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Convergências Audiovisuais: Linguagens e Dispositivos
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E-book591 páginas8 horas

Convergências Audiovisuais: Linguagens e Dispositivos

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Sobre este e-book

O livro Convergências audiovisuais: linguagens e dispositivos enfoca o caráter multifacetado do audiovisual por meio de uma coletânea de textos que exploram essa variedade. Seja no cinema, na televisão ou mesmo em projeções mapeadas, o audiovisual é abordado neste livro a partir de transversalidades que buscam perspectivas alternativas dos objetos analisados, que se refletem na variedade de temas levantados.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de jun. de 2020
ISBN9786555231243
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    Pré-visualização do livro

    Convergências Audiovisuais - Felipe de Castro Muanis

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO

    Para Benjamin.

    AGRADECIMENTOS

    Este livro não seria possível sem a participação de pessoas que, seja pela parceria e pelo apoio ao longo do processo, sejam pelas contribuições, sejam pelos afetos, foram fundamentais para o desenvolvimento do trabalho. Várias das discussões aqui apresentadas foram gestadas e amadurecidas ao longo do tempo junto aos professores, alunos e colegas de algumas universidades pelas quais passei, como a PUC-Rio, a UFMG, a Bauhaus-Universität Weimar, a Universität Paderborn e a Ruhr-Universität Bochum – essas três na Alemanha –, a UFF, a UFJF e a UFC. Meu agradecimento a todos. Não poderia deixar de agradecer aos colegas frequentes nos debates e discussões que são responsáveis direta ou indiretamente por esta produção: a professora Vera Lúcia Follain de Figueiredo, o professor Oliver Fahle, a professora Patrícia Moran Fernandes, a Rosane Svartman, a Martin Schlesinger, a professora Anabela Oliveira, a todos os colegas do GT Cultura das Mídias da Compós, que ao longo do tempo vêm colaborando com ideias, críticas e ensinamentos que permitem o avanço e desenvolvimento deste trabalho. Importante destacar também os agradecimentos aos alunos, professores e pesquisadores do Entelas, tanto em seu primeiro momento na UFF quanto agora em seu atual momento na UFJF, onde encontrou na parceria com o professor Christian Pelegrini e na adesão aos alunos sua solidificação como grupo de pesquisa. É necessário ainda agradecer ao Bruno Porto, que fez a bela capa deste livro, e ao Henrique Moraes, pelas revisões de traduções. Por fim, e não menos importante, um agradecimento especial à família, sempre presente, Raphaella, Catarina, Benjamin, Maria, Daniel e Regina.

    Gostaria também de registrar uma homenagem especial aos saudosos amigos e professores Claudio Mello e Renato Cordeiro Gomes, que acompanharam os anos deste percurso com apoio e afeto.

    Prefácio

    Pelas tramas audiovisuais

    Em sua origem, a palavra prefácio inaugura um discurso e coloca-se como ação de falar ao princípio, antes do que será efetivamente proferido. O que é dito antes, assim, inscreve-se como um ato e um gesto, um fazer que prepara a entrada em um território previamente delimitado. Para os antigos, um espaço sagrado e ritualístico, anunciado com a expressão praefatio sacrorum; para nós o ritual não menos sagrado da escrita de um livro, o que nos traz ao desafio de apresentá-lo antes de ser lido por outros. Essa palavra antecipada, no entanto, aponta para uma trajetória ainda anterior, em inúmeros momentos de diálogo e convívio com o autor, destacando-se o Grupo de Trabalho Cultura das Mídias, da Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós), espaço onde conheci Felipe Muanis. Pelos caminhos da comunicação e das mídias, especialmente cinema, televisão e internet, mas também em suas interfaces com as artes e as tecnologias, o autor leva-nos às intricadas tramas dos discursos audiovisuais contemporâneas, apresentando uma variedade de conceitos e métodos para desvendar sua diversidade em termos formais, estéticos, narrativos e expressivos.

    A linguagem audiovisual é o terreno fértil para essa cartografia, descrita de modo preciso na apresentação que remete aos artigos reunidos na edição, em que se destaca sua preocupação constante com o audiovisual em suas interfaces com outras mídias, tornando porosas fronteiras muitas vezes tidas como rígidas e rompendo, assim, simplificações comuns e usuais dicotomias. Nas palavras de Muanis, os temas tratados abordam a imagem, a democratização da televisão no Brasil, o cinema poético, as modalidades contemporâneas da produção audiovisual, o documentário, a memória em diferentes gêneros e formatos. Nos interstícios de presenças e ausências, vozes e silêncios, reiterações e apagamentos, a argumentação proposta visa tanto o que as imagens evocam, quanto o que sublimam, como lemos na apresentação ao livro, articulando de maneira complexa o debate sobre o audiovisual.

