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Misturadas: Descrições da Segregadora Inclusão Educacional das Pessoas com Deficiência
Misturadas: Descrições da Segregadora Inclusão Educacional das Pessoas com Deficiência
Misturadas: Descrições da Segregadora Inclusão Educacional das Pessoas com Deficiência
E-book496 páginas6 horas

Misturadas: Descrições da Segregadora Inclusão Educacional das Pessoas com Deficiência

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Sobre este e-book

Nesta obra, o acesso das pessoas deficientes às escolas regulares, com base em dispositivos criminais, foi analisado a partir da crítica de algumas visões teóricas sobre o papel social da escola. Após considerar diferentes modelos conceituais relativos ao termo deficiência, o autor abordou os paradigmas educacionais e os dispositivos jurídicos que envolvem a educação dos deficientes. O cerne do problema consiste em saber se o direito penal e a proposta pedagógica inclusiva podem se completar no tocante à garantia de acesso das pessoas com deficiência às escolas regulares. O autor chama ainda a atenção para os resultados da política de inclusão educacional desenvolvida no Brasil, verificada a existência de escolas que se recusam a receber crianças com de¬ciência, de escolas que recebem os de¬cientes apenas para evitar as punições criminais a seus responsáveis, e das que, de fato, fazem da inclusão um compromisso, esta obra identifica os "efeitos colaterais" do uso de certas normas de cunho penal com objetivo de promover inclusão escolar.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de dez. de 2018
ISBN9788546212798
Misturadas: Descrições da Segregadora Inclusão Educacional das Pessoas com Deficiência

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    Misturadas - Josemar Figueiredo Araújo

    Araújo

    INTRODUÇÃO

    As pessoas com deficiência já viveram, – e, de certa forma, ainda vivem – o drama de não terem onde estudar em razão da própria condição de deficientes. Seus espaços educacionais eram ao mesmo tempo a residência e o ambiente de lazer. Suas vidas ficavam restritas aos ambientes de confinamento, nos quais permaneciam por uma única razão: elas não funcionavam como as demais pessoas. Se, em outro momento, essas condições de acolhimento ou da falta dele, já foram piores, a institucionalização até pode ser vista como uma página menos dolorosa que a descartabilidade.

    Neste livro, nosso foco de abordagem não foram os métodos de ensino, nem aqueles empregados durante o período de institucionalização, nem aqueles empregados nas escolas especiais. Também não tivemos por escopo estudar a inclusão a partir de suas técnicas escolares, muito menos em estudar conceitos próprios da pedagogia, tais como os de sala de recursos, mediador, ciclos, entre outros, ainda que muitas expressões técnicas da pedagogia apareçam e sejam explicadas ao longo do texto.

    Certamente, as próximas páginas tratam muito da escola, dos paradigmas educacionais que antecederam a inclusão, enquanto concepção educacional predominante, entretanto este não é um estudo em pedagogia inclusiva, apesar de muito útil para educadores em geral. Percebendo a formação de um complexo legislativo que rompeu com o paradigma de institucionalização, trazendo as pessoas com deficiência para uma realidade diametralmente oposta à institucionalização – a colocação compulsória na rede regular – desenvolvemos este estudo com a finalidade de entender este fato social, o que tem de inclusivo e o que tem de injusto.

    A autoridade discursiva da ciência transformou o paradigma de institucionalização, ao identificar que aqueles espaços de recolhimento de pessoas perigosas, (manicômios, por exemplo), e de acolhimento e proteção a inofensivos (casas para cegos, por exemplo), poderiam conviver com espaços de ensino segregado. Então, a institucionalização passou a ter um triplo aspecto: espaços para proteger a sociedade dos deficientes, espaços para proteger os deficientes, e espaços para educá-los isoladamente, sendo que os dois últimos tipos podiam existir conjuntamente na mesma casa. Percebia-se, então, que as pessoas com deficiência eram capazes de aprender.

    Tal qual o paradigma de institucionalização, que se fundou em critérios médicos, nas noções cientificamente fundamentadas da proteção e do aprendizado diferenciado, a inclusão se funda em postulados igualmente científicos. Por exemplo: a criança com deficiência aprende melhor e se desenvolve com maior facilidade convivendo com as outras crianças; as demais crianças aprendem com as crianças com deficiência o sentido das diferenças e passam a respeitá-las; quanto mais os alunos deficientes passam em espaços de convivência com outras crianças, melhor é seu desenvolvimento social, educacional e ocupacional.

