as condições extorsivas que eram impostas aos imigrantes proletários, sobretudo de origem portuguesa, e mais particularmente açoriana, que chegavam ao Rio de Janeiro nos anos 1850 e 1860.

    Esses textos não passam de um resumo daquilo que é comumente reproduzido e repetido nos dicionários, obras de referências e na crítica que sua obra e sua pessoa receberam nos jornais, sobretudo cariocas, em meados do século XIX².

    No prefácio de sua primeira obra, O Brasil tal qual ele é, que trazemos agora traduzida pela primeira vez para o português do Brasil, Expilly justifica o título que atribuiu a esta – segundo ele, sugestão de seu editor –, pressentindo, talvez, o tipo de reação de seus leitores, ou melhor, de suas leitoras, madames ou senhoras, de ambos os lados do Atlântico.

    Após longa divagação sobre os diferentes tipos de viajantes que ancoraram em terras brasileiras ele explica a razão pela qual sua narrativa se difere das demais nos seguintes termos: Se minha escrita não é devota, ao menos é imparcial [...] Eu morei no Rio com trabalhadores e como trabalhador. Assim, vi melhor que todos os escritores – oficiais e oficiosos –, [...], e minha apreciação [...] descreverá melhor o estado real das coisas (Prefácio).

    O livro vem a lume em 1862 e em 1864 já está em sua terceira edição³. Em 1863, o autor publica Les femmes et les mœurs du Brésil, que considerou continuação de sua obra anterior, versando, desta vez, sobre os aspectos do interior do Brasil. Vale ressaltar que Mulheres e costumes do Brasil era a única obra de Expilly traduzida, até o momento, para o português. A primeira edição, realizada pela Editora Nacional, é de 1935 e recebeu tradução, prefácio e notas de Gastão Penalva⁴. Este se afasta diplomaticamente de qualquer comprometimento com a obra traduzida:

    Como ficou dito, o único intuito dessa tradução (e os editores o reconheceram de pronto) reside no seu valor documentário. Bem ou mal considerado, o que apenas buscamos conservar, reproduzido em vernáculo, é o material que reflete o nosso passado social e histórico, se bem que contemplado por uns olhos algumas vezes sensatos, outras deformados por consciente estrabismo. (p. 14)

    No prefácio desse segundo livro, Expilly fala sobre a recepção de sua obra Le Brésil, tel qu’il est pelo mundo, trazendo ao leitor de hoje esclarecimentos sobre como seu livro fora escrito, sobre a função do editor, o mercado livreiro e os leitores, os quais preferiam os romances, a fortuna crítica e a circulação de ideias, trazendo à luz o nome de países e jornais por onde sua obra circulou.

    De acordo com Francisco Alambert (1998, p. 91), se, de um lado, Expilly tocava sua vida aproveitando-se dos conhecimentos adquiridos na experiência sul-americana, por outro, ambicionava formar uma obra consistente, crítica e opinativa, sobre a situação latino-americana e seu destino, daí seu distanciamento dos demais viajantes.

    Em meio a tanta controvérsia, cabe dizer algumas palavras sobre Charles Expilly. Em pitoresco livro publicado em 1863, Scènes et mensonges parisiense de Aurélien Scholl, encontramos algumas informações menos carregadas de rancor sobre nosso marchant d’allumettes

    Expilly est un homme très-droit au moral comme au physique. Il est Marseillais comme la Canebière et il a conservé de l’accent du pays tout juste ce qu’il faut pour lui tenir lieu d’extrait de naissance. Avant de s’enrôler dans le grand bataillon littéraire, Expilly a servi dans les lanciers. Quelquefois encore on le surprend à faire l’exercice devant une glacé. Dégoûté de la vie parisienne, il est allé tenter la fortune au Brésil, mais la fortune a résisté à la tentation. Expilly publie aujourd’hui des romans brésiliens qui sont fort curieux et très-goûtés. (Scholl, 1863, p. 118-119)

    Jean-Charles Marie Expilly, que viveu dois anos no Rio de Janeiro, possui uma grande lista de escritos publicados, nos quais assina com pseudônimos, dentre eles encontramos: Visconde de Canourgues, Tisté, C.-E du Thorat e Claude la Poëpe⁶. Algumas de suas obras estão referendadas nas notas de rodapé, ao longo da tradução.