    A maneira como esses caminhos são tracejados em Convergências audiovisuais: linguagens e dispositivos nos conduz a um reencontro com um artista multimídia, citado em um dos capítulos, que parece realizar uma síntese das ideias nele tratadas: o cineasta britânico Peter Greenaway, que presentificou em seus filmes – mas também em obras sonoras, visuais, teatrais, curatoriais – aquilo que seria materializado pelas mídias digitais, especialmente on-line, em suas múltiplas manifestações. Já em meados dos anos 2000 – e pelo menos duas décadas antes em suas obras – o diretor reconhecia as transformações vividas no campo cinematográfico, causadas pelas determinantes das tecnologias sobre as práticas audiovisuais. Em seus filmes, Greenaway foi pioneiro na utilização de multimídia, interatividade e não-linearidade, três aspectos centrais do que viriam a ser as mídias digitais. Convocando o espectador por meio de um contrato comunicacional que convocava sua participação e dependia de sua adesão, o diretor transformou a linguagem do cinema para anos depois se voltar para outras artes (instalações, óperas, exposições) por considerar que o cinema tradicional estaria em desaparição.

    Em entrevista concedida em 2007, Greenaway decretara a morte do cinema desde os anos 1980 (com o advento do controle remoto), década em que realizou grande parte de suas obras audiovisuais:

    Estou convicto que, por uma série de razões – econômicas, sociais e culturais – o cinema está em uma fase de declínio. Nas décadas de 1940 e 1950, o cinema era visto como a forma definitiva de entretenimento do proletariado. Esqueçamos o cinema de arte intelectualizado. [...] Agora, no século XXI, há toda uma série de alternativas de entretenimento baratas relacionadas ao cinema. E, muitas delas, podem oferecer mais em termos de empolgação do que o próprio cinema.

    Entretanto, ao anunciar a morte do cinema, o diretor nos lembra que a morte é sempre sucedida por uma renovação: se o cinema está morto, viva o cinema! É assim que, apesar da queda de bilheteria e de certa monotonia em produções voltadas, prioritariamente, para público jovem por meio de franquias previsíveis, Greenaway acredita na reinvenção do cinema:

    O cinema como um meio de comunicação de ideias foi à falência. O cinema contemporâneo é tedioso e irrelevante. Tudo ficou previsível. Toda vez que se vai ao cinema, basta assistir dez minutos de um filme que se saberá o que acontecerá depois. A mente humana precisa de novidade. Por isso, nós precisamos, desesperadamente, reinventar o cinema.

    Pessimista em relação ao cinema narrativo clássico – que, em suas palavras, não passa de textos literários ilustrados –, Greenaway via nas tecnologias digitais um modo de emancipação e apropriação do cinema, para que este assumisse sua vocação primeira – tornar-se de fato um cinema de imagens:

    Embora eu faça questão de defender a tese provocadora de que o cinema está morto, também defendo a ideia de que a cultura da tela não está morta. [...] A tela deve continuar, apesar de parecer estranha aquela multidão sentada em uma sala escura por cerca de duas horas para ver um filme. A tela se mudou para uma série de novos ambientes: shoppings, aviões, laptops etc. Tenho certeza que todos têm um celular e um relógio do pulso. Estas são as telas do futuro.

    É na radicalidade do que chama um cinema experimental que o diretor se situa, apoiado pelas tecnologias digitais e por uma forte convicção de que uma nova cena audiovisual está surgindo, fazendo com que sua própria produção passe a ser cada vez mais atravessada por outras formas artísticas ou audiovisuais:

    Eu não quis ser um diretor de cinema e não me vejo como um, agora. Eu comecei como pintor. Eu ainda pinto, mas me permito fazer isso em vários lugares pela manufatura das imagens em associação às ideias. Cada um desses filmes é uma discussão em termos ficcionais de uma ideia.

    Mais de dez anos depois, as transformações e desafios apontados por Greenaway se expandiram para outros campos de produção artística; mais do que uma cultura midiática, o que vemos é a consolidação de uma cultura audiovisual que nos envolve e engloba os mais distintos campos de conhecimento, entre eles o cinema, somado à televisão, ao vídeo, ao áudio e às mídias digitais – por assinatura, streaming ou aplicativos. Se o cinema se tornou repetitivo, como afirmara o diretor, atualmente as séries televisivas consolidaram seu espaço, com produções sofisticadas, autores e atores renomados, premiações de destaque, inovações narrativas e estilísticas, aspectos éticos e estéticos, numa espécie de retorno à televisão por meio de plataformas digitais. Ainda que, em um país como o Brasil, a televisão aberta e massiva ocupe um papel importante, novos modos de produção e recepção, circulação e consumo, distribuição e usos, apropriações e ressignificações nos fazem indagar, uma vez mais: afinal, o que querem as imagens?

    Responder a essa questão talvez seja o maior desafio enfrentado por Felipe Muanis em seu livro, que não apenas pelas possíveis respostas, mas, sobretudo, pelas perguntas colocadas, representa uma grande contribuição para a reflexão sobre os objetos empíricos privilegiados nas análises e para uma problematização singular acerca do estatuto da imagem na contemporaneidade. Entre visualidades e visibilidades, o autor delineia um modo de se fazer a crítica de obras audiovisuais presentes nas mídias e propõe uma metodologia para sua interpretação, como lemos na apresentação:

    Cada vez mais torna-se difícil discutir audiovisual e seus objetos isoladamente, e o eixo condutor da pesquisa é justamente um foco nesses entrelugares, nos espaços imprecisos em que se mesclam e que devem ser considerados para uma definição do campo audiovisual contemporâneo em suas mais diversas manifestações, seja do cinema para a televisão, passando pela literatura, pelas videoinstalações e projeções mapeadas.