    Por termos um processo de inclusão educacional alicerçado em leis de natureza penal, as quais têm produzido o fato social consistente na compulsoriedade do acesso das pessoas com deficiência às escolas, daí resultando o medo das penas e o fenômeno da inclusão excludente, esta pesquisa sociológica tem por escopo: analisar o papel social da escola; o conceito de deficiência; os aspectos históricos e jurídicos da inclusão educacional das pessoas com deficiência; para, posteriormente, dar voz a alguns atores sociais envolvidos na inclusão enquanto fato social.

    Por fim, estamos certos que este não é um trabalho acabado, reconhecemos, aliás, que o desafio de estudar o processo de inclusão é algo diário, que se revigora a cada nova lei sobre o tema, porque as leis impactam diretamente as escolas, suas obrigações, seus custos, seus planejamentos. De igual modo, elas impactam as pessoas com deficiência, seus objetivos, suas crenças e sua disposição para lutar por maior igualdade material e cultural.

    CAPÍTULO I

    EDUCAÇÃO E ESCOLA

    Quando se fala em educação, comumente se afirma que ela transforma a vida das pessoas, sendo indispensável para a própria socialização, já que a escola é, ao lado da família, uma das primeiras células sociais. É evidente que a escola não desenvolve com exclusividade o papel de educar, até porque existem concepções no sentido do desenvolvimento do aprendizado fora da escola (nas próprias residências, por exemplo).

    Ao se constituir em um direito social, a educação elementar ou fundamental é obrigatória, a educação técnico-profissional é acessível a todos e o ensino superior baseia-se no mérito pessoal.¹ Da mesma maneira em que se constitui em um direito, a educação também é um dever, isto é, as famílias que deixam de prover a educação de crianças em idade escolar estão sujeitas a responder criminalmente². Logo, pelo menos no que concerne à educação fundamental, a educação é um dever da família e do Estado de maneira integral, porém não exclusiva, eis que a atividade educacional pode ser desempenhada por agentes não estatais.

    Obrigado a assegurar o direito à educação, como premissa essencial, aqueles que não podem prover sua própria educação, precisam tê-la provida pelo Estado o qual, todavia, deve assegurar tal direito a toda e qualquer pessoa, independentemente de condição econômica, já que esta é um direito de todos. Assim, toda pessoa tem direito à instrução, que deve ser assegurada pelas famílias e pela ordem política. Com as pessoas com deficiência não haveria de ser diferente, ainda que tenha sido ao longo de muito tempo. Elas também devem ter sua educação elementar ou fundamental provida de maneira obrigatória, o acesso ao ensino técnico-profissionalizante deve ser-lhes amplamente assegurado e o ensino superior deve ser provido de acordo com o mérito individual. Se o Estado, a família e, em consequência, a sociedade, têm o dever de prover a instrução de quem dela necessite, por óbvio, dita obrigação também existe em relação às pessoas com alguma espécie de deficiência.

    Com o propósito de estudar os caminhos escolhidos para a educação das pessoas com deficiência, entendemos ser relevante refletir a respeito da própria educação enquanto direito e dever em execução pelas escolas. Os aspectos que envolvem a educação das pessoas com deficiência, tais como a institucionalização, a desinstitucionalização, a segregação, a integração, a socialização, entre outros, serão estudados sob várias perspectivas. Neste capítulo pretendemos contextualizar a educação das pessoas com deficiência na escola, refletindo não apenas sobre o que a escola é, mas a partir de seus possíveis papéis na estrutura social, isto é, em que medida ela rompe com aspectos culturais ou os reproduz e como essa atuação pode impactar as pessoas com deficiência e seus processos de inclusão social. Com esta finalidade, trataremos da educação enquanto um direito e enquanto um dever; abordaremos as visões da escola enquanto espaço de reprodução da cultura dominante e as percepções da escola como espaço de resistência e transformação social; bem como trataremos a escola como espaço de socialização e as relações entre educação, lei e direito.

    1. A educação enquanto direito e dever

    Frequentemente os Direitos Humanos são divididos em gerações ou dimensões³. Os direitos de primeira dimensão seriam os direitos civis e políticos, os quais costumam estar relacionados com as liberdades públicas, exemplificadas pelo direito à vida, à liberdade de pensamento, de expressão, de opinião, de crença, entre outras. Os direitos de segunda dimensão resultariam da própria noção de igualdade, afirmando-se os direitos sociais, tais como os relativos à saúde, ao trabalho, à educação etc. Em uma terceira dimensão estariam os direitos de fraternidade, compondo uma categoria vaga e imprecisa, cujo principal exemplo é ao meio ambiente equilibrado⁴.

