Noites ilícitas: histórias e memórias da prostituição
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Noites ilícitas - Edson Holtz Leme
Ilícitas"
Lista de abreviaturas
A.C. = Auto Criminal
CDPH = Centro de Documentação e Pesquisa Histórica
CML = Câmara Municipal de Londrina
CMNP = Companhia Melhoramentos Norte do Paraná
CTNP = Companhia de Terras Norte do Paraná
FCL = Fórum da Comarca de Londrina
Inq. Pol. = Inquérito Policial
N/a. = sem autor
s/t. = sem título
Apresentação
Desde o final dos anos 1980, a historiografia sobre Londrina e região foi sacudida por um desenvolvimento quantitativo e qualitativo marcante.¹
O presente livro insere-se plenamente nesse processo coletivo de (re)escritura da história local
e regional
. As aspas são pertinentes, não para descaracterizar o conjunto desses estudos, mas, pelo contrário, para tentar desfazer o equívoco da idéia de república em migalhas
. Implicitamente, essa idéia reserva o epíteto de História do Brasil
aos estudos sobre determinados espaços-tempos, ao mesmo tempo em que cunha o rótulo, um tanto pejorativo, de local e regional para designar o resto
do Brasil, como se essas territorialidades e temporalidades outras em relação a certos eixos fortes
da história e da historiografia brasileiras fossem marcados por uma espécie de historicidade fragmentada e fraca. Esse cosmopolitismo tacanho é marcado por uma série de oposições e dualidades perfeitamente questionáveis (litoral x sertão, civilização x barbárie, centro x periferia, etc.). Não é esse o lugar para aprofundar essa crítica. Por ora, basta assinalar a importância do presente livro para matizar um debate urgente.
Em Noites ilícitas, Edson Holtz Leme analisa as representações e imagens construídas sobre o mundo da prostituição na cidade de Londrina no período de 1940 a 1966. Ao longo do texto, o historiador leva a cabo uma abordagem prismática do objeto; ou, melhor dizendo, mostra como um determinado objeto (a prostituição) e certos sujeitos (as prostitutas) são constituídos historicamente nos pontos de intersecção de uma pluralidade de práticas e discursos sociais: a religião, a justiça, a moral pública, a medicina higienista, a legislação, a imprensa, a polícia. O contraponto da análise desse saber-poder constituinte é levado a efeito no belo terceiro capítulo, Lembranças da noite
, através de uma leitura necessariamente oblíqua da memória de velhos boêmios e de uma ex-prostituta.
Em relação às análises anteriores sobre a história da prostituição em Londrina, o autor avança decididamente para os arquivos. Os prazeres do arquivo
, na bela expressão de Anthony Grafton, pontuam todo o texto, lembrando-nos de uma exigência por vezes desprezada, mas nunca impunemente: a de que a erudição constitui um dos principais pilares de toda e qualquer análise historiográfica rigorosamente conduzida.
No trabalho detetivesco de rastrear os registros de discursos sobre a prostituição na cidade, Holtz Leme analisa qualitativamente vários tipos de documentos: inquéritos policiais, processos-crime, atas do legislativo municipal, fontes eclesiásticas, etc., além de depoimentos orais importantes de ex-clientes e de uma ex-prostituta, bem como de representantes locais dos aparelhos de saber-poder. O resultado da erudição e do rigor analítico do historiador é muito simplesmente um texto, uma bela narrativa sobre a história reiteradamente silenciada do cotidiano da prostituição na cidade durante os anos áureos do café.
Esta apresentação, de todo desnecessária, colocou a obra sob o crivo do rigor acadêmico de uma disciplina, a História como a concebemos hoje na universidade. Porém, convido o leitor a desconsiderar tal apresentação e partir imediatamente para a leitura do texto. Adelante!
Prof. Dr. Antonio Paulo Benatti
Universidade Estadual de Ponta Grossa
¹¹ Ver bibliografia no final deste livro.