    Em seus 19 capítulos, portanto, o livro nos propõe um jogo de revelações e novos encobrimentos que, não casualmente, encerra-se com textos sobre documentários em formatos híbridos e com uma provocação a respeito das desestabilizações provocadas nesse gênero audiovisual que, cada vez mais, tem suas fronteiras borradas com outros gêneros. De modo expandido, poderíamos afirmar que é o próprio campo da produção audiovisual que se encontra em movimento, desestabilizando antigas certezas e promovendo reflexões originais a seu respeito, como as que se encontram no livro agora publicado.

    É preciso finalmente recordar, lembrando com o coração, que esse prefácio buscava outro destino: a escrita pulsante e precisa de Renato Cordeiro Gomes, tantas vezes evocado neste livro e certamente um de seus inspiradores. A ele caberia anunciar os textos aqui entrelaçados, se não tivesse nos deixado tão prematuramente, e fazê-los ressoar aos ouvidos dos leitores – ele que tantas vezes, em inúmeros encontros, nos fez refletir sobre a cultura midiática e nos levou a lugares múltiplos. Mesmo sem prefaciá-lo, Renato se faz presente não apenas ao longo do livro, mas também no percurso de seu autor – e de todos que fomos formados por ele – desde os primeiros encontros em que sua voz ressoava, antecipando o que ainda não poderíamos adivinhar. É por isso que nem todas as palavras ditas, antes ou depois, poderiam jamais dar conta do que agora ousamos apenas imaginar – as outras tantas palavras que Renato teria dito –, como os sonhos esquecidos nas ancestrais cavernas de Werner Herzog, porém vividamente gravados em nossa memória, nas raízes profundas que ele em nós plantou.

    Rosana de Lima Soares

    Professora Livre-Docente - ECA/USP

    APRESENTAÇÃO

    Este livro reúne parte de uma produção de textos ao longo dos últimos anos direcionado ao audiovisual em suas múltiplas relações e as quebras de fronteiras com outros meios. Esta produção que ganha aqui uma unidade em livro, não apenas por estar abrigada em um mesmo volume, mas, de fato, pelos textos dialogarem uns com os outros, apontando ao longo do tempo um percurso e uma relação com as mesmas preocupações: o audiovisual, a imagem, uma maior democratização da televisão no Brasil, o cinema poético das imagens, o audiovisual e suas modalidades contemporâneas, o documentário e a memória. Ainda que trabalhando com mídias diferentes, seja o cinema, a televisão ou mesmo a projeção mapeada, mais uma vez a preocupação central é com suas imagens e o que elas representam, mas também o que elas deixam de evidenciar. E é nesse diapasão que se costura não apenas este livro, como a pesquisa que tenho desenvolvido no audiovisual. Interessa-me menos construir igrejas e mais por buscar tanto o que as imagens evocam quanto o que sublimam.

    Em uma primeira parte, a atenção deste livro recai em textos que dialogam com demandas e urgências da televisão, em diálogo direta ou indiretamente com a realidade brasileira do audiovisual. A televisão, desde que foi inventada, passou por transformações na forma e no modo de percepção de seus espectadores. A palavra escrita, desde então, ressentiu-se da maneira como a imagem se popularizou, gerando uma preocupação presente ainda nos dias de hoje, um antagonismo por parte de alguns entre as letras e o audiovisual, mais especificamente a televisão. É importante, então, refletir sobre qual é a inserção da televisão na formação de públicos e se questionar da necessidade do ensino de audiovisual. A questão do conteúdo é sempre discutida, mas passa a ser essencial a transformação do espectador comum, para alguém que possa dissecar as imagens e seus modelos de produção, desse modo tornando-se apto a desconstruir discursos, perceber entrelinhas e identificar claramente os lugares de fala de seus emissores.

    Nessas condições é necessária também uma discussão sobre o conceito de televisão de qualidade que precisa ser relativizado para a televisiografia brasileira. Até que ponto a qualidade é um conceito válido, como ela se apresenta para diferentes televisiografias e públicos? Essa reflexão foi apresentada no colóquio Qu’est-ce qu’une télévision de qualité, organizado pelo Ceisme de François Jost, na Sorbonne Paris III em setembro de 2012. Como uma continuidade desse raciocínio é necessário problematizar também as assimetrias e os desvios da televisão regional no país, presente no capítulo três, tendo como foco as minisséries brasileiras. Saindo da discussão sobre qualidade televisiva, mas indo em direção semelhante, dois textos assumem uma discussão política da televisão no país, o primeiro com foco na decupagem de discursos do telejornalismo da TV Globo sobre o polêmico gesto de um membro do governo quando do desastre do avião da TAM em São Paulo, em 2007. O que a imagem trazida pelo jornal, que gerou a polêmica, revela de sua produção, do seu fazer? O que a sua técnica revela sobre a ética por trás da imagem e do discurso telejornalístico? Tais questionamentos reforçam a discussão, um breve relato sobre a necessidade da TV pública e da regulamentação e complementaridade entre TV estatal, TV pública e TV privada no Brasil, da importância da TV pública, cada vez mais sucateada e deixada de lado pelos últimos governos que não entendem nem a necessidade de uma TV pública para o país como sequer a sua diferença de uma televisão estatal, em um panorama nada animador.