    Essas três dimensões de direitos formam, então, o lema da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

    Em linhas gerais, os direitos de primeira dimensão se diferenciam dos direitos de segunda dimensão porque os primeiros (liberdades públicas) dependeriam, predominantemente, de prestações negativas do Estado, enquanto os direitos de igualdade dependeriam de prestações predominantemente positivas, isto é, do emprego de recursos econômicos para sua implementação. Clève (1993, p. 125 apud Piovesan, 2013, p. 80) tratando dos direitos que demandam uma prestação positiva do Estado, assinala que:

    Inicialmente, a natureza dos direitos do homem se identificava com determinadas liberdades do indivíduo face e contra o Estado. Esta concepção é contemporânea de uma desconfiança em relação ao poder, compartilhada com o marxismo, mas que ao contrário deste, prega a limitação do Estado, entendendo-o como mal necessário. Ora, em países como os latino-americanos, onde a sociedade, ela mesma, é em muitos casos autoritária (e injusta), o poder do Estado, enquanto tal, pode-se revestir de um aspecto positivo. Esta colocação é contemporânea da intervenção do Estado no domínio do que antes se convencionou chamar de privado, a qual, alterando o quadro das suas funções tradicionais estabelecidas pela ideologia liberal, oferece as coordenadas para uma reelaboração dos direitos do homem. É o resultado, já, da afirmação de uma nova geração de direitos (greve, sindicalização, reunião, educação, etc.) e, mais do que nunca, de seu gozo reiterado. O nascimento de um conjunto de direitos de crédito frente ao Estado (saúde, alimentação, habitação, etc.) altera profundamente a natureza dos direitos humanos. Estes agora serão, a um tempo, liberdades e créditos do indivíduo (ou grupo) frente ao Estado. Se as liberdades se manifestavam através de uma prestação prevalentemente negativa do poder público (abstenção do Estado), os créditos exigem uma prestação prevalentemente positiva, ou seja, a disposição de medidas públicas dirigidas à solução das demandas tipificadas como direitos. A concepção dos direitos fundamentais como liberdades e créditos, além de manter implícita uma teoria de Estado (mais precisamente uma teoria do exercício do poder do Estado), identificada com o que hoje chamamos democracia, opera a fusão de duas noções até há pouco dissociadas: liberdade e capacidade. (...) Os direitos de crédito são o solo sobre o qual floresce a capacidade, complemento indispensável das liberdades no e contra o Estado. E estas, como numa cadeia contínua, são o terreno a partir do qual novas liberdades, ou seja, outras gerações de direitos serão possíveis.

    Embora se diga que, historicamente, a pessoa com deficiência nunca viveu um momento de tantos direitos e oportunidades, o tratamento social dispensado a estas pessoas não foi algo inteiramente evolutivo. No período histórico compreendido entre o final da Segunda Guerra Mundial, e o final dos anos 1980, a realidade vigente mostrava a imagem de um grupo social constituído de pacientes, pessoas sobre as quais falava-se e escrevia-se de forma carinhosa e assistencialista, sem preocupações com quaisquer repercussões negativas. Trata-se de um período onde já se considerava a existência de avanços significativos, uma vez que tais pessoas, apesar de tratadas como pacientes, já recebiam mais oportunidades. Nas sociedades ocidentais, inclusive na brasileira, com todas as críticas que podem legitimamente ser feitas, o ser humano com deficiência logrou atingir posições sociais sobre as quais não se tem notícia em períodos históricos anteriores à Revolução Francesa.

    Seria determinismo afirmar que a mudança de perspectiva histórica das pessoas com deficiência, da condição de pacientes para a condição de cidadãs, já ocorreu totalmente e que se deve apenas às suas lutas e ao reconhecimento legal de direitos outrora negados. E se, por um prisma os direitos, estão formalmente garantidos, por outro, parecem substancialmente escamoteados, o que faz refletirmos na possibilidade de que a eficácia da Lei se exaure socialmente sem que os objetivos colimados sejam atingidos.

    Não são raros os documentos de Direito Internacional e os documentos de Direito Interno que estabelecem a educação como um direito de todos. Obrigados à efetividade deste direito estão o Estado, a sociedade e a família. Logo, não é difícil perceber que toda pessoa, em certo momento, é titular do direito à educação e devedora da efetividade deste mesmo direito. Ainda que sejam titulares do direito à educação, as pessoas com deficiência, por muitas vezes, foram e são vistas como incapazes de aprender, de se socializar e de se profissionalizar. Ainda faz parte da realidade de muitas pessoas com deficiência (crianças, jovens e adultas) o recolhimento pelas famílias às residências. E neste cenário, as famílias de crianças com deficiência que deixam de encaminhá-las à escola, que deixam, em última análise, de prover seu aprendizado, são, na maioria das vezes, vistas como protetoras, não como autoras de uma privação de direito.

