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Lo-fi: música pop em baixa definição
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Lo-fi: música pop em baixa definição
E-book372 páginas4 horas

Lo-fi: música pop em baixa definição

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Sobre este e-book

Em LO-FI: música pop em baixa definição, Marcelo B. Conter nos propõe outras "sonoridades" de pesquisa para a investigação dos fenômenos que se friccionam entre a comunicação e a cultura/música pop, tanto pelo modo como organiza os conceitos quanto nos modos como suas imagens sonoras são apresentadas ao longo dos capítulos. Ao ressignificar a ideia de lo-fi para além de um uso de equipamentos e instrumentos musicais deteriorados ou obsoletos, para construir ao redor dele um conjunto de práticas, linguagens, políticas, estéticas e discursos, Conter convida o leitor a percorrer um mapa tão inusitado quanto didático, colocando sua máquina abstrata LO-FI a apontar "o processo de variação contínua pelo qual a música pop é arrebatada pela baixa definição sonora", como ele mesmo diz. Àquele interessado em encontrar propostas de articulação entre conceitos tratados contemporaneamente nos estudos de Comunicação voltados para a investigação das materialidades, o autor oferece harmonizações consistentes. Para o entusiasmado pelos músicos, bandas, instrumentos, canções, aparelhagens, gravadoras e indústrias fonográficas, Conter apresenta uma escavação preciosa de histórias que revelam camadas do lo-fi para muito além das oposições entre o underground e o mainstream. Mais que um produto final de pesquisa, o livro torna-se um convite permanente para o leitor inventar e reinventar caminhos para "atacar" suas páginas (tal qual o "ataque" do guitarrista nas cordas de seu instrumento, imagem sonora muito Conteriana), produzindo seus próprios mapas e sonoridades sobre o lo-fi.



Gustavo Daudt Fischer
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de ago. de 2017
ISBN9788547302313
Lo-fi: música pop em baixa definição

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    Pré-visualização do livro

    Lo-fi - Marcelo Bergamin Conter

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição – Copyright© 2016 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO

    AGRADECIMENTOS

    Acima de tudo... opa, melhor dizendo, dentro de tudo, no plano de imanência, agradeço todos os membros do Núcleo de Pesquisa Semiótica Crítica – NPESC. Sem o olhar crítico, as leituras sugeridas, as recomendações de artistas e bandas que poderiam ser interessantes para análise e os incontáveis encontros no Bar da Tia Vilma, eu poderia não ter chegado aqui: Bruno Leites, Cássio Lucas, Felipe Diniz, Gabriel Nonino, Guilheme da Luz, Jamer Mello, João Flores da Cunha, Lennon Macedo, Luis Felipe Abreu, Luiza Müller, Marcio Telles, Suelem Lopes e o coordenador do grupo e orientador deste trabalho, Alexandre Rocha da Silva, que acompanha e tutela minhas aventuras acadêmicas desde 2004, ainda que tentando, desde então, me fazer gostar de MPB.

    À CAPES, cujo apoio foi fundamental para que eu pudesse me dedicar exclusivamente a esta pesquisa.

    Aos meus colegas da Musical Amizade: Lucas Diniz, Patrícia Spier e Gabriel Saikoski; e da The Gentrificators: André Araujo, Demétrio Pereira, Guilherme Maschke e Paulo H. Lange. Tocar com vocês foi e tem sido fantástico tanto pela diversão quanto pelos aprendizados que transferi para o presente trabalho.

    Aquele abraço também para as pessoas que participaram de momentos específicos desta caminhada: Fabrício Silveira, Nísia Martins do Rosário, Ana Maria Ochoa Gautier e Gustavo Fischer, membros da banca de defesa; Leandro Miguel Souza, o dicionário ambulante de música indie; Shannon Garland, pela receptividade em Nova Iorque; meus orientandos de TCC, Camila Daniel, Daniela Fischer Fonseca e Miguel Soll; os alunos das disciplinas Seminário de Audiovisual 2012/1 e Seminário de Comunicação e Tecnologia 2015/1; e os colegas da IASPM e do GP Comunicação, Música e Entretenimento da Intercom.