    Pesquisar audiovisual, contudo, não se restringe à televisão, mas também ao cinema, ainda que a tradição dos estudos de cinema o considere à parte, algo que necessite guardar distinções de valor com relação ao audiovisual. As fronteiras fugidias e cada vez mais dispersas se estabelecem no bloco de capítulos seguintes em que proximidades, seja da literatura com a televisão e o cinema ou do cinema com a televisão, surgem representadas neste livro. Três análises fazem a transição para um estudo da imagem televisiva em diferentes objetos da televisão e do cinema, contudo passando por relações diretas ou indiretas entre cinema e literatura. O capítulo seis analisa Carga Pesada, um programa emblemático da televisão brasileira que mistura códigos tanto da tradição literária brasileira quanto do cinema de gêneros do cinema hollywoodiano, bem como da matriz neorrealista do cinema moderno. Em seguida, no capítulo sete, desenvolve-se uma breve discussão sobre a adaptação literária para o cinema, discutindo o filme Castro Alves: retrato falado do poeta (1999), de Sílvio Tendler, introduzindo a conhecida perspectiva de cinema de prosa e de cinema de poesia de Pasolini, que será mais explicitada no capítulo seguinte. Neste se estabelece uma correlação entre os cineastas Luis Buñuel e Pier Paolo Pasolini, buscando entender o que era importante dentro das respectivas vanguardas, seus objetivos, suas relações com público, crítica e sociedade, bem como com o cinema propriamente dito. Pela riqueza da obra dos autores, bem como pela grande variedade de conexões que podem ser feitas a partir dos seus trabalhos, a atenção recai na análise de textos e filmes que evidenciem uma aproximação de ideias, como o estudo de Os Esquecidos (1950) e O Anjo Exterminador (1962), ambos da fase mexicana de Buñuel, e Accattone (1961), Teorema (1968) e Saló, os 120 dias de Sodoma (1975) de Pasolini.

    De certo modo, reside na complementaridade entre o cinema de poesia e o cinema de prosa uma discussão correspondente, ainda que com outra fundamentação teórica na própria televisão. Se os canais exibem programas narrativos, ficcionais ou não, é na análise do extinto canal MTV Brasil por meio da perspectiva teórica de Raymond Williams, que se entende a sua importância e distinção em diálogo frente a outros canais tradicionais, a partir da teoria do fluxo junto às teorias de paleo e neotelevisão. Nesse contexto, seria a MTV, em seu início, a emissora que mais se aproximaria das propostas de fluxo teorizadas, tornando-se uma flow television. No capítulo dez a discussão retorna ao cinema e centraliza-se na proposta de que o raciocínio e a metodologia da montagem não estão restritos ao cinema, algo que Eisenstein percebeu prematuramente. Ainda antes estiveram muito presentes na pintura de El Greco; na música e nos filmes de Peter Greenaway se evidencia essa potencialidade de tais cruzamentos, ressaltando o aspecto da montagem em seus filmes, constituindo uma característica específica de sua imagem e discutindo sua polêmica afirmação da morte do cinema.

    O terceiro texto desse bloco funciona como uma transição entre o cinema e novamente a televisão. A partir de discussões sobre o texto e sua materialidade, apontadas por Roger Chartier, pretende-se indagar sobre como são as relações entre o texto fílmico e a materialidade dos meios que o exibem, seja o cinema ou a televisão, mediante seus respectivos dispositivos. Como as diferenças impostas por novos meios interferem na leitura dos textos cinematográficos? Essa materialidade é retomada nos textos seguintes e por diferentes pontos de contato, para, ao fim, a discussão ser mais uma vez sobre a imagem. Por outro lado, a imagem como suporte e espectatorialidade surge na reflexão sobre a imagem em 3D, que hoje está presente no cotidiano das salas de cinema e de alguns filmes em Blu-Ray.

    O bloco final de textos traz expressões do documentário em diferentes suportes, como o cinema, a televisão, a projeção mapeada e o documentário interativo. Neles o intuito é a análise de alguns produtos que possam expandir os limites do cinema e do documentário para outras experiências. A primeira parte discute conteúdos documentais: no capítulo treze, é por meio da análise do filme Justiça (2002) de Maria Augusta Ramos e Ônibus 174 (2001) de José Padilha que se busca um diálogo entre as relações entre ficção e documentário, em que se percebe o próprio acontecimento dentro do ônibus como um filme, dirigido e encenado por Sandro do Nascimento, protagonista do sequestro. Em seguida, uma breve análise do documentário Menino 23 levanta a necessidade de se buscar e reparar as histórias do genocídio dos negros no Brasil. Os dois textos seguintes trabalham com a discussão da imaterialidade das imagens audiovisuais e sua presença enquanto imagens sintoma e imagens da memória em alguns programas televisivos que tematizaram a queda do World Trade Center no dia 11 de setembro de 2001 e como as pessoas lidam com essas ausências.