    Ainda que a educação seja um direito de todos, se constituindo em dever do Estado, da família e da Sociedade como um todo, notícias e estatísticas de crianças com deficiência fora da escola, mesmo em idade de estudar, não costumam chocar tanto quanto as notícias e estatísticas de crianças sem deficiência, em idade escolar, que não frequentam qualquer estabelecimento de ensino. Uma explicação para essa realidade é, como já dito, o próprio rótulo de incapacidade que envolve as pessoas com deficiência. Quanto mais severa a deficiência, menores são os níveis de exigência para a efetividade do direito à educação da pessoa. Neste sentido, de maneira genérica, por enquanto⁵, é possível afirmar que as famílias ao não proverem a educação de pessoas com deficiência, em idade de estudar, e o Estado (por meio dos agentes públicos obrigados) ao não promover as devidas exigências em favor dos titulares de tal direito, estão descumprindo um dever legal.

    Se, por uma vertente, existem as famílias que decidem manter crianças, jovens e adultos com deficiência afastados do direito à educação (assim entendido também o direito de frequentar a escola), se, por uma outra vertente, o Estado (por meio dos seus agentes públicos responsáveis) não faz as exigências que está obrigado a fazer, a história ainda tem um terceiro personagem: as escolas. Ainda que a educação seja um direito de todos, durante muitos anos e, em parte, até os dias atuais, há instituições de ensino que não se sentem parte, não se veem como obrigadas a efetivar o direito à educação a quem por ele procure e preencha as condições definidas em lei para seu exercício. Não se encontrando fora da sociedade e sendo parte, sem a qual o aprendizado dificilmente se realiza, também é possível afirmar, neste momento e de maneira genérica, que as escolas, ao deixarem de se planejar, de se preparar e de receber alunos com deficiência, descumprem um dever legal, mesmo que acreditem na incapacidade das pessoas com deficiência para o aprendizado.

    Frequentemente, a inserção de alunos com deficiência nas escolas regulares é tratada sob dois enfoques: ao decidir preparar-se e receber um aluno com deficiência, a escola regular, em teoria, pode estar ajudando a romper com a histórica exclusão deste grupo social, à medida que promove a convivência entre estudantes sem e com deficiência. Por outro lado, ao recusar-se a adequar-se e a receber alunos deficientes, a escola estaria reproduzindo uma estrutura de histórica exclusão. Esse modelo de antagonismos comporta várias alternativas, tais como as escolas destinadas à educação especial (exclusivas) e as escolas de modelo inclusivo. Será mesmo que, ao não se preparar e ao recusar alunos com deficiência, a escola estaria reproduzindo a histórica exclusão? A recíproca seria verdadeira? Será que, ao receber alunos com deficiência, a escola estaria rompendo com essa histórica segregação? Tentaremos responder a essas e outras questões ao longo deste livro. Para tanto, faremos, a seguir, uma análise relativa ao próprio papel da escola em relação à cultura e aos seus consectários.

    2. O papel institucional da escola

    Quando somos instados a dizer o que essencialmente deve ser a atividade escolar, a resposta pronta costuma ser ensinar e aprender. Mas o que se ensina e o que se aprende, para que se ensina e para que se aprende, as razões desse processo, bem como sua conformidade ou não com a cultura, com a ideologia e com os interesses hegemônicos representam o foco da grande divergência teórica sobre o papel cumprido e desempenhado pela escola face às ordens social, política, cultural e econômica vigentes.

    Em relação às formas de compreender o papel da escola diante de dada realidade social, duas posições teóricas estão nitidamente marcadas: uma que reconhece a escola como espaço no qual se reproduzem as relações de poder dominantes, aí inseridas aquelas de ordem econômica, cultural e ideológica. Outra que percebe a escola e os espaços escolares não como um ambiente dado exclusivamente à repetição de padrões e interesses estabelecidos por grupos sociais dominantes. Ambas veem a escola como instituição onde há resistência às várias formas de dominação, sobretudo às dominações política, cultural e ideológica exercidas pelos grupos hegemônicos. Abordaremos, ainda que de forma sintética, essas duas percepções, dada sua singular importância no que tange à política social consistente na inserção de pessoas com deficiência nas escolas regulares.