    Critérios e escolhas da tradução. Procuramos manter o texto de Charles Expilly o mais próximo possível do original, assim, mantivemos os destaques do autor, suas notas de rodapé, as palavras e explicações que utiliza em língua portuguesa, a grafia por ele empregada. O leitor encontrará a grafia do português antigo, às vezes com erros tipográficos, que encontramos no original. Na primeira ocorrência de uma dessas palavras e/ou expressões ela está tal e qual o original, em seguida, por uma questão de fluidez textual, optamos pela escrita corrente.

    O texto foi anotado para facilitar a leitura e também para incitar a curiosidade de leitores e pesquisadores.

    Katia Aily Franco de Camargo

    Março de 2016

    Referência

    ADET, É. Resposta ao artigo da Revista dos Dois Mundos, intitulado Do Brasil em 1844; situação moral, política, comercial e financeira. Minerva Brasiliense, n. 23, v. 2, p. 719-725, 1 out. 1844.

    ALAMBERT JR., F. C. Civilização e Barbárie, História e Cultura. 1998. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo.

    CAMARGO, K. A. F. A Revue des Deux Mondes: uma intermediária entre dois mundos. 2.ed. Natal: UdUFRN, 2014.

    GANNIER, O. La littérature de Voyage. Paris: Ellipses, 2001.

    GARRAUX, A. L. Bibliographie Brésilienne. Catalogue des ouvrages français & latins relatifs au Brésil (1500-1898). 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1962. p. 139-140.

    LEITE, M. L. M. Livros de viagem. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.

    MACHADO, A. M.; PAGEAUX, D.-H. Da literatura comparada à teoria da literatura. 2. ed. rev. e aum. Lisboa: Editorial Presença, 2001.

    MENEZES, R. Dicionário Literário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1969.

    MOREIRA LEITE, M. L. Livros de viagem (1803-1900). Rio de Janeiro: EdUFRJ, 1997.

    RAEDERS, G. Bibliographie franco-brésilienne (1551-1957). Instituto Nacional do Livro, 1960. p. 133.

    SCOVILLE, A. O desejado e o rejeitado: o sebastianismo que Charles Expilly encontrou por aqui. Revista de Letras, Curitiba, n. 68, 2006. Disponível em: . Acesso em: 12 ago. 2013.

    SCHOLL, A. Scènes et mensonges parisiens. Paris: Michel Lévy Frères, 1863. Disponível em: . Acesso em: 12 ago. 2013.

    VERRI, G. M. W. Viajantes Franceses no Brasil. Recipe: EdUFPE, 1994.

    Obras de Charles Expilly

    EXPILLY, C. Mulheres e costumes do Brasil. Disponível em: .

    ______. La porte noire. Nancy: Impr. Hinzelin, 1846.

    ______. Louis XVI et Guillaume. Nancy: Impr. Hinzelin, 1846.

    ______. Le pirate noir. Paris: Boule, 1847.

    ______. La cousine d’un grand homme. In: SOLIE, E. La poésie et la réalité. Paris: De Vigny, 1852.

    ______. Le Brésil tel qu’il est. Paris-Leipzig: Jung-Treuttel ed., 1862.

    ______. Les femmes et les mœurs du Brésil. Paris: Charlieu et Huillery, 1863.

    ______. Du mouvement d’émigration par le port de Marseille. Marseille: Impr. De Roux, 1864.

    ______. La Cabra d’Or. Légende provençale. Paris: Charlieu et Huillery, 1864.

    ______. La traite, l’émigration et la colonisation au Brésil. Paris: A, Lacroix, Verboeckhoven et cie., 1865.

    ______. Les aventures du Capitaine Cayol. Paris: E. Dentu, 1866.

    ______. Le Brésil, Buenos-Ayres, Montevideo et le Paraguay devant la civilisation. Paris: H. Willems, 1866.

    ______. La vérité sur le conflit entre le Brésil, Buenos-Ayres, Montevideo et le Paraguay. Marseille: E. Camoin, 1866.

    ______. L’ouverture de l’Amazone et ses conséquences politiques et commerciales. Paris: Dentu, 1867.

    ______. La politique du Paraguay, identité de cette politique avec celle de la France et de la Grande Bretagne dans le Rio de la Plata. Paris: Dentu, 1869.

    ______. Les Ambulances internationales et les frères Saint Jean de Dieu. Paris: Dentu, 1870.

    Prefácio

    Este título: O Brasil tal qual ele é, parecerá, talvez, pretencioso a alguns leitores. Eu lhes peço a permissão para justificá-lo, o que, acredito, não será muito difícil.