    Três textos tratam o documental por um aspecto de sua variedade de meios e dispositivos, o primeiro trazendo uma reflexão sobre a produção do fazer digital que, em certa medida e guardadas as devidas proporções, poderia trazer determinadas possibilidades visuais para o cinema, tributário de um fazer das vanguardas, ainda que não reproduzindo seu espírito utópico. Um exemplo é a discussão que se faz no capítulo dezessete sobre os eventos de projeção mapeada, em que imagens de prédios antigos, algumas vezes em quedas virtuais animadas em computação gráfica, são projetadas e sobrepostas sobre a edificação verdadeira, criando uma série de efeitos espetaculares que dialogam com a própria construção de maneira metaimagética e autorreferente. Para Marshall McLuhan, o meio é a mensagem porque o ambiente é a mensagem. Para Roger Chartier, a materialidade do suporte influencia na percepção do conteúdo, e para Thomas Mitchell a virada imagética do pós-moderno é construída sobre a autorreferencialidade das metaimagens. Com base em conceitos dos três autores, comparam-se três tipos de imagens indissociáveis dos grandes centros urbanos: a street-art, o cinema e a projeção mapeada. Todos têm semelhanças e características distintas que ajudam a entender a cultura visual das grandes metrópoles. Se para Benjamin, a cultura de massa é resultante da articulação entre metrópole, urbanização e novas tecnologias, talvez a projeção mapeada seja o espaço onde hoje se evidenciem novas articulações entre cidade, imagem e tecnologia. Tais articulações implicam mudanças na narrativa da cidade, na memória e mesmo em seu próprio espaço virtual. Encerrando esse bloco elabora-se uma reflexão sobre o documentário 3.0, interativo, não no sentido tradicionalmente popularizado por Bill Nichols, mas pela sua mistura com o ambiente digital e como essas novas possibilidades se apresentam. Defende-se aqui o entendimento que a interatividade no documentário se dá tanto por meio da internet, da interatividade on-line, como da interatividade em instalações artísticas em que a interferência do interator permite uma outra experiência audiovisual, embaralhando mais uma vez as fronteiras e os limites tanto do documentário quanto das artes.

    Por fim, é mais uma vez na arte que o livro se encerra, trazendo um rápido ensaio sobre o trabalho de direção de arte nos filmes do cineasta Wes Anderson e uma reflexão sobre a imagem a partir de Pascal Bonitzer.

    É com esse conjunto de textos que se pretende assim contemplar um panorama do percurso nos últimos anos de pesquisa em curso na área do audiovisual, sobretudo no âmbito da imagem, reforçando essas fronteiras fluidas de seus diferentes suportes e produtos. Cada vez mais torna-se difícil discutir audiovisual e seus objetos isoladamente, e o eixo condutor desta pesquisa é justamente um foco nesses entrelugares, nos espaços imprecisos em que se mesclam e que devem ser considerados para uma definição do campo audiovisual contemporâneo em suas mais diversas manifestações, seja do cinema para a televisão, passando pela literatura, pelas videoinstalações e projeções mapeadas. Espera-se, portanto, que este livro colabore com as reflexões sobre o audiovisual e sobretudo no campo da imagem, cada vez mais complexa, desafiante e com múltiplas polaridades.

    Sumário

    1

    POR UM LER E ESCREVER AUDIOVISUAL 21

    2

    A PIOR TELEVISÃO É MELHOR QUE NENHUMA TELEVISÃO 43

    3

    IDENTIDADES E REGIONALIZAÇÃO NAS MINISSÉRIES BRASILEIRAS 59

    4

    DOCUMENTÁRIOS, TELEJORNAIS E A FICCIONALIZAÇÃO DO REAL 75

    5

    A SOBREVIVÊNCIA DO BROADCAST: TV ABERTA, DEMOCRACIA E CULTURA NO BRASIL 97

    6

    A GENTE MORA NA ESTRADA E PASSEIA EM CASA: CARGA PESADA, UM ROAD MOVIE NA TV 105

    7

    TEXTO E IMAGEM, POESIA E PROSA, LITERATURA E CINEMA 129

    8

    O COMANDO DOS PUTREFATOS: RELAÇÕES ENTRE O CINEMA DE POESIA DE BUÑUEL E PASOLINI 139

    9

    MTV BRASIL E O OCASO DO FLUXO 167

    10

    O PINTOR, O MONTADOR, O CINEASTA E SEU AMANTE 181

    11

    CINEMA: ENTRE O TEXTO E O DISPOSITIVO 201

    12

    AS CONTRADIÇÕES DO TAPETE VOADOR: O 3D COMO NOVA VISUALIDADE 219

    13

    DOCUMENTÁRIOS E FICÇÕES: DISCURSO E IDEOLOGIA EM JUSTIÇA E ÔNIBUS ١٧٤ ٢٣٥

    14

    ENTRE A LUTA PELA MEMÓRIA E A COVARDIA DO ESQUECIMENTO 257

    15

    O QUEBRA-CABEÇAS DA MEMÓRIA, NAS IMAGENS TARDIAS DO 11/09 263

    16

    ERA A VANGUARDA DIGITAL? 279

    17

    PROJEÇÃO MAPEADA: O REAL E O VIRTUAL NAS EDIFICAÇÕES DAS GRANDES CIDADES 289

    18

    HIPERMEDIAÇÃO E INTERATIVIDADE NO DOCUMENTÁRIO ٣.٠ ٣٠٧

    19

    AS PEQUENAS ESTRANHEZAS NA ARTE DE WES ANDERSON 329

    REFERÊNCIAS 341

    ÍNDICE REMISSIVO 359

    1

    POR UM LER E ESCREVER AUDIOVISUAL

    Como aprendemos a linguagem do cinema sem nos darmos conta, muitos não sabem que é algo que deveria ser aprendido. Ver e entender as imagens se considera uma coisa natural.