    2.1 A escola vista como espaço de reprodução da cultura dominante

    A função social da escola é percebida pelos reprodutivistas, tais como Althusser (1988) e Bourdieu e Passeron (1975), como espaço onde ideologias e privilégios das classes dominantes são transmitidos de maneira legal, em substituição à maneira hereditária e impositiva das sociedades não democráticas. Ao considerar que, além dos aparelhos repressivos, o Estado também dispõe de aparelhos ideológicos, Althusser (1987) constata que, no capitalismo, a reprodução da força de trabalho é assegurada não mais na própria produção (como nas sociedades escravagistas e feudais) e sim, através de várias instituições, inclusive do sistema escolar.

    Distinção importante feita por Authusser (1987) se refere ao aparelho ideológico de Estado (AIE) escolar e a escola: os aparelhos ideológicos de Estado constituem-se em sistemas formados por instituições, organizações e as práticas que lhes são próprias. Assim, por exemplo, o aparelho escolar é formado por instituições e organizações das quais a escola (tanto pública quanto privada) faz parte. Portanto, a escola é um dos componentes do aparelho ideológico de Estado escolar, não o próprio aparelho.

    O que se aprende na escola vai muito além de ler, escrever, contar e introjetar regras. Para Althusser (1987), há uma formação para quem está socialmente destinado a ser comandado e outra para quem está socialmente designado para comandar. As regras da moral e da consciência cívica, por exemplo, seriam próprias do respeito pela divisão técnica do trabalho. E, ao ensinar as artes de bem falar e de redigir bem, a escola também prepara os futuros capitalistas para mandar corretamente. Dito de outra forma, a reprodução da força de trabalho exige a reprodução de sua própria qualificação, assim como a reprodução de sua submissão à ideologia dominante. Como consequência, é preciso reproduzir a própria capacidade de manejo da ideologia dominante.

    Ao observarem que a cultura de um grupo ou de uma classe, enquanto sistema simbólico, é objetivamente definida por uma seleção de significações arbitrárias, Bourdieu e Passeron (1975) assinalam que nem a estrutura nem as funções dessa cultura podem ser extraídas de qualquer princípio físico, biológico ou espiritual, inexistindo qualquer união resultante de relações internas próprias, quer da natureza das coisas, quer da própria natureza humana. Resulta desta constatação a própria concepção dos autores do que significa um arbitrário cultural.

    Para Bourdieu e Passeron (1975) ação pedagógica consiste na atuação com a finalidade de transmitir conhecimento, quer com o fim de orientar, quer com o escopo de reprimir, de maneira carinhosa ou ríspida, independentemente dos meios de comunicação empregados. Sem exceção, afirmam que toda ação pedagógica é uma violência simbólica, objetivamente, uma vez que as relações de força entre os grupos constitutivos de dada formação social formam a base do poder arbitrário e este, por sua vez, é a condição para que se instale a comunicação pedagógica, isto é, a imposição e inculcação de um arbitrário cultural segundo um modo arbitrário de imposição e de inculcação. (p. 21.) Toda ação pedagógica consiste, ainda, em uma violência simbólica segundo Bourdieu e Passeron (1975) porque um grupo ou uma classe promove uma seleção arbitrária de certas significações delimitadas, mediante escolhas feitas por este grupo daquilo que é digno ou não de ser reproduzido por uma autoridade pedagógica.

    Ao reconhecerem que a ação pedagógica está sempre situada entre os dois polos inacessíveis da força pura e da pura razão, (p. 24) Bourdieu e Passeron assinalam que, por mais brutal que seja uma relação de força, ela exerce um efeito simbólico, isto é, a ação pedagógica recorre mais aos meios diretos de coerção quanto mais difícil se torna a imposição de suas significações, através de sua força própria, que se constitui da razão lógica e da natureza biológica. Assim, tanto os castigos corporais e a repreensão mais ríspida quanto a cumulação de afeto e o uso dos diminutivos através dos adjetivos marcados por afetividade constituem técnica pedagógica arbitrária. É fato que essa verdade é de difícil percepção, o que, na visão de Bourdieu e Passeron (1975), se explica porque as técnicas que se empregam dissimulam a significação social da ação pedagógica, de modo a aparentar mera relação psicológica. Dito de outra forma, Bourdieu e Passeron (1975) consideram que, mesmo em espaços sociais bastante diferentes, tais como a escola, a igreja e a família, por exemplo, há a tendência a substituir a maneira forte pela maneira suave (p. 33.)

    Neste processo de imposição, toda autoridade pedagógica tende, ainda, a produzir o desconhecimento da verdade objetiva do que Bourdieu e Passeron (1975) chamam arbitrário cultural, já que, ao ser reconhecida como legítima instância impositiva, ela faz o arbitrário cultural por ela imposto ser reconhecido como cultura legítima. Portanto, a autoridade pedagógica gera a legitimidade social daquilo que ela transmite, por transmiti-lo legitimamente, e a ilegitimidade do que ela não transmite, pelo simples fato de não o fazer.