Prefácio 2ª edição
Diz o historiador francês Alain Corbin que os historiadores têm sido muito pudicos ao recordar o passado, já que a História dificilmente penetra nos espaços quentes do desejo, apesar das antigas sinalizações da famosa Escola dos Annales, em relação aos sentimentos, ao amor, ao sexo, ao medo ou à solidão.¹ Com uma forte e importante tradição historiográfica voltada para analisar as lutas sociais e as manifestações do poder, os territórios desejantes ficaram alijados do olhar dos cientistas, com raríssimas exceções, como se não marcassem tão fortemente as experiências pessoais e coletivas, sempre tão complexas e difíceis de serem narradas.
É bem verdade que nas últimas três ou quatro décadas, novos temas, novos objetos, novas linguagens e novos operadores conceituais ajudaram a perceber outros tipos de acontecimentos, tanto quanto as rupturas e as descontinuidades constitutivas dos fenômenos sociais e culturais, abrindo enormes brechas nas narrativas lineares tradicionais. Contra os discursos totalizadores, homogeneizadores e masculinos, outras práticas discursivas permitiram tomar contato com histórias e atores marginalizados, silenciados, excluídos e desprestigiados. Desse modo, certamente avançamos muito na maneira como olhamos atualmente para o passado e na maneira como traduzimos as experiências dos/das antepassados/as, atentos às diferenças sociais, étnicas, sexuais, geracionais e às multiplicidades das práticas, dos sentidos e das interpretações construídos, tanto pelos historiadores quanto pelos próprios atores.
Confluindo nessa direção, este belo livro de Edson Holtz Leme trabalha com um tema bastante difícil e cativante: a história dos amores ilícitos e dos prazeres inconfessos, vividos em Londrina, entre as décadas de quarenta e setenta do século XX. Essa história, como podemos constatar ao longo da leitura do livro, envolve inúmeras outras, indo do poder ao prazer, dos ricos aos pobres, das autoridades públicas, científicas e religiosas às personagens masculinas e femininas que viveram esse universo absolutamente misterioso, porque opaco, secreto e desconhecido, ao menos até recentemente.
Em nossos dias, a mídia entra avassaladoramente na zona
, nos motéis, bordéis, casas de programa e sex-shops, registrando minuciosamente a vida cotidiana e devassando o corpo das prostitutas, seja das de luxo, seja das mais pobres. Aliás, elas mesmas colocam-se publicamente também como narradoras de suas próprias experiências pessoais e íntimas, a exemplo dos livros autobiográficos já publicados, ou de vários sites e revistas eletrônicas existentes, como o Beijo da Rua
. Hoje, ocupam lugares de destaque em desfiles de moda, como acontece com a grife DASPU e são entrevistadas em vários programas de televisão. Contudo, não há como negar que se trata de um acontecimento muito recente. Melhor dizendo, trata-se de uma profunda ruptura na sensibilidade, já que as mulheres não tinham voz até algumas décadas atrás, menos ainda as públicas
ou as da vida
, como eram chamadas as prostitutas, sobretudo as pobres, consideradas inferiores em relação às mulheres castas
.
Mesmo assim, se atualmente fala-se bastante sobre as práticas sexuais antigamente consideradas ilícitas
, ao mesmo tempo, é de se estranhar o silêncio que paira sobre as histórias recentes ou antigas desse universo, ainda mais se considerarmos a importância que a prostituição e os prazeres ilícitos
têm e tiveram na vida cotidiana da população, não só a brasileira. Vista como um mal necessário
, de um lado, ou como um empreendimento lucrativo, de outro, ou ainda, como um trabalho como qualquer outro
, como dizem as trabalhadoras do sexo
, a prostituição é e foi uma constante em todas as cidades do país, para ficarmos pelo Brasil, assim como nos meios rurais, atravessando todas as camadas sociais e nacionalidades. Como explicar, então, esse desvio do olhar que não quer falar daquilo que está diante de nós e que, acima de tudo, incomoda muito?