    (Harun Farocki)¹

    É intrincado trabalhar com a ideia de um embate entre imagem e texto e, especificamente, entre literatura e audiovisual. Discussão antiga que cria um sentimento contemporâneo de impotência do texto frente à concorrência desleal das sedutoras imagens televisivas que, a cada dia, fazem diminuir o número de leitores, ou melhor, reduzir o número de possíveis amantes da leitura. Mitchell² assume que é na virada imagética ocorrida a partir da década de 1980 que a palavra passa a perder espaço para as imagens, que povoam a contemporaneidade. Mas a virada imagética não é especialmente nova e alguns autores, como, por exemplo, Gui Débord,³ são um tanto pessimistas com a crescente profusão de imagens que geram um desconforto na investigação intelectual. Além disso, é no fluxo de imagens da televisão e no receio que esta possa influenciar negativamente os jovens – medo tributário do pós-guerra a partir da máquina de propaganda da Alemanha nazista – que várias teorias se constituem e autores travam uma guerra contra meios imagéticos massivos, como as histórias em quadrinhos, os games, a internet e a televisão, especialmente.

    Discussão antiga em todos os sentidos: talvez hoje o grande concorrente das letras, até maior que a televisão, sejam os videogames e as redes sociais que afastariam a criança e o jovem até da informação que também vem da televisão. Falar da televisão, portanto, está em uma região limítrofe entre o novo e o superado, entre o discurso de buscar um caminho de diálogo e entender como fazer dela, e das novas mídias audiovisuais, um aliado na educação e na formação de novos públicos letrados, ou de atacá-las como uma influência monstruosa e predatória diante da qual a solução seria, para muitos, evitá-las. A intolerância e a incompreensão com alguns setores do audiovisual por parte de um segmento de intelectuais, inclusive de pensadores da comunicação e da educação, é, muitas vezes, consequência de pré-julgamentos, estabelecidos no senso comum e que nada contribuem para encontrar um caminho de confluência em que a televisão e, por exemplo, a literatura, colaborem uma com a outra, dialogando e construindo um público cada vez mais instruído e preparado. Para Henri Lefebvre,uma teoria nova não é jamais compreendida se se continua a julgá-la através de teorias antigas e de interpretações fundadas (à revelia daquele que reflete) sobre essas teorias antigas.

    Dentro dessa perspectiva talvez seja válido apontar um exemplo, antes de se chegar à televisão, de como o mundo das letras se ressente do mundo da imagem. Durante muito tempo as histórias em quadrinhos foram vilãs para uma elite cultural que as considerava um entretenimento fácil, subliteratura e até mesmo perigosas para a formação, uma ameaça para a educação das crianças. Vários trabalhos citavam os quadrinhos como algo a ser evitado pelos pais e educadores, como se eles idiotizassem as crianças e ensinassem valores e posturas perigosas para a família. É notório o trabalho dos anos 1950, Seduction of the innocent, do psiquiatra Frederic Wertham, que acusa os quadrinhos de promoverem a delinquência juvenil, a alienação e a homossexualidade – esta, na época, considerada como doença. A sociedade macarthista começa então a boicotar e queimar histórias em quadrinhos em praça pública e, com medo de uma intervenção do congresso americano, a indústria dos comics cria um selo de ética para estampar nas capas das revistas, uma autorregulamentação parecida com o Código Hays criado em 1930 por Hollywood de modo a proteger indústria de cinema estadunidense. O selo era uma espécie de aval para o seu conteúdo, de que naquelas páginas não se encontraria assuntos ou cenas que se tornassem uma ameaça à família. Com essa limitação várias histórias mudaram, a palavra crime não poderia aparecer na capa das revistas, não podia haver qualquer menção desonrosa aos agentes da lei e o bem sempre deveria vencer no final. As histórias de terror foram banidas e a indústria de quadrinhos estadunidense, de fato, passou a ser mais inocente. Na Europa, no entanto, os quadrinhos gozavam de intensa liberdade criativa, abordando qualquer temática sem grandes problemas. Mesmo nos Estados Unidos, a contracultura, nos passos de Jack Kerouac e William Burroughs, construía o quadrinho underground com Robert Crumb, Harvey Pekar e Gilbert Shelton, que rompiam com o bem-comportado, ocupando o espaço do confronto e da contestação.

    Essa mídia que se constitui prioritariamente por meio de narrativas baseadas em imagens e texto, assim como o cinema, também está bem próxima da literatura, inclusive pela sua subdivisão em gêneros como o terror, a ficção-científica, o policial, o underground, o erótico, entre outros. Como o cinema e a literatura, o quadrinho também trabalha com a repetição e com a semelhança para referenciar seu espectador e gerar o seu consumo. Mas o diferencial da imagem é importante, com relação à literatura. Para a compreensão dos quadrinhos, a letra não precisa se articular apenas com ela mesma, já que a mensagem é uma combinação feita, pelo leitor, a partir de uma associação principalmente entre desenho e texto. A imagem, sedutora no traço e na cor, facilita a fluência da mensagem, objetivando-a. Para alguns, mais do que isso, essa objetividade, essa construção física da imagem pelo desenho, empobreceria não só o texto como a capacidade de abstração do próprio leitor, trazida pela palavra. Ele não precisaria mais construir a imagem a partir do texto, pois ela já estaria dada. Além disso, é possível, nos quadrinhos, contar uma história apenas pela sucessão de imagens, por meio do enquadramento, da montagem e da condução da temporalidade, o que os aproxima muito da montagem cinematográfica, sem ser necessário qualquer uso de texto.