    Um grande número de obras foi publicado sobre esse país, dentre as quais citarei as seguintes relações de viagem: do príncipe Maximilien de Wied Neuwied⁸, de Lindley⁹, do dr. Walsh¹⁰, de Freycinet¹¹, de Auguste de Saint-Hilaire¹² e de John Armitage¹³.

    Esses messieurs – viajantes oficiais ou turistas principescos –, custeados por seus governos, acolhidos pelo imperador Dom Pedro e seus ministros, recomendados aos presidentes de províncias, vivendo no seio da abundância, no meio do luxo e das honrarias, puderam encontrar em suas excursões apenas o que admirar. Isso se explica de maneira natural: eles viram o Brasil apenas por um viés, o do belo.

    Esses messieurs residiram em apartamentos bem arejados; beberam bebidas frescas a 28 graus Réaumur¹⁴; comeram como se estivessem em Paris ou Londres, com convivas, sempre amáveis, e por vezes célebres; saíram apenas em carros ou em liteiras; viram, entre seus servidores, apenas semblantes sorridentes. E quer que falem de um calor escaldante que nenhuma chuva consegue amenizar, da ignorância abjeta das massas, do orgulho desmesurado dos brancos, dos costumes pouco evangélicos do clero, e mesmo dos efeitos desastrosos da escravidão!?

    Ora vamos! Isso não é possível.

    Os viajantes dessa natureza ignoram, até mesmo, as verdadeiras condições de existência no Brasil¹⁵; eles não podem, consequentemente, apreciar as lutas inflamadas, perigosas, incessantes, que, para viver, é preciso travar, tanto contra os homens como contra os animais, e contra o clima que Ferdinand Denis não teme em denominar de privilegiado. Para eles, necessariamente, o Brasil não é a pátria das baratas, surucucus, bichos de pé, aranhas negras, escorpiões, centopeias, sapos de chifre, formigas viajantes, e cupins¹⁶, que atacam tudo: – livros, malas, móveis, roupas, etc., etc., e que devoram tudo em algumas horas.

    Eles não encontraram – pois haviam sido limpos – nem caranguejos azuis, nem cupins nos seus salões, nem formigas viajantes em seus quartos, nem cobra coral em seus jardins, e o barulho das execuções sumárias entre os negros não chegou até eles.

    Que conclusão podemos tirar do que foi exposto até aqui?

    Aqui está a conclusão:

    Quanto mais charmoso e atencioso tenha sido o acolhimento, mais facilmente a crítica se deixou desarmar; assim como o homem e as coisas, paisagens, instituições e costumes perderam, face a ela, seu significado real e seu verdadeiro tamanho.

    Isto para os viajantes oficiais.

    Outros escritores, mais modernos, ocuparam-se do Brasil; mas com exceção de certos espíritos sérios e práticos – o Dr. Heusser¹⁷ entre outros –, que se colocaram fiel e corajosamente em busca da verdade, os escritores em questão apresentam apenas de maneira imperfeita as garantias da imparcialidade que o público tem o direito de exigir daqueles que se dirigem a ele.

    Algumas explicações são aqui necessárias:

    Nem todos os leitores foram iniciados nos esforços empreendidos pelo governo brasileiro, em diferentes nações europeias, para levar às costas do Império a corrente de emigração do velho continente. Esses esforços se devem ao estado desastroso em que se encontra a agricultura brasileira, desde a aplicação inexorável do bill Aberdeen¹⁸. O tráfico tendo sido radicalmente suprimido, os negros que morrem não podem ser substituídos e obrigatoriamente, fatalmente, se o Império quer continuar a existir, é preciso substituir pelo trabalho livre o trabalho escravo.

    O apelo do Brasil à emigração europeia provém de um direito incontestável, do direito de legítima defesa, ainda que – não é inútil lembrar –, o sofrimento desse país seja o resultado natural de uma opressão ímpia, sistemática e secular.

    Seu sofrimento é grande, sem dúvida; mas, no final das contas, ele representa o início de uma expiação tardia.

    O Brasil, encurralado, dirigiu-se, então, a todos os desfavorecidos da Europa e lhes fez, para os atrair, as mais sedutoras promessas.