    Agradeço a paciência da minha amada Giordana Besen e seus pais, Leonila e Francisco; e, claro, o apoio e carinho dos meus pais, Sandra e Bruno. Não bater ponto e estudar em casa é legal, mas não temos horário para nada. Obrigado pela compreensão (escrevo isto às duas horas da manhã, vejam só).

    Vale, por fim, agradecer encarecidamente alguns artistas cuja obra eu estudei na tese. Alguns eu conheci pessoalmente, outros eu agradeço mesmo assim: Tony, obrigado por ter construído uma gatorra pra mim; Lee Ranaldo, obrigado pela atenção e pelas palavras pertinentes sobre lo-fi (e desculpa, mas não deu tempo/espaço para analisar o Sebadoh); Mario Arruda, tamo junto, vamo dale!; Robert Pollard, obrigado pela dose dupla de tequila; Daniel Johnston, o amor vai te encontrar no final; Kevin Shields e J Mascis, acho que tenho tinnitus; Lou Reed, Yoñlu, Kurt Cobain e Wesley Willis, espero que estejam bem onde estiverem; Avassaladores, Hélio dos Passos e Ednaldo Pereira, vocês são a expressão dessa nação; Polly Jean Harvey, Kim Deal, Lucia Luft, Marli, Sthefany Absoluta, Kim Gordon, Kathleen Hanna, Helen, Dot e Betty Wiggin, fiquei devendo para as meninas, mas só queria declarar que aprendi e sigo aprendendo muito com vocês; reverendo Calvin Johnson, por favor me abençoe; Jandek, lança minha banda no teu selo?

    O que me parece é que o Meu Primeiro Gradiente está sentado na calçada depois de espalhar cópias de seu Curriculum Vitae pela cidade, 20 anos depois de parar de ser usado. Ele ja não se empolga com a ideia de registrar os primeiros impulsos de grandeza musical do pequeno Marcelo, que agora usa o Ableton pra mixar seus sons, e há tempos trocou a fita cassete pelos CDs e agora o Meu Primeiro Gradiente não sabe mais de onde vem a música, não vê mais emprego de si mesmo, agora que a música já não precisa de matéria e contato físico. Depois de fugir da caixa de brinquedos guardados e lutar contra o alcoolismo, após deixar o curso de comunicação em completa desilusão depois de um congresso em Salvador em que discutia o vaporwave como futuro da mídia e arte, ele busca agora na pedagogia uma forma de cumprir o papel inato de promover o primeiro encontro das possibilidades musicais do meio analógico com as crianças, doando a si próprio para o acervo brinquedoteca de creches e escolas primárias. Mas aparentemente não existe verba pra repor as pilhas. Ele senta novamente no meio fio, em um processo eutanásico de nostalgia, pressionando em síncope os botões de rewind e play, encontrando no inicio da fita o que pode-se descrever como as primeiras sílabas do pequeno Marcelo teorizando precocemente que Flusser’s black box is everything around us ou alguns anos mais tarde, quando aprendia os primeiros acordes de de doo doo doo de da da da do The Police. Deixemos que esteja.

    Paulo H. Lange, autor do desenho da capa do presente livro, descrevendo sua própria criação.

    Quando a máquina devém planetária ou cósmica,

    os agenciamentos têm uma tendência cada vez maior

    a se miniaturizar e a devir microagenciamentos.

    Gilles Deleuze e Félix Guattari

    PREFÁCIO

    Gravações caseiras. Políticas da intimidade na música pop

    O trabalho de Marcelo B. Conter, transformado agora em livro, se destaca, inicialmente, pela estrutura que adota. Organiza-se em duas grandes partes: a primeira, de caráter teórico-conceitual; a segunda, de caráter analítico-aplicado. Há, assim, uma delicada simetria no estudo, com certas irregularidades controladas, certos blocos de tensão, colocados em relações de complementaridade e de ampliação de algumas linhas investigativas consideradas mais ricas e atraentes.