Leme assume a corajosa tarefa de investigar esse passado, à revelia da memória oficial, construindo uma configuração específica para falar das Noites Ilícitas. Histórias e memórias da prostituição, como diz o título do livro, na cidade de Londrina, no Estado do Paraná.
Percorrendo seu trabalho de minuciosa pesquisa e de escrita ágil e prazerosa, deparamo-nos, no primeiro capítulo, com a história do crescimento sócio-econômico e da modernização dessa cidade, - idealizada a partir da imagem repousante e diurna da cidade-jardim
-, a partir de uma outra porta de entrada. Não se trata de um elogio ingênuo do progresso, mas da constatação dos seus efeitos nem sempre bem-vindos, como os que redundam no aumento vertiginoso da população, na transformação dos seus hábitos, na perda dos antigos pontos de referência que garantiam uma relativa estabilidade e tranquilidade social. Assim, o surgimento dos bares, cabarés, boates, inferninhos
e das grandes festas têm como correlato, o aumento da violência policial e, sobretudo, dos pânicos morais. Em se tratando da prostituição, estamos falando de acontecimentos nos bairros quentes
da cidade, da vida boêmia, do submundo, dos prazeres e de fantasmas construídos pelos que aí participam e pelos que apenas imaginam.
Num segundo momento, Leme focaliza a reação moral ao medo provocado pela expansão de novas formas de lazer e prazer na cidade, pela aceleração do ritmo de vida e pela ameaça de descontrole das práticas sociais. A igreja, os políticos, a polícia, os médicos e juristas afinam na luta moral pelo controle e normatização da sociedade, pelo desejo de imposição de seu regime de verdades
para todos, assim como pela definição do modo correto de viver, agir e conduzir-se. A partilha vai sendo, então, rigidamente traçada entre o mundo dos normais e o dos anormais, dos racionais e irracionais, dos honestos e indesejáveis
, das mulheres castas e das prostitutas, reforçando a divisão espacial que separa ricos e pobres, como mostra o autor.
Estabelecendo um contraponto, no terceiro capítulo, a severidade e o conservadorismo da moral sexual das elites cede lugar à história do cotidiano da prostituição, vista pelos seus próprios atores. Aqui, os espaços eróticos, lúdicos e alegres, evocados pelos clientes, contrastam fortemente com o discurso normatizador e asséptico das autoridades públicas. Entram em cena as memórias dos freqüentadores, de policiais e, sobretudo, de Palmira
, seguramente a grande protagonista desse cenário e do livro.
Aqui, o livro ganha maior densidade, pois penetramos no âmago desse universo através das lembranças da noite
de uma antiga prostituta, hoje, aos 67 anos de idade, que ousa falar de seu passado. Como diz o autor, as imagens positivas do submundo, os cheiros, os sons, as cores e as emoções que constituem esse mundo afloram com intensidade. Estranhamente, ninguém parece censurar, condenar ou rejeitar a prostituição.
Com Palmira, entram também as músicas dos cantores românticos, como Gregório Barrios, Nelson Gonçaves e Dolores Duran, a intensa sociabilidade das boates, a diversão das festas na Vila Matos, para o que tinha de se arrumar muito bem
, como conta Palmira, à p. 241. Mas também o trabalho duro, controlado pela cafetina autoritária e dominadora. Geralmente a dona da casa não deixava a gente ir na praça
...
Assim, Leme nos introduz de uma maneira inteligente e estimulante a uma história da cidade de Londrina pelo seu lado mais desconhecido, mas paradoxalmente muito falado e comentado pela população em seu cotidiano. Os habitantes mais velhos conhecem essas histórias, ouviram falar, têm algumas referências fortes, ao contrário dos mais jovens. Os jornais noticiaram. De certo modo, elas estão presentes por toda a parte, contidas nas paredes dos aposentos, das casas, dos bares, nas ruas, nas lembranças da noite
. E é preciso ouvi-las claramente.