    Na Alemanha, França, Suíça, Itália, publicações subvencionadas empreenderam uma ativa propaganda; logo, mesmo os jornais e revistas foram considerados como auxiliares insuficientes, tamanha era a impaciência em se atingir o objetivo! Formaram-se então companhias, cujos agentes, percorrendo os vilarejos e o campo, exageraram ainda as poéticas descrições dos escritores amigos e apresentaram o Brasil como uma espécie de paraíso que ficaria muito feliz em receber sua admissão.

    Apontamos essas manobras, que necessitaram da intervenção de diversos governos (do francês, dentre outros, quando tentaram empregar operários de Cherbourg), em nosso artigo da Revue Contemporaine de 15 de julho de 1858, sob o título: De l’émigration et de la colonisation au Brésil¹⁹.

    Mas é principalmente na França que gostaríamos de tornar popular a emigração para as terras brasileiras.

    Em Paris, as negociações foram travadas com diferentes órgãos da imprensa, com o objetivo confesso de combater as más impressões disseminadas por relatos tidos, essencialmente, como caluniosos e hostis ao Brasil. Um vasto plano foi concebido, segundo o qual vários jornais quotidianos e mais aqueles a cinco centavos deveriam exaltar, sob todos os tons e de todas as maneiras, tudo aquilo que pudesse modificar essa ideia, como, por exemplo: a política progressiva do Brasil, a suavidade do clima, os hábitos hospitaleiros de seus habitantes, as produções variadas de seu solo fértil, e, se não os benefícios da escravidão, pouco estimada na Europa, ao menos o estado de felicidade perfeita que proporciona aos negros esta instituição eminentemente patriarcal. Era necessário solicitar todos os dias as imaginações entusiastas e os espíritos aventureiros, de maneira a propiciar o estabelecimento em território do Império.

    Essa combinação patriótica demandava, parece, uma verba financeira um pouco maior do que aquela que lhe era destinada; assim, ela fracassou quase por completo.

    Hoje, considera-se que apenas um jornal em Paris mantém íntimas relações com o Brasil oficial.

    Os leitores de boa fé, aos quais me dirijo, começam agora a compreender o exato valor do título deste livro.

    Eu não sou nem um príncipe entediado em busca de distrações longínquas, nem um turista milionário, tendo, no lugar da paixão pelas dançarinas, a paixão pelas viagens, nem um naturalista subvencionado pelo governo para ir caçar colibris, nem, e, principalmente, um escritor interessado seja em satisfazer a diplomacia do Império, seja em colaborar com os empreendedores da emigração.

    Eu acredito que devo inserir neste prefácio uma pequena anedota que tem sua importância em relação aos costumes brasileiros.

    Em dezembro de 1861, eu me apresentei à legação do Brasil e pedi para entregarem minha carta ao Marquês de Lisboa, ministro de Sua Majestade Dom Pedro II.

    O objetivo de minha visita era tão simples quanto respeitável.

    Eu desejava obter algumas informações sobre certos assuntos abordados em minhas publicações anteriores e cuja fisionomia poderia ter sido alterada desde meu retorno à Europa.

    A Casa Penitenciária estava terminada?

    Desistiram de se fazer aterro, no Rio de Janeiro, após o estranho procedimento empregado no Campo d’Acclamação²⁰? Havia sido, finalmente, revogada a lei sobre as uniões entre protestantes e sobre os casamentos mistos, reclamada pelo deputado Octavianno em nome da família e da religião, e prometida pelo Senhor Vasconcellos, órgão autorizado do governo?

    Eis o que, entre outras coisas, eu pretendia perguntar ao ministro de Sua Majestade Brasileira.

    Com certeza, se um encaminhamento implica em boa fé e desejo de ser imparcial, este o é acertadamente.

    Pois bem! O Marquês de Lisboa não quis, ou não p de apreciar a lealdade de minha iniciativa. Em face de seu patriotismo feroz, eu era um inimigo de seu país, consequentemente, ele se recusou a ler a carta que eu lhe apresentava, e sobre a qual acabava de lhe explicar o conteúdo.

    Retirei-me, então, mas lastimando sinceramente que os verdadeiros interesses do Brasil fossem tão mal compreendidos.

    Eu havia citado – em um trabalho que aparentemente tinha certa importância, uma vez que fora traduzido para o português e reproduzido em uma Revista²¹ do Rio de Janeiro, e ao lado de considerações de naturezas diversas sobre as causas do insucesso que encontra na Europa a propaganda brasileira –, um fato enorme, inacreditável, que era como um audacioso desafio lançado ao progresso e à civilização.