    Agrada-me, por exemplo, a abrangência do universo temático e a diversidade dos casos incluídos – que vão de Daniel Johnston e Tony da Gatorra a Metallica e My Bloody Valentine, dentre tantos outros artistas, mais ou menos conhecidos –, dispostos numa rede, num sistema de desterritorializações e reterritorializações. Instala-se, assim, uma compreensão político-topográfica das irregularidades e das variações da música pop contemporânea. Além disso, mantém-se, de fato, forte aproximação à fonografia – a fonografia como foco efetivamente priorizado.

    Há duas grandes preocupações de fundo, que são também estratégias de regulação permanente da questão central: 1º) esforços continuados para evitar o determinismo tecnológico, muito embora possamos nos questionar, ao final da leitura, se foi realmente evitado ou não, se foi completamente evitado ou não, ou mesmo se, neste caso, dadas esta amostragem e esta problematização específicas, algum nível sutil de determinismo tecnológico não seria aceitável e até mesmo intrínseco à discussão; 2º) existem ainda esforços sistemáticos para evitar uma narrativa historiográfica linear sobre o lo-fi, apesar de mencionar, à certa altura, algo como um primeiro estágio do lo-fi, dando-nos a entender que foi capturado, num breve momento – naquele rápido instante, ao menos –, por uma narrativa linearizante, historicista e cronológica mais convencional. Um lapso, um pequeno deslize, sem dúvida, mas que não abala em nada a vigilância auto-crítica e auto-consciente que atravessa todo o estudo e que, ao invés de comprometer, só aponta a dimensão do desafio e dos riscos assumidos.

    Como esperado num estudo de fôlego, há ótima lapidação conceitual em torno do termo que dá título ao livro. O lo-fi aparece aqui como uma definição relacional. É algo que se define no interior do sistema de oposições em que é apanhado. Em alguns momentos, revela-se um fenômeno determinado também por práticas de escuta. Mais do que tudo, define-se composicionalmente, num circuito que vai da criação à produção, à impressão fonográfica, à circulação e ao consumo concretos da música pop. O lo-fi é apresentado também como metalinguagem incorporada, ora como produto de um pacto de suspensão da descrença, ora como adensamento da ilusão da representação sonora. Em muitas dessas vias, que variam ao longo do tempo (e ao longo do próprio texto da investigação), o próprio conceito de representação vai se revelando, às vezes, insuficiente, algo inapropriado.

    Busca-se, enfim, uma definição sempre positiva e multifatorial de lo-fi, ganhando corpo numa cadeia (ou num envelopamento progressivo) de diversos dispositivos midiáticos, diversas técnicas e diversas acoplagens homem-máquina (ou diversas acoplagens música-sociedade), evitando-se, sempre, importa salientar, o determinismo tecnológico, o essencialismo, as valorações do senso comum e os juízos da crítica musical especializada, que trabalha(m) por simplismos, reduções e convenções de toda ordem.

    Méritos, como vemos, não faltam. Mas há mais.

    O efeito Nirvana

    A antiga banda de Kurt Cobain é uma espécie de personagem central, aparecendo ao início, deflagrando a problematização e retornando em várias outras partes, ao longo de todo o estudo. Seria um exemplo típico? Trata-se de uma alegoria histórica? Um demarcador temporal? Certamente, não é um mito fundador, embora seja um ótimo emblema, uma ótima porta de entrada para o debate. Sendo assim, pareceu-me importante ilustrar aqui o contexto em que o Nirvana ocorre e ganha sentido. Afinal, o grupo transformou-se numa espécie de amarra narrativa, um elemento de costura, um caso-síntese do livro.