    Centrais à teoria da reprodução exposta por Bourdieu e Passeron (1975) estão os conceitos de habitus e capital cultural. O habitus é visto como as disposições do sujeito que, em si, refletem um conjunto de significados, preferências, conhecimentos e comportamentos que, com base na classe, levam o indivíduo a reproduzir o sistema de violência simbólica. Dito sistema, portanto, não é imposto mecanicamente, já que as estruturas sociais objetivas, tais como igreja, escola e família, têm a tendência de produzir disposições que constroem experiências sociais reprodutivas das mesmas estruturas objetivas.

    Já o conceito de capital cultural desenvolvido por Bourdieu e Passeron (1975) refere-se às várias competências culturais e linguísticas que são herdadas pelos indivíduos, em razão da classe a que pertencem suas famílias. Logo, uma criança, situada em certa classe, herda de sua família vários conjuntos de significados, formas de pensar, estilos, entre outros, aos quais se atribui certo status, como consequência daquilo que as classes dominantes reconhecem como práticas mais valorizadas. Exemplificando com o domínio da linguagem, eles afirmam:

    A inquietude das boas maneiras, maneiras de mesa ou maneiras de língua, que trai a linguagem dos pequeno-burgueses, se exprime ainda mais claramente na pesquisa ávida dos meios de adquirir as técnicas de sociabilidade da classe a que se aspira, manuais de civilidade ou guias de bons costumes. Vê-se que essa relação com a linguagem é parte integrante de um sistema de atitudes relativas à cultura que repousa sobre a pura vontade de respeitar uma regra cultural mais reconhecida do que conhecida e sobre o rigorismo da atenção à regra, essa boa vontade cultural que exprime em última análise as características objetivas da condição e da posição das camadas médias na estrutura das relações de classe. (Bourdieu e Passeron, 1975, p. 145)

    E, neste processo, as escolas têm um papel essencial tanto para legitimar quanto para reproduzir o domínio cultural, uma vez que nada mais fazem do que institucionalizar interesses de classes e ideologias que dão importância a habilidades e familiaridades que somente alguns alunos receberam através de relações de classe. Na competição entre os detentores do capital cultural e os não detentores ou detentores em menor escala, legitima-se a exclusão.

    Em suma, em todos os casos, a principal força da imposição do reconhecimento da cultura dominante como cultura legítima e do reconhecimento correlativo da ilegitimidade do arbitrário cultural dos grupos ou classes dominados reside na exclusão, que talvez por isso só adquire força simbólica quando toma − as aparências da auto-exclusão. (Bourdieu e Passeron, 1975, p. 53)

    Ao defenderem que o trabalho realizado pela ação pedagógica dominante tem a função precípua de manter a ordem, Bourdieu e Passeron (1975) assinalam que manter a ordem significa reproduzir a estrutura das relações de forças entre os grupos ou as classes. E esta reprodução se dá pela tendência do próprio trabalho pedagógico a impor aos grupos ou às classes dominadas que admitam como legítima a cultura dominante, bem como a fazer com que esses grupos dominados interiorizem disciplinas e censuras em variados níveis. Essa internalização servirá melhor quanto mais tomar forma de autodisciplina e de autocensura. E destacam ainda:

    Todo sistema de ensino institucionalizado deve as características específicas de sua estrutura e de seu funcionamento ao fato de que lhe é preciso produzir e reproduzir, pelos meios próprios da instituição, as condições institucionais cuja existência e persistência (auto-reprodução da instituição) são necessários tanto ao exercício de sua função própria de inculcação quanto à realização de sua função de reprodução de um arbitrário cultural do qual ele não é o produtor (reprodução cultural) e cuja reprodução contribui à reprodução das relações entre os grupos ou as classes (reprodução social). (Bourdieu e Passeron, 1975, p. 68)

    Equivale a afirmar que Bourdieu e Passeron (1975) consideram que o sistema educacional dominante institui o trabalho pedagógico dominante, e este produz para reproduzir, por meios próprios da instituição, as condições indispensáveis para que sua função interna de convencimento mantenha as condições institucionais do desconhecimento da violência simbólica exercida. Essas circunstâncias criadas para manter a violência simbólica são, a um só tempo, as condições propícias para a realização externa de sua função reprodutora da cultura legitimada por reproduções anteriores e as condições da reprodução das relações de forças.