    "Uma mulher Kerch (o Jornal do Commercio²² a chama de Schopp) protestante, casada com um protestante, por um pastor de sua religião, pôde, enquanto seu marido era vivo, esposar um católico, seu amante, chamado Lima. Esta união escandalosa, ao invés de ser considerada como um ato impertinente de bigamia, foi consagrada pela autoridade eclesiástica do Rio, conforme os cânones do Concílio de Trento".

    A imprensa brasileira, é preciso lhe dar este crédito, ficou calada. Na Câmara dos Deputados, as preocupações foram grandes em relação às consequências de uma situação como esta, e uma passagem do discurso da Coroa dava a entender que logo se remediariam as imperfeições da legislação sobre os casamentos.

    A repercussão do caso Kerch foi grande na Europa. Os jornais protestantes, armados da intolerância religiosa, estabeleceram à maneira deles o grau de civilização a que havia chegado o Império sul-americano.

    Estaria eu errado em acreditar que seria uma boa política tentar apagar a má impressão produzida entre nós pela estranha solução dada aos culpados amores de uma esposa desavergonhada?

    Aquele que primeiro divulgou este ato abominável, inicialmente no Courrier de Paris e, em seguida, na Revue Contemporaine, vinha se oferecer a escrever sobre a retratação acordada à moral pública, à família, à religião, se, na verdade, esta retratação, prometida após debates solenes, tivesse sido acordada.

    Parece-me, ou estou errado?, que o representante oficial do Brasil deveria acolher com complacência, com alegria, a ocasião que lhe fora oferecida de reabilitar a legislação de seu país; parece-me que seu reconhecimento era devido ao escritor consciencioso, que, sem abandonar o terreno da verdade, estava disposto, no entanto, a substituir a reclamação pelo elogio e a curar, assim, o mal que, em sua legítima indignação, ele pudera causar ao Brasil.

    Atestar, sob a garantia de um nome pouco suspeito de parcialidade nesse assunto, que os estrangeiros e os protestantes, privados de uma parte de seus direitos civis, encontrarão, a partir de agora, no Império, uma proteção suficiente para sua consciência, seu culto e sua família, não é a melhor propaganda que o Brasil poderia fazer à emigração europeia?

    O representante oficial de Sua Majestade Dom Pedro II não julgou o acontecido da mesma maneira.

    Sua acolhida, perfeitamente adequada, não me irritou, assim, ele não me inspirou sentimentos hostis ao Brasil. Seria pouco digno de um escritor sério modificar, por causa de um homem, sua opinião sobre um país que ele já estudou. Não posso, no entanto, impedir-me de representar ao Marquês de Lisboa, com toda deferência que merece sua condição, que, expandindo uma suscetibilidade tão difícil, ele corre o risco de dar uma ideia falsa da amenidade dos costumes que produz uma civilização avançada, e, a partir de então, não conquistar a simpatia de muitos para o Brasil.

    Se um escritor fiel merece a consideração daqueles que ele critica, por outro lado a polidez – esta polidez do bom gosto que preside as relações dos homens bem educados –, nunca prejudicou causa alguma.

    Quanto a mim, que tenho a pretensão de ser um homem de meu século, eu distingo entre o patriotismo e o chauvinismo, assim como não confundo orgulho com vaidade.

    Sempre respeitarei o patriotismo, desde que seja inteligente.

    Espero que meus leitores concordem comigo.

    Se minha escrita não é devota, ao menos é imparcial; este é um assunto sério, dedicado àqueles homens que querem saber a verdade sobre o país para o qual foram conduzidos.

    Eu morei no Rio com trabalhadores e como trabalhador. Assim, vi melhor que todos os escritores – oficiais e oficiosos –, dos quais acabamos de falar, e minha apreciação (por que uma falsa modéstia me impediria de declará-la?) descreverá melhor o estado real das coisas.

    Minhas relações em curso, e enquanto negociante e literato, com pessoas pertencentes a todas as classes me permitem examinar a sociedade brasileira até em seus recônditos mais secretos. A oficina e o salão, o mercador e o homem da corte, o português e o brasileiro – esses dois tipos tão diferentes em todos os sentidos! – o senhor e o escravo, também me são conhecidos.