    Vejamos. Como lembra Víctor Lenore¹, os anos 1990 iniciam com a Queda do Muro de Berlim, em 1989, e terminam com as revoltas de Seattle contra o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. À época, falava-se em fim da História. Os partidos socialistas europeus adotavam o credo neoliberal, diz Lenore. No campo da cultura, um livro que fez muito sucesso intitulava-se Nação Prozac² (Prozac Nation, 1994 [2003, na edição portuguesa]), autobiografia de uma jovem norte-americana chamada Elizabeth Wurtzel. Um livro cujo subtítulo é auto-explicativo e claro demais: Jovem e deprimida na América.

    No panorama da música pop, Nirvana e Sonic Youth eram as bandas mais comentadas. Loser, de Beck Hansen, e Hurt, de Trent Reznor, foram, seguramente, algumas das canções mais ouvidas e mais amadas do período. Em síntese, se é que se pode sintetizar assim uma década inteira, foi um momento histórico que acentuou um certo niilismo cool³. Um certo ar melancólico alastrou-se como moda, marca e expectativa de final de milênio. E nesse niilismo cool, que se estampa com facilidade no rosto maquiado, quase choroso, de Kurt Cobain, restam traços de um individualismo egóico e de um certo desengajamento político. Dois signos indiscutíveis do tempo.

    As raízes do hipsterismo, que se tornou hoje uma espécie de dominação cultural⁴, também foram plantadas na década de 1990: é a releitura estetizada dos anos 1970, que passa a ser feita nos anos 1990 e que se estende e ganha maior visibilidade, ganha contornos mais nítidos, bem como maior popularidade subcultural, a partir dos anos 2000. Em poucas linhas, este é o contexto histórico.

    E é neste cenário – sob o efeito Nirvana, conforme a feliz expressão de Víctor Lenore – que são encontrados, em ebulição e emergência, através dessas gravações de baixa qualidade, através desses registros toscos e amadores, novas formas de reencantamento do mundo, um novo processo de fetichização da audição, novos exercícios da intimidade e da espiritualidade, uma nova mística – em termos utilizados aqui mesmo, na voz desassombrada de Marcelo B. Conter.

    Estes termos todos, ditos acima, são tremendamente fortes (reencantamento, fetiche, intimidade, espiritualidade e mística – vejam só!). Assim, estas rubricas ficam pedindo ampliação, ficam pedindo argumentações teóricas de maior poder explicativo e maior precisão nominativa. Queremos voltar a elas, ardentemente. São refrões. São mantras que irão continuar ressoando em nossas cabeças. Não são debates fáceis nem são usuais no atual cenário de estudos sobre música pop no Brasil. O leitor tem em mãos, portanto, um livro com a coragem e a plena capacidade de pautá-los, dar-lhes um primeiro (e já muito sugestivo, promissor) acercamento.

    Gostaria de deixar, em acréscimo, três provocações para debates futuros. São tópicos enfrentados ao longo do livro, mais ou menos diretamente. São assuntos que me intrigaram muitíssimo e que foram (são e serão, sempre) suscitados, de um modo ou de outro, pelo fantasma de Kurt Cobain.

    1. Intimidade. Gosto muito da idéia do lo-fi como registro íntimo, como proximidade com o artista, como presença física, também como rascunho, caderno de notas, como obra em processo, não acabada, num estágio de abertura compositiva, tal como seria perfeitamente explorado na perspectiva da crítica genética, por exemplo. É como se fossem os desenhos feitos, distraidamente, sem propósito objetivo reconhecível, no caderno de aula, por um aluno adolescente, durante uma exposição escolar enfadonha, uma palestra entediante. Parece-me que alguma coisa da natureza mesma da cultura pop reside nisto: neste gesto de fuga da chatice, neste desinteresse, neste estágio de dupla (ou tripla, complexíssima) transição: a transição de uma adolescência, a transição de uma obra inacabada, a passagem entre engajamento real e escapismo. Como se aí fosse possível flagrar alguma autenticidade inalcançável, em vias de perder-se. É muito sintomática, consequentemente, a ambiência do quarto de dormir – a música lo-fi como música feita, muitas vezes, no interior seguro do espaço de repouso de alguém. Fala-se, por exemplo, em bedroom music.