Ao leitor e à leitora, fica aqui o convite para conhecer esse rico e estigmatizado universo, com suas diferentes cores e tonalidades, com suas durezas e dificuldades, mas também com seus prazeres e alegrias, como nos mostra esse jovem, mas já maduro historiador.
São Paulo, 18 de fevereiro de 2008
Margareth Rago
Professora Titular do Depto de História da UNICAMP
¹ CORBIN, Alain. Les Filles de Noce. Misère Sexuelle et Prostitution au XIXe. siècle. Paris: Aubier,1978.
Prefácio
Nos últimos cinqüenta anos e, especialmente, depois da década de 1960, surgiram questões culturais encaminhando novas e complexas configurações dos estudos históricos. As mais tangíveis foram as ampliações dos objetos e dos enfoques historiográficos, possibilitando aos historiadores multiplicidades de opções teóricas e metodológicas dantes não havidas. Ademais, houve maior atuação dos historiadores em múltiplos setores sociais, saindo do confinamento da pesquisa e do magistério.
Ampliaram-se as indagações teóricas cujos impulsos quebraram barreiras com outras áreas das Ciências Humanas, tornando as análises historiográficas mais profundas, ricas e atraentes. Tais contatos provocaram, em determinadas orientações teóricas, uma certa crise, entendida por alguns como mal estar
, em que se detectava um esfacelamento do objeto histórico anterior e uma perda da especificidade do campo historiográfico. Ora, esse estilhaçar era decorrente de uma posição que fixava o objeto da história na vida política de uma sociedade dada, analisando preferencialmente o Estado, em que setores como sociedades, economias, crenças, idéias, entre outros, eram decorrentes desse outro
ou centro
, onde se realizaria a própria história e o seu movimento. Partia-se, ainda, de uma diminuição do conceito de temporalidade, esquecendo se que a história, enquanto atitude inaugural e específica que a distingue das outras Ciências Humanas, é a análise do real através da postura que considera não uma, mas várias pluralidades possíveis criadas pelo homem. De modo que, o estudo das temporalidades é fundamental para uma visão plural e democrática, na qual o homem é, ao mesmo tempo, sujeito de agente e suas próprias mudanças.
A nova complexidade do campo histórico estendeu se à revalorização da oralidade, através do depoimento de testemunhos vivos, não só sobre os chamados grandes acontecimentos políticos e sociais, mas acerca do cotidiano dos atores de todas as camadas sociais. Tais ampliações também repercutiram nas linguagens, indo além e formas escritas e incorporando as análises de imagens fixas e em movimento, tornando mais ricas as análises historiográficas.
Este panorama nas mudanças historiográficas demorou certo tempo para ser aplicado à história fora das regiões centrais. O estudo de Edson Holtz é um dos mais belos exemplos dos historiadores que não querem mais camisas de força. Dizer que sua pesquisa é uma abordagem da história da vida privada, da história da sexualidade, da história das mentalidades, da história social, da história cultural, seria empobrecer seu trabalho. Mais do que fronteiras disciplinares, importou lhe compreender seu tema.
O assunto de que trata seu livro não aparece nos grandes historiadores brasileiros, que escrevem obras com títulos pomposos como História do Brasil
. Edson havia começado com os prazeres dos homens
e a vida da boemia, e acabou enveredando para o caminho árduo do estudo da prostituição. Mas ele não trata a prostituição como se fosse um fenômeno inerente à natureza humana
. Nem tampouco, cai na mesmice de considerá-la um fenômeno próprio da sociedade burguesa. Os historiadores brasileiros da vida social mostraram nos que a prostituição aparece em muitos contextos. Zonas pioneiras, onde se instalaram novos estabelecimentos agrícolas ousados, seja em passado remoto, seja recente, geram também prostituição significativa. Quase sempre, no século XX, em zonas pioneiras de mineração, a prostituição instala se junto aos garimpeiros. Enfim, poder-se-ia multiplicar em muito os exemplos, para mostrar que o fenômeno existente na formação de Londrina não lhe dá nenhum caráter especial na origem, espécie de destino e válido para todo o sempre, que a desqualificasse.