    Se, às vezes, minha história é triste; se as cores nem sempre são tão alegres, a causa são os fatos produzidos por instituições viciadas.

    Perdoem minha franqueza, talvez um pouco bruta, mentes distintas, corações devotos que felizmente conheci, meu Deus, em terra brasileira.

    Sua cordial e confortável hospitalidade, doutor Pacheco, sua inteligência apurada, constantemente alimentada pelas melhores tradições francesas e inglesas, a afabilidade de sua encantadora família foram para mim um grande consolo das rudes provas pelas quais tive que passar.

    O senhor se lembra com que atenção eu o escutava quando, em seu entusiasmo patriótico, o senhor traçava em minha frente, num francês impecável, o magnífico quadro do destino reservado ao Brasil.

    Durante três séculos, dizia o senhor, os portugueses esmagaram o impulso do talento nacional; também hoje, em uma época na qual o progresso percorreu esplêndidas etapas, mal chegamos a viver a vida das nações livres. Somos ainda um povo novo, é verdade; este povo, no entanto, pede apenas para caminhar adiante, com os olhos voltados para os faróis luminosos que Deus colocou frente da humanidade: a França e a Inglaterra. Para nós o passado é triste, o presente continua ininterruptamente sua obra de transformação – obra sempre lenta e difícil –, e o futuro, como brilha! Como irradia sobre meus olhos encantados!

    Com as pupilas faiscantes do fogo da inspiração, o senhor me mostrava a América do Sul pacificada; as repúblicas espanholas se constituindo seriamente e formando uma confederação que fazia contrapeso aos Estados Unidos do Norte, as raças espanhola e portuguesa se colocando em face da raça anglo-saxã e o Brasil encabeçando, naturalmente, essa liga formidável.

    Que belo sonho, doutor! Que belo sonho! E quanto o senhor não deve acreditar, hoje, depois de nossa expedição para o México, em sua breve realização!

    E eu, sem compartilhar de suas ideias ambiciosas (diria mesmo, algumas vezes, de suas ilusões), lhe contava minhas impressões a respeito desse povo novo, como o senhor o chama.

    Eu faço a distinção, como sabe, entre o brasileiro e o português. Este, para mim, fora grande apenas num passado já bastante longínquo. Durante sua longa dominação sobre o Brasil, ele se mostrou o símbolo da superstição, dos preconceitos mesquinhos, da opressão, do egoísmo, da imobilidade, da ignorância, em uma palavra. O primeiro, ao contrário, representa, para mim, a atividade, a inteligência que desperta e que procura sinceramente a verdade; os nobres, as generosas aspirações se manifestando em meio às tentativas inevitáveis. Sou apenas justo ao declarar que, em minha opinião, as fraquezas e os vícios dos brasileiros são fruto dos orgulhosos conquistadores de sua bela pátria, e que suas qualidades lhes .

    É incontestável que eles ainda sofrem da funesta influência de um estado de coisas que desapareceu, que ainda não expulsaram por completo os estúpidos preconceitos, os erros ridículos e as más tradições que lhes foram legadas. Para aquele que os estudou com afinco, é evidente que lutam com coragem, no intuito de sair da via tenebrosa na qual se engajaram, seguindo os opressores. O gênio estreito, indolente, vaidoso da velha metrópole deixou sua marca nos costumes e nas instituições. Isso é verdade, e é esse gênio maléfico que é o objetivo do meu sarcasmo. Mas dentre os homens que dirigem a opinião pública há muitos, e, a frente deles, eu coloco o jovem Imperador Dom Pedro II, que alimentam a forte vontade de se desvencilharem das amarras do passado e de caminharem junto de seu século. Assim como o senhor declara tão bem, caro doutor, esse povo novo continua a obra de sua transformação, com os olhos voltados para a França e Inglaterra – esses dois faróis luminosos colocados por Deus à frente da humanidade.

    O senhor perdoará minhas críticas, Dr. Pacheco da Silva, em prol do sentimento que as inspirou. Além disso, o senhor responderá àqueles que caluniarem minhas intenções em sua presença que não é inimigo do Brasil o escritor que quer chacoalhar a apatia do Brasil, e que o provoca, franca e duramente, mas com justeza, a realizar as reformas reclamadas pelo estado de nossos costumes.