    A palavra, então, deixa de ser a única forma de ligação entre autor e leitor, já que mídias como o quadrinho e o cinema, a partir do fim do século XVIII, podem narrar sem a necessidade da palavra, o que não a torna imperativa. Todavia, ao mesmo tempo, a palavra estaria a salvo nas obras clássicas da literatura que não poderiam virar quadrinhos dada a sua complexidade textual. Ledo engano. Hoje é possível encontrar nas livrarias adaptações para os quadrinhos de Em busca do tempo perdido, de Proust, Moby Dick, de Herman Melville, Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, entre tantos outros, e ainda há quem se espante. Na década de 1980, a própria indústria de comics estadunidense criou a série Classics Ilustrated com adaptações de clássicos da literatura como Moby Dick e O morro dos ventos uivantes. Já no Brasil, ainda na década de 1940, a então recém-inaugurada Ebal publicava a série Edição Maravilhosa com adaptações feitas por André Le Blanc de romances clássicos brasileiros. Cinema e televisão também são profícuos em adaptações literárias e de folhetins atestando o caráter inequívoco da ligação entre a literatura e o audiovisual, nos diversos tempos, lugares e mídias. Mas independentemente do conteúdo, é importante entender como se relacionam palavra e imagem nas diversas mídias e o que representa a imagem, como linguagem, hoje.

    A cultura contemporânea é sobretudo visual. Videogames, videoclipes, propaganda e histórias em quadrinhos são meios, técnicas de comunicação e de transmissão de cultura cuja força retórica reside sobretudo na imagem, na montagem e no movimento, e secundariamente no texto escrito, que pode funcionar, eventualmente, apenas como um complemento, muitas vezes até desnecessário, tal o impacto de significação dos recursos imagéticos.

    É importante considerar, por exemplo, narrativas audiovisuais, seja no cinema ou em uma telenovela, produtos culturais a que muitas pessoas têm acesso e que competem diretamente com as narrativas literárias no gosto do público consumidor de cultura. O que este capta, em primeiro lugar, é um contexto demonstrativo em vez de um contexto verbal: percebe-se pela vestimenta, caracterização e comportamento das personagens, pelo lugar onde estão e pela atmosfera, por seus gestos e expressões faciais, se o que se apresenta diante dele é um drama ou uma comédia, em que época se desenvolve o enredo, enfim, de que modo o espectador está sendo convidado a fruir aquele conjunto de significados visuais componentes de uma trama. Cada cena comporta um peso visual e auditivo, este dado pela trilha, mas também por outros recursos sonoros como ruídos e claque, que se comunica imediatamente, sem necessidade de palavras. A imagem audiovisual tem, portanto, seus próprios códigos de interação com o espectador, diversos daqueles que a palavra escrita estabelece com o seu leitor⁵.

    Nesse sentido, cabe lembrar que o cinema, historicamente situado como baixa-cultura com relação à literatura, a rigor, não necessitava das palavras. Ainda que houvesse inúmeras experiências textuais no cinema – como o caso dos benshis⁶ no Japão do início do século XX –, foi de fato a chegada do som sincronizado que trouxe a possibilidade da palavra em cena, atrelando-se à montagem, por meio das falas do roteiro. É nesse momento que a montagem cinematográfica se torna mais presa ao texto. O cinema, que alcançava a liberdade modernista na experiência da vanguarda dos anos 1920, rapidamente se conforma em um discurso diegético estruturado na palavra. Mas a força da imagem em oposição à palavra na mídia cinema ficou evidente mesmo nos filmes que construíam, mediante a montagem, uma poderosa estrutura semântica. Isso fica visível em clássicos do mudo, especificamente no trabalho de Pudovkin, Eisenstein e Abel Gance. O discernimento da montagem, pelo público, é mais simples e elementar do que da palavra, por isso facilmente reconhecível e legível. A experiência mnemônica do homem é composta por várias formas de percepção, inicialmente baseada nos sentidos, o olfato, o paladar, o tato, a imagem e que viriam a ser complementadas, posteriormente, pela própria linguagem. As pessoas rememoram suas experiências por meio de imagens, ou seja, buscam na memória todo o percurso, o histórico pelo qual passaram, para depois transformarem a lembrança em um código verbal representado por palavras e explicitarem suas experiências para a audiência.

    Essa forma natural e primária de rememorar por meio de imagens significa que somos todos montadores de imagens. Pensamos em imagens, pensamos em planos, fazemos enquadramentos e cortamos as imagens com o intuito de criar uma narrativa compreensível para nós mesmos. Constituímos assim um protótipo de homem-montador, não um profissional cinematográfico, mas aquele que monta sequências de imagens mentalmente para si. Como é o emissor e receptor da própria mensagem, não precisa seguir um código semântico rigoroso para ser claro na sua montagem e efetivar a comunicação, pois o reconhecimento da própria mensagem é imediato por meio de suas próprias imagens mentais, carregadas de significado.