A trilha seguida pelo autor é entrar nos próprios meandros da prostituição, não só através da repressão visível, mas pelos seus corredores estreitos e invisíveis. Com isso, defronta se com as tramas políticas de apoio e de desqualificação da prostituta, e todos os pirotécnicos jogos de poder. Ao mesmo tempo, uma faceta desses jogos foram os itinerários imobiliários dos deslocamentos das zonas
dentro de Londrina, na medida que a cidade cresceu, espraiou se e disciplinou se. Sim, Edson fala na disciplina dos corpos, mas também fala nos modelos de disciplina impostos às mentes e com isso desvela a sua contribuição, a sua marca original, quando mostra o tema subterraneamente na formação da opinião pública londrinense através da imprensa.
Dominando suas fontes escritas e orais, o autor revela se um pesquisador e historiador de mãos cheias, que sabe ler e perceber além do que está escrito ou do que está sendo dito, sem adotar, em nenhum momento, uma fácil postura moralizante. Escolhe perceber os dramas que envolvem a prostituição, através de uma forma de escrita que flui, que se deixa apanhar e nos envolve. Finalmente, havendo trabalhado com Edson Holtz em sua pesquisa, na qualidade de orientador de sua dissertação de mestrado no Programa de História da UNESP, Campus de Assis, que originou este livro, tive a grata oportunidade de conviver com um autor criativo, que soube sempre se valer do que as melhores correntes metodológicas em história poderiam oferecer para esclarecer a vida de mulheres que se prostituíram.
Tantos e tantos motivos me permitem, pois, convidar à leitura deste livro e espero que se deixem dominar pelo texto para compreender uma história bem distante dos feitos heróicos duvidosos e mergulhar na vida de pessoas que sofreram e amaram, construindo sua própria história.
Prof. Dr. Eduardo Basto de Albuquerque
UNESP – Campus de Assis
Introdução
Vagas messalinas aqui estacionam
Pernas rodadas, caras batidas
Buscam, quem sabe?
A vitamina que devolve a juventude
do vento do pastel aspiram sonhos?
Sentam moles bundas nos banquinhos
Olhos soltos sobre incertos objetos
e bebem engolem o suco de tantas frutas
como se fosse lava engolem tudo
diz-que vagabundas nunca morrem
pelo menos só vivas aparecem no jornal
diz-que também não fazem falta
trocam de peruca, engordam, emagrecem
estão sempre no lugar sabido mas
na hora vaga que precede o dia
bebem vitamina e comem como crianças
o pastel que despenca recheio
_ pendura a conta, ainda gritam
os saltos gastos já batendo na calçada
baiana, luzia, inalda, roseni, palmira
Elas têm pressa
quando amanhece todas as putas viram fadas.
Miriam Paglia¹
Nos versos de D. Miriam Páglia, antiga moradora de Londrina, fluem imagens de certas mulheres da noite. Mulheres cujas vidas pulsaram pela cidade. Nela trabalharam
, sofreram, amaram. Cortejadas durante a noite e perseguidas e discriminadas durante o dia. Chegaram despercebidas e assim partiram. Como fantasmas, quase não deixaram rastros, nem pegadas. Porém, uma certa sonoridade ilícita, gargalhadas, músicas, estouros de champagne, gritos e gemidos, ainda ecoam nas lembranças daqueles que vivenciaram aquela que, nas décadas de 1940 a 1960, fora considerada e reconhecida por muitos como uma das maiores aventuras prostitucionais do país.
Anualmente a população londrinense é convidada, especialmente no mês de dezembro, aniversário da emancipação política do município, a celebrar a história daqueles que construíram aquela que hoje detém, com uma certa dose de ufanismo local, o título de segunda maior cidade do Paraná e quarta do Sul do país. Essas comemorações têm-se notabilizado por privilegiar e sedimentar na memória coletiva determinadas imagens e representações do passado². Nela cabem a saga da primeira caravana de pioneiros, rasgando as matas do sertão inóspito
; a chegada dos bravos e valentes migrantes paulistas e mineiros que, ao lado de outros grupos de imigrantes, acorreram ao norte do Paraná em busca do el dorado, da terra da promissão, do lugar onde se anda sobre o dinheiro e que, de forma intrépida e heróica, abriram clareiras na mata, impondo à natureza a supremacia da civilização; do fausto da economia cafeeira, que ergueu edifícios e modernizou a cidade.