    E também me perdoará o tom vivo, mas fiel das minhas descrições, excelente mulher que designarei aqui apenas pelo seu harmonioso nome. Sacrificada enquanto mocinha, assim como sua irmã, por um pai ignorante e egoísta, e enclausurada no convento d’Ajuda²³.

    Perdoe-me, Dona Théodora, ou melhor, Maman Dor, como todos a chamavam, e seja abençoada, apesar de sua suscetibilidade um pouco selvagem, pelos cuidados prestados à minha companheira doente e à minha criança recém-nascida.

    Meus pensamentos atravessam com frequência os mares e sobrevoam a Rua do Hospício²⁴ onde o senhor mora, doutor; e também a pequenina casa do Versalhes brasileiro – São Cristóvão – onde o senhor mora com sua velha mãe, Dona Théodora. Nunca poderia esquecer este país, tanto em função das numerosas tribulações, das cruéis decepções, dos sofrimentos inesquecíveis que eu e meus familiares tivemos que suportar, senão graças a vocês, naturezas delicadas e escolhidas, e por causa de minha filha e de sua mãe que aí nasceram.

    Lembrar-me-ei principalmente, pensando no Brasil, do bom acolhimento que recebi, e minha esposa comigo, de Sua Majestade Dom Pedro II, a cada oportunidade que tivemos de encontrá-lo. A lembrança deste acolhimento não se apagará nunca em mim. Ela me impõe além do mais a obrigação, hoje que publico a primeira parte de minhas anotações, de respeitar a verdade dos fatos, de levar em consideração as circunstâncias nas quais foram produzidos, de não imitar, enfim, esses escritores fantasiosos ou morosos que, levados pela imaginação ou pelo mau humor, jogam-se em exagerações que retiram toda autoridade de suas palavras.

    Este dever será cumprido.

    Paris, junho de 1862.

    Capítulo 1

    Aquilo em que se transforma, no Brasil, um homem de letras

    I

    O negro assassino pelo horror do assassinato

    Houve um tempo em que eu era bom, confiante e desinteressado. Nessa época eu alimentava ilusões de todo tipo, relacionadas ao amor, à amizade, à família e ... O que sei ainda?

    Eu acreditava, então, na lealdade da mão que apertava a minha, na sinceridade de uma promessa, feita livremente, na presença de Deus que nos vê e nos escuta, na santidade dos sermões pronunciados, à noite, sobre um túmulo.

    Ingênuo?

    Essa fé ingênua na excelência do belo, do justo, do honesto, me custou um terço do meu patrimônio, e, se formos dizer tudo, essa perda, enorme, no entanto, na minha posição, não pode enfraquecer em mim o sentimento de honestidade, de justeza e de beleza.

    O que você esperava? Há pessoas incorrigíveis, e já me disseram inúmeras vezes que sou uma dessas.

    Minha modesta fortuna, já consideravelmente diminuída, foi de novo reduzida pelo demônio sedutor da juventude, cujas solicitações são tão poderosas, as palavras tão doces e o entusiasmo tão radiante. Esse caprichoso demônio gosta de todas as formas elegantes e coquetes. Ora ele se metamorfoseia em cavalo vivaz e orgulhoso, em baú sabiamente esculpido, em punhal mongol, em machado indígena, em vaso de ágata e de pórfiro, ora ele lhes aparece em salões mobiliados com luxo equivocado, no meio de belas criaturas com sorriso insolente, sob os traços apaixonados da dama de espada; mas mais frequente ainda, ele se transforma em jovem mulher irritante e risonha, em virgem sonhadora e tímida, dependendo do caso.

    Abraçando sua presa embriagada, ele a leva por todas as maravilhas de um sonho delicioso, entre os prazeres mais absorventes da realidade, até o final fatal de suas felicidades sem nome que são a ruína e a desilusão.

    Felizmente para mim, meus olhos se abriram a tempo. Não amaldiçoo esses fantasmas sedutores, com os quais acabava de percorrer várias regiões poéticas; mas eu retirava minha mão que eles apertavam nas suas e me distanciava deles com um suspiro de pesar.

    Vergonha a esses espíritos mesquinhos ou maldosos que ficam felizes em escarrar sobre o objeto de suas antigas adorações! Um resto de pudor seria suficiente para garantir-lhes dessas execuções estúpidas. Uma flor encontrada no fundo de uma gaveta, uma lembrança guardada no fundo de sua consciência, deveria lhes advertir de que nada é tão vil

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