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História ensinada, Cultura e Saberes Escolares (Amazonas, 1930-1937)
História ensinada, Cultura e Saberes Escolares (Amazonas, 1930-1937)
História ensinada, Cultura e Saberes Escolares (Amazonas, 1930-1937)
E-book360 páginas4 horas

História ensinada, Cultura e Saberes Escolares (Amazonas, 1930-1937)

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Sobre este e-book

Ensinar História não é ensinar patriotadas, falsear a verdade histórica para enganar crianças. A frase é atualíssima nesses dias em que professores sofrem ameaças de censura por defensores de uma (inexistente) escola despolitizada. Mas, ela foi anotada, em 1934, por Arthur Cezar Ferreira Reis em outro capítulo de sua luta em favor de um ensino renovado e pela implementação de aulas sobre História local na escola primária. Infelizmente, após oitenta anos, esses saberes foram expurgados da rede pública, revelando uma face dos embates pelo controle dos currículos a serem ministrados. Este livro, o primeiro publicado sobre a História do ensino de História no Amazonas, demonstra de quais maneiras as disputas pela definição dos conteúdos da disciplina aconteceram nos anos 1930. Para tanto, reconstrói espaços e práticas escolares do período através da análise da legislação produzida pelo Departamento de Instrução Pública e de fontes inéditas como a documentação escolar e a produção intelectual inscrita em impressos pedagógicos, como teses de concurso e a Revista de Educação, desvelando alunos e professores, concepções e métodos que fundamentaram uma história ensinada no e do Amazonas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de jan. de 2019
ISBN9788546212569
História ensinada, Cultura e Saberes Escolares (Amazonas, 1930-1937)

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    História ensinada, Cultura e Saberes Escolares (Amazonas, 1930-1937) - Tarcisio Serpa Normando

    Ufam

    INTRODUÇÃO

    O tempo é a substância de que sou feito.

    Jorge Luis Borges

    Luís Fernando Veríssimo, numa antiga crônica, escreveu que, volta e meia, relembrava duas passagens de sua meninice. Em uma das suas memórias, não recordava a razão de ter sido chamado por sua professora primária de santinho do pau-oco. Logo ele que sempre fora bem comportado, isto é, um aluno medíocre e disperso, mas incapaz de incitar a bagunça. Alguma deve ter aprontado, mas ainda que se remoesse não conseguia lembrar o que fizera. Daí em diante nunca parou de se perguntar se o adjetivo era merecido ou não. Em vão: os santinhos do pau-oco devem passar a vida se questionando, deduziu.

    A outra lembrança vinha das vésperas de entrar no ginásio: ao perceber que não tinha a menor ideia do que escrever em uma redação cujo tema era ociosidade (provavelmente estava com a cabeça longe quando a professora havia explicado o seu significado), resolveu escrever uma redação sobre um aluno que não sabe o que escrever em sua redação e resolve escrever sobre um aluno que não sabe o que escrever em sua redação.... Enfim, na hora da entrega do texto corrigido, ao invés de ter sua criatividade reconhecida, tirou um zero exemplar e a dura advertência pública que os espertinhos se davam mal naquela escola.

    A conclusão à qual Veríssimo chegou é que essas duas histórias não tinham importância alguma, eram apenas fatos de sua experiência escolar que teimavam em se fazer presentes na sua vida adulta, mas olha as cicatrizes que deixaram, chamava atenção, por fim.

    A razão de iniciar esta introdução retomando esta pequena crônica é que ela me recorda de um duplo compromisso assumido há vários anos: como professor, reconhecer que imprimimos