São as representações hegemônicas construídas e consolidadas durante sete décadas da história de uma cidade. Seus principais personagens foram eternizados como nomes de escolas, ruas e avenidas. O exemplo de suas vidas, dedicadas ao trabalho, à família e à cidade, ainda hoje é requisitado para ‘abonar’ discursos e justificar a ascensão ao poder local de personagens que se auto-proclamam como herdeiros históricos desses ‘pioneiros’.
A historiografia oficial da cidade, notadamente em seus álbuns comemorativos, elegeu para serem os protagonistas dessa história apenas os representantes dos grupos hegemônicos da sociedade³. Os segmentos populares, quando aparecem, ocupam um espaço discreto de coadjuvantes. Ainda, no cenário dessa história urbana, também estiveram presentes certos grupos de personagens-outros, jogadores, prostitutas, cáftens, vagabundos. Considerados a ‘nata’ da marginalidade, deixaram de ser iluminados pelos holofotes oficiais e foram estrategicamente silenciados e descartados do passado oficial.
Considerada até recentemente um tema marginal e, por vezes, até mesmo exótico pela academia, a prostituição passou, a partir do final da década de 1970 e, principalmente na década de 1980, a ocupar um espaço significativo na produção de pesquisas em várias áreas das chamadas ciências humanas. Por um lado, abordagens sociológicas buscavam explicar a prostituição enquanto um fenômeno com origens de ordem econômica ou psicológica; por outro, a historiografia, influenciada pelo movimento da chamada ‘Nova História’ francesa,⁴ – que abriu novas perspectivas na forma de abordar o passado, aliado a emergência dos estudos sobre as mulheres e as relações de gênero⁵ – privilegiou as relações existentes entre a sociedade e o Estado e a postura desse referente às possibilidades de controle do comércio sexual ilícito.
Muitos desses trabalhos direcionaram suas análises para as décadas finais do século XIX e início do XX, período de importantes mudanças espaciais e demográficas no cenário urbano das principais cidades brasileiras, descortinando as diversas formas de discursos e práticas que intencionavam normatizar e segregar as prostitutas. Do discurso médico, dos embates nas esferas judiciais e legislativas, do tráfico de mulheres brancas, o estudo dos grupos marginalizados nas cidades, com destaque para os mecanismos de controle da prostituição e seus personagens, permitiram lançar outros olhares para o entendimento das complexas relações que balizaram os códigos sexuais e morais nas sociedades estudadas⁶.
Dentre as múltiplas possibilidades de abordagem que o tema permite, merece ser destacado o trabalho de Margareth Rago⁷. Ao direcionar sua pesquisa para a análise da prostituição paulistana, entre as décadas de 1890 e 1930, partindo de sua dimensão simbólica e imaginária, a autora buscou, por intermédio de uma multiplicidade de fontes – discursos médicos, legislativos, morais, literários e outros – iluminar a função agregativa da prostituição, desmistificando o alcance e o poder que as construções discursivas, de caráter normativo, tiveram sobre a prostituição. Também é providencial o alerta que Rago faz dos riscos que nós, historiadores, corremos, quando ao trabalharmos com as fontes oficiais – polícia, judiciário, legislativo -, bem como as representações sobre o tema na imprensa, de acabarmos reproduzindo, mesmo que de forma não intencional, o forte caráter normatizador dessas fontes⁸.
Especificamente relacionado à cidade de Londrina, destaco a pesquisa do historiador Antonio Paulo Benatti. Primeiro trabalho de fôlego sobre a história da prostituição local, sua pesquisa radiografou