    Como consequência deste ciclo contínuo de reprodução, eles afirmam que a escola é detentora de duas atribuições simultâneas: uma função técnica de produção e de comprovação das capacidades, neste último caso através dos processos de seleção institucionalizados; e da função social consistente em conservar e consagrar o poder e os privilégios. Para Bourdieu e Passeron (1975), as sociedades modernas oferecem ao sistema de ensino todas as condições de transformar vantagens sociais em vantagens escolares para que essas últimas voltem a se converter, pela legitimidade e aparente neutralidade da autoridade pedagógica, em vantagens sociais. Renunciando ao poder de transmitir o poder pela hereditariedade, as classes dominantes exercem este privilégio por meio da escola, que o faz através de:

    suas sentenças formalmente irrepreensíveis que servem sempre objetivamente as classes dominantes, pois não sacrificam jamais os interesses técnicos dessas classes a não ser em proveito de seus interesses sociais. (p. 175)

    Cada vez mais, as classes dominantes delegam o poder de seleção às instituições escolares. Isto não quer dizer que não renunciam ao privilégio de transmitir hereditariamente os privilégios, mas apenas o fazem da maneira legítima em sociedades que se pretendem democráticas, isto é, através da estrutura burocrática chamada escola. E sublinham:

    A Escola pode melhor do que nunca e, em todo caso, pela única maneira concebível numa sociedade que proclama ideologias democráticas, contribuir para a reprodução da ordem estabelecida, já que ela consegue melhor do que nunca dissimular a função que desempenha. Longe de ser incompatível com a reprodução da estrutura das relações de classe, a mobilidade dos indivíduos pode concorrer para a conservação dessas relações, garantindo a estabilidade social pela seleção controlada de um número limitado de indivíduos, ademais modificados por e pela ascensão individual, e dando assim sua credibilidade à ideologia da mobilidade social que encontra sua forma realizada na ideologia escolar da Escola libertadora. (Ibidem, p. 175)

    A teoria da reprodução desenvolvida por Bourdieu e Passeron (1975) tem como pressuposto, que nas sociedades capitalistas, a obtenção dos privilégios depende e dependerá cada vez mais da posse de títulos escolares. Logo, a função da escola reside em assegurar a transmissão legal a direitos da burguesia que não poderiam mais ser transmitidos de maneira hereditária e declarada. A escola é, nas palavras de Bourdieu e Passeron (1975, p. 218), instrumento privilegiado da sociodiceia burguesa que confere aos privilegiados o privilégio supremo de não aparecer como privilegiados. E sobre o papel que desempenha, arrematam assinalando que um de seus papéis é convencer os deserdados de que seu destino se deve à falta de dons ou à falta de méritos. E a própria privação de bens materiais, através da escola, pode ser excluída da consciência daqueles que vivem privados de tais bens.

    Teórico de orientação marxista, Authusser (1987) reconhece, na escola, um espaço para a luta de classes, afirmando que, em seu interior, esta luta é inteiramente ideológica, cujo objetivo de manutenção da hegemonia⁶ das classes dominantes estaria em tensão com a resistência e busca pela construção de uma nova hegemonia. Ao mesmo tempo em que se constitui em importante espaço da luta de classes, a escola se mostra reprodutora da ideologia dominante, à semelhança do que fazem Bourdieu e Passeron (1975). Authusser (1987) afirma que, nas sociedades modernas, a escola é a instituição que mais tempo permanece com as crianças em seus períodos mais vulneráveis, ao que trata por inculcação ideológica. Predominando o aparelho ideológico de Estado escolar nas sociedades modernas, obtém-se a reprodução das relações capitalistas de exploração, através do aprendizado de certos saberes presentes na maciça inculcação da ideologia da classe dominante, qual seja, as relações entre exploradores e explorados.

    Ao selecionar os indivíduos aos postos de trabalho com base na quantidade de anos de frequência à escola, diz Authusser (1987), a escola continuaria cumprindo o papel de reproduzir as relações sociais. Ao não assegurar acesso à própria, escola, nesta linha de argumentação, ela também continuaria a reproduzir essas mesmas relações, sobretudo quando aqueles que não têm acesso ao sistema escolar conseguem ocupar funções na estrutura produtiva. Assim, a própria noção do fracasso, do sucesso, do erro e do acerto, que é introjetada pela escola, seria parte desse processo de reprodução.