    No contraponto vital ao pop grandiloquente e espaçoso, imperial e super-produzido, é ótimo, portanto, ouvir um pouco mais sobre as relações destes registros fonográficos precários com a intimidade, com a presença física, a desafinação, o erro e o sussurro quase inaudível do artista, acionando-se um realismo por força bruta, por desleixo e apagamento do arremate na produção. Único resíduo possível de realidade e autenticidade. Será? Talvez. Pelo menos é a aposta feita no documentário Cobain: Montage of Heck, lançado em 2015⁵.

    2. Espiritualidade. A questão da espiritualidade, na verdade, poderia ser rebatizada ou traduzida agora, mais precisamente, como "questão psi". Falaríamos, portanto, em saúde mental. O teórico da mídia alemão Friedrich Kittler⁶ relaciona a fonografia (ou melhor: o gramofone) à categoria lacaniana do real. Para ele, é como se os documentos de áudio produzissem uma espécie de choque de realidade, um banho de verdade. Por um lado, estas gravações produzem presença, assim como produzem realidade e desmascaramento da (ir)realidade, num dos entendimentos que se pode ter sobre o lo-fi. Chama a atenção, no entanto, o quanto estas práticas sônicas estão relacionadas a artistas e músicos com problemas mentais, com dificuldade de lidar, de modo realista, com o constrangimento bruto (e a interdição simbólica) do real histórico. Para citar alguns: Daniel Johnston, obviamente presente, mas também Syd Barret e Plato Dvorak, que, aliás, não foram aqui citados. Por um lado, então temos: letras infantis, preguiça, realidade subjetivamente alterada, busca da paz espiritual; por outro lado: gravações mal feitas, vozes mal gravadas, acordes dissonantes, música pop de gaveta que é desengavetada, em busca de purificação e reconciliação espiritual. Este foi um dos pontos que mais me impressionou na investigação. Como entender, midiaticamente, estes nexos? Como desatá-los? O espírito (e a desordem mental) de Cobain, poderia(m) aqui ser invocado(s), outra vez?

    3. Política. É muito instigante ver também a música pop sendo apreendida através da obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Numa passagem debatida por Conter, tais autores falam sobre o fascismo potencial da música.⁷ Gostaria de inserir então, a partir deles, a questão da política da (e na) música pop: o lo-fi entendido como uma espécie de ideologia política, como um condicionante de atuação no campo da política cultural. Muitos desdobramentos, aqui, poderiam ocorrer⁸. Primeiro, a possibilidade de pensar o pop sem o star system. Segundo, a possibilidade de pensar o pop como amadorismo, enfatizando-se o poder do diletante, a profissão do amador. Terceiro, a possibilidade de pensar o papel do produtor de música pop como autor de música pop (vide a atuação de Butch Vig junto ao Nirvana, George Martin junto aos Beatles, o grande Steve Albini). Quarto, a possibilidade de discutir a auto-publicação, não apenas como recurso de inserção parcial no mercado fonográfico mas como demarcação ideológica avant la lettre, reafirmação particularizada do velho ethos Do it yourself.

    Há ainda a possibilidade igualmente instigante de entendermos o lo-fi como política de gênero, o lo-fi como o feminino inscrito no rock. Segundo depoimento de Kathleen Hanna, vocalista da banda Bikini Kill, haveria um inegável acento queer em Kurt Cobain. Mas quem é este sujeito que atua politicamente por reclusão introspectiva, que faz política no quarto de dormir? E que política é esta, exatamente? Uma atitude de alienação ativa (?), que estaria se expressando nas gravações lo-fi?