    Mas qual seria a diferença desse homem-montador para os montadores de cinema? Os montadores de cinema exteriorizam essa montagem de modo a criar uma semântica lógica e compreensível para criar comunicação com seu interlocutor, elaborando a mensagem de modo que ela seja entendida pelo maior número possível de pessoas. O montador cinematográfico vai, então, entender o funcionamento da imagem, como ela é lida, qual seu significado, como se relaciona junto às outras, e tenta prever como ela é percebida pelo seu público. Nesse momento ele está elaborando um código linguístico representado por imagens, cortes, elipses, fusões, enquadramentos e movimentos, capazes de funcionar e comunicar não apenas para si próprio, como é como o homem-montador, mas capaz de ser reconhecido e lido por outras pessoas. A linguagem cinematográfica passa a existir de forma clara e precisa e, se quiser, sem depender da palavra para seu entendimento. O efeito dessa diferenciação entre o homem-montador e o montador-cinematográfico recai na capacidade que o homem tem de manipular conscientemente essas imagens, elaborando uma maior ou menor comunicação com o outro.

    E como é o funcionamento com a imagem? Se o montador cinematográfico tem o domínio dessa linguagem, sabe manipulá-la a ponto de induzir sentimentos e emoções, o que cabe ao homem-montador? Por estar dentro de uma cultura específica e cada vez mais imagética, em função da mensagem dirigida a ele estar referenciada em signos, arquétipos, estereótipos e demarcações dessa mesma cultura, o homem-montador é um bom leitor, que entende o que lhe é apresentado. Contudo os distintos níveis dessa leitura complexificam o ato de comunicação: a capacidade de ler nas entrelinhas, de tirar mensagens diferentes e subliminares no texto que lhe é apresentado vai depender do quão imerso ele esteja na cultura e o quanto mais ele desenvolva o seu lado leitor desses códigos. No caso das imagens é importante recordar os três níveis de compreensão da imagem de Erwin Panofsky⁷ – não sem críticas⁸ – em que a maior comunicação se dará no nível terciário ou convencional, também chamado de iconológico. Nela é possível entender o significado intrínseco ou o conteúdo da imagem, em que o contexto da obra, tanto a parte técnica como a cultural, seria percebido e compreendido, dando ao leitor uma capacidade de leitura iconológica, em que ela não se dissociaria nem de um contexto nem de seu ambiente histórico.

    Mas até que ponto se sabe escrever essa linguagem e criar essa comunicação? Tomando a publicidade como exemplo, sabe-se que essa é uma prática profissional que demanda um grande acúmulo de informação variada, ainda que muitas vezes superficial, para poder gerar códigos e trabalhar estereótipos. Essa bagagem de informação está, nas novas gerações, referenciada principalmente na cultura das mídias e no saber mundializado da cultura de massa: filmes blockbusters, séries de TV e streaming, vídeos e memes de internet, desenhos animados, videoclipes, músicas, comerciais, imagens, marcas e produtos, revistas, livros, best-sellers, enfim, uma infinita gama de conteúdos que compõem esse universo cognitivo para que o maior número de pessoas, que detêm poder aquisitivo, possa consumir essa cultura-mundo, conforme teorizaram Gilles Lipovetsky e Jean Serroy⁹. Os jovens, vivendo essa informação em seu cotidiano, costumam ter uma preferência pelos produtos audiovisuais que exprimem agilidade, rapidez, radicalidade, beleza e fruição, consumindo uma estética hedonista, como aponta Edgar Morin¹⁰, que se constrói consideravelmente em função do incremento do aparato publicitário com base no fortalecimento, cada vez maior, da sociedade de consumo. O próprio zapping televisivo é, de certa forma, parte dessa experiência, uma insatisfação com o eterno presente, uma fuga do passado, e a incessante busca pelo novo.

    Quando a maioria desses jovens vai escrever audiovisual – e aí considera-se não apenas aqueles que frequentam cursos técnicos ou universitários de cinema e televisão, mas também os autodidatas contemporâneos – ou os screenagers, como definiu Douglas Ruschkoff¹¹ – que munidos de celulares com câmeras e a internet, tornam-se produtores e distribuidores de audiovisual que povoam as redes sociais –, supõe-se que teriam facilidade para reproduzir essa linguagem e esses códigos, mas muitas vezes isso não acontece. Cometem erros gramaticais graves, sem conseguir reproduzir a mesma agilidade dos produtos que admiram e gostam de consumir. Poderia facilmente se justificar pela técnica ou pela ausência dela, pelo seu desconhecimento. O cineasta Harun Farocki¹², que também lecionava cursos de audiovisual na Deutsche Film und Fernsehakademie Berlin (DFFB), afirmou certa vez sobre seu trabalho com os jovens que nosso projeto recebeu muita aceitação, muitas vezes escutávamos que o espectador comum de cinema era um analfabeto cinematográfico.. De fato, o jovem com acesso à informação, que tem acesso aos aparatos de produção e distribuição, pode ser um leitor razoavelmente refinado, com capacidade de compreensão de construções imagéticas complexas – que hoje, por vezes, aproximam-se, na forma, ao hermetismo das antigas vanguardas –, mas não consegue, muitas vezes, reproduzir esse discurso nem tampouco escrever um

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