    Tanto a teoria da reprodução desenvolvida por Bourdieu e Passeron (1975) quanto aquela exposta por Authusser (1987) partem de um pressuposto aparentemente não verificável empiricamente, qual seja, o de que, nas relações sociais modernas, existe uma classe dominante com os mesmos interesses e a mesma ideologia pré-definidas para se fazerem reproduzir pela escola. Se é certo que esta é uma hipótese necessária para fundar-se uma teoria científica, também deve ser considerado o fato de que, em relação à exclusão ou à inclusão das pessoas com deficiência das escolas, não é possível creditar, prima facie, nem uma nem outra, ao capitalismo ou à dominação. Conforme abordaremos ao longo deste livro e, mais especificamente, no Capítulo III, as pessoas com deficiência têm uma história de exclusão que, segundo os historiadores que se dedicaram ao tema, não é capitalista, é humana e precede o período a que se convencionou chamar capitalismo. Mas as teorias da reprodução serão de significativa importância para o estudo proposto, dado que, entre outras questões, sustentamos que a inclusão das pessoas com deficiência nas escolas regulares representa um rompimento com práticas culturais dominantes.

    2.2 A escola vista como espaço de resistência e transformação social

    As concepções de uma escola transformadora também são significativamente distintas entre si. Nos limites deste livro, procuramos expor, brevemente, a teoria crítica de Henry Giroux e alguns aspectos distintivos destas concepções para as teorias reprodutivistas expostas anteriormente. Fazer a educação crítica, segundo as teorias que veem a escola como espaço de resistência e transformação e como fazê-la crítica constituem-se, de imediato, na primeira distinção em relação às teorias da reprodução. Enquanto as teorias críticas preocupam-se em como a escola pode ser, os reprodutivistas procuram descrevê-las como acreditam que elas são.

    Em sua crítica à teoria da reprodução de Bourdieu e Passeron (1975), Giroux (1983) reconhece a importância dos avanços teóricos trazidos, sobretudo quando comparados aos modelos liberal e tradicional de teorização do currículo escolar. O cerne da crítica está no uso da noção de habitus, pois entende que a estrutura e uso da noção de habitus consistiria uma camisa de força conceitual que não provê nenhum lugar para modificação ou fuga. (Giroux, 1983, p. 124.). A consequência é que a noção de habitus sufoca a possibilidade de mudança social e se dilui em um modo de ideologia tecnicista (ibidem). Ao desconsiderar o pressuposto de que o desenvolvimento do pensamento reflexivo é capaz de resultar em práticas sociais passíveis de reestruturar o próprio habitus da pessoa, Bourdieu e Passeron, afirma Giroux (1983) acabam por desenvolver uma "teoria de hegemonia irreversivelmente enraizada na estrutura da personalidade; ao fazer isso, ela parece eliminar a esperança de transformação individual e social (p. 125).

    Ao reconhecer a existência de normas, valores e atitudes subjacentes que são frequentemente transmitidos tacitamente, através das relações sociais da escola e da sala de aula, o que chama currículo oculto (Giroux, 1983) reconhece o papel da dominação ideológica na escola, contudo, assinala a importância de se desenvolver, nos explorados, a consciência de sua própria condição de explorados, bem como o próprio inconsciente das necessidades que perpetuam a dependência do sistema de exploração.

    Ao expor os vários enfoques dados ao currículo oculto, Giroux (1983) afirma que, tradicionalmente, analisam-se os meios pelos quais o sistema escolar se presta à reprodução, à coesão e à estabilidade sociais. Já em uma abordagem liberal, a questão estaria relacionada às maneiras pelas quais as pessoas criam e negociam os significados da sala de aula, enquanto o enfoque radical dá ênfase ao conflito, preocupando-se com as estruturas sociais e com a própria construção dos significados que lhes são postos como um dado. Pretendendo fugir a esses enfoques, Giroux (1983) julga importante que tanto educadores quanto alunos rejeitem as ideias que reduzem a escolarização ao racionalismo tecnocrático que desconsidera questões como mudança social, relações de poder e conflitos, quer no âmbito escolar, quer fora dele.

    Ao invés de exaltar a objetividade e o consenso, os professores devem colocar as noções de crítica e conflito no centro de seus modelos pedagógicos. Dentro de tal perspectiva, existem maiores possibilidades para desenvolver e entender o papel que o poder tem na definição e distribuição do conhecimento, bem como as relações sociais que medeiam a experiência da escola e da sala de aula. A crítica deve se tornar um instrumento pedagógico vital — não apenas porque rompe com as mistificações e distorções que silenciosamente operam por trás dos rótulos e rotinas da prática escolar, mas também porque ela propicia uma forma de resistência e de pedagogia de oposição. (Giroux, 1983, p. 90)

    Ao criticar os enfoques tradicionais daquilo que chama currículo oculto, Giroux, (1983) afirma que falta, tanto ao enfoque tradicional quanto ao enfoque liberal uma percepção da escola não apenas como espaço de dominação mas como ambiente de contestação. Assim, constata que, nesta visão crítica, a dominação nunca se

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