    Muito pessoalmente, todos estes tópicos me remetem a um conhecido texto de Walter Benjamin sobre o autor como produtor⁹. Lá, sustenta-se que não há conteúdo revolucionário sem forma revolucionária, que o acesso às condições produtivas, por si só, não garantiria nada se não viesse acompanhado de formas estéticas correlatas, efetivamente transformadoras, que implicassem uma reinvenção filosófica radical das forças de estruturação social. Os agenciamentos de baixa definição, iluminados aqui por Marcelo B. Conter, deslocam essas forças, confundem-se com elas, abrem espaços, induzem ao movimento crítico-recursivo da música pop. É muito importante (e não é fácil) saber ouvi-las. Um esforço como este, portanto, é altamente louvável.

    De resto, vale assegurar que LO-FI. Música pop em baixa definição é como uma caixa de bombons, repleta de doces (e) surpresas. Que o leitor possa então se deliciar. Que possa lambuzar-se, completamente. Sem dieta, sem culpa e sem moderação.

    Fabrício Silveira

    Doutor em Comunicação

    PPG em Ciências da Comunicação – Unisinos, RS

    ADVERTÊNCIA

    Há um glossário de termos técnicos no final do livro. A primeira aparição de cada um desses termos no texto é sinalizada com um asterisco.

    Sumário

    INPUT

    Por um registro da intimidade do autor

    INTRODUÇÃO

    PARTE I

    CONCEITUANDO O LO-FI

    1 - MATERIALIDADES DO LO-FI

    1.1 Materialidades e meios

    1.2 Materialidades e aparelhos

    1.3 O lo-fi como sistema modelizante

    1.4 Delimitando os conceitos de lo-fi e de baixa definição

    1.4.1 Fidelidade

    1.4.2 Resolução

    1.4.3 Ruído

    1.4.4 Definição

    1.4.5 Baixa definição, LO-FI e lo-fi

    2 - IMAGENS SONORAS LO-FI

    2.1 A imagem em Bergson

    2.2 Desdiscretizando a imagem sonora

    2.3 Reconhecendo imagens sonoras

    3 - AGENCIAMENTOS DE BAIXA DEFINIÇÃO

    3.1 Territórios de significação

    3.2 Agenciamentos

    3.3 A máquina abstrata LO-FI

    PARTE II

    PLATÔS DE BAIXA DEFINIÇÃO

    4 - RITORNELOS TECNOLÓGICOS DA AUTENTICIDADE

    5 - MAQUINIZAÇÕES DO AMADORISMO

    6 - EXÍLIOS CASEIROS E O REENCANTAMENTO DA MÚSICA POP

    7 - IMAGENS SONORAS DA VIOLÊNCIA

    8 - RESISTÊNCIA E DEVIR SUCATA DAS CAIXAS PRETAS MUSICAIS

    9 - PICOS (DE DESTERRITORIALIZAÇÃO) DE INTENSIDADE SONORA

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Descrição do diagrama da máquina abstrata lo-fi

    OUTPUT

    Pontas de destErritorialização do livro

    GLOSSÁRIO

    REFERÊNCIAS

    INPUT

    POR UM REGISTRO DA INTIMIDADE DO AUTOR

    Minha relação com a música pop, como muitos, é tão antiga quanto as primeiras memórias conscientes da minha infância. Mas o ponto de virada, o momento em que ela passou a ser um objeto de investigação, se deu por volta do ano 2000 quando, ainda no ensino médio, gravei algumas canções da minha banda em um programa de edição de áudio, contando apenas com um microfone bem precário para tal propósito.

    Desde então, apesar da qualidade inferior se comparado com os resultados que poderia obter em estúdios profissionais, os registros caseiros e amadores me fascinavam. Além do conforto do meu quarto e de não precisar me preocupar com aluguel de horas de estúdio, havia algo de singular naqueles registros. Os ditos ruídos (esse termo é problematizado pelo presente estudo) que ali persistiam – som* do condicionador de ar, pigarros, palavrões sussurrados acidentalmente ao errar uma passagem, guitarras desafinadas e mal reguladas, o chiado da rede elétrica vazando dos amplificadores – criavam um registro da intimidade que se apresentava como um novo modo de se pensar e de se fazer música pop, mesmo que essas canções permanecessem na obscuridade dos meus discos rígidos.

    À época, enfrentando os duros 15 a 18 anos de vida, as problemáticas que os registros de baixa definição apresentavam para a linguagem, estética, política e cultura da música pop me era pouco consciente. Mas, mais tarde, de 2006 a 2010, já na graduação e com uma banda com uma proposta estética bem mais complexa, a Musical Amizade (não se deixe enganar pelo nome auto-irônico), a gravação caseira passou a ser nosso modus operandi para compor canções diretamente nos softwares de edição de áudio. Nele, rascunhos, riffs* de guitarra mal aproveitados, versos soltos, linhas de baixo e melodias sintetizadas eram radicalmente remixadas, e assim desconstruíamos (inspirados na obra do filósofo francês Jaques Derrida) nossas próprias criações. Certas canções levaram meses para ficar prontas, e isso ocorria principalmente devido ao fato de que aprendíamos, intuitivamente, a compor e recompor em um software que mal sabíamos como funcionava.

    Mais tarde, eu publiquei em livro minha pesquisa de mestrado, que tratou de vídeos musicais amadores publicados no YouTube, fiquei curioso a respeito de um detalhe que eu não podia responder naquela pesquisa. Apesar do aumento da banda larga, o advento da televisão HD e celulares com retina display, a vanguarda estética que tomava forma no YouTube remixava vídeos com uma resolução muito baixa, evidenciando ao espectador os blocos de pixels gerados pela compactação extrema do vídeo e do áudio.

    Do desafio de compreender porque tais imagens persistiam mesmo com os avanços tecnológicos surgiu meu projeto de tese de doutorado, em 2011. Logo no primeiro ano de pesquisa, em 2012, a proposta de estudar isso em várias plataformas virou uma nota de rodapé. Percebi que isso seria muito trabalhoso, pois só no âmbito da fonografia já haveria muito a ser estudado.

    Comecei abordando o momento da história da fonografia em que a baixa definição foi apropriada conscientemente, logo após o advento da música punk, mais ou menos a partir de 1978, com o que se convencionou chamar lo-fi¹⁰. Naquela época, o lo-fi, embora fosse comumente compreendido como um gênero musical*, tratava-se antes de tudo de uma prática artística, na qual o compositor participava de todos os processos até que sua música chegasse ao ouvinte: ele mesmo grava, mixa, faz as cópias em cassete, desenha as capas e distribui. Tudo isso envolve métodos precários, por não contar com equipamentos, estúdios e engenheiros de som profissionais. Havia um termo para designar o tipo de produção musical que eu fazia com as minhas bandas e eu nem sabia.

    Parecia-me, de saída, que o caminho do estudo seria o de observar as canções desses artistas lo-fi, reconhecendo nelas as sonoridades que as caracterizavam como tal (o chiado do cassete, o ruído da energia elétrica, o espectro sonoro reduzido...) e separar em categorias nas análises. Mas, na medida em que fui investigando, percebi uma enorme dificuldade em determinar com precisão o que significava, afinal, lo-fi.

    Acontece que, para além da música caseira do período 1978-1985, músicos, críticos musicais e até acadêmicos empregam o termo para se referir a coisas muito diferentes, como práticas artísticas, métodos de gravação, mídias de baixa fidelidade, baixa resolução ou baixa definição e até o aproximando à noção de ruído, tudo isso em geral opondo-o à noção de hi-fi, que, por sua vez, também se refere as mais diversas coisas. Por isso, na medida em que as investigações seguiam, percebemos que seria necessário desenvolver um conceito de lo-fi que fosse próprio deste estudo. Seria, também, infrutífero centrar a análise apenas na produção amadora e independente.

    Para além da emergência do lo-fi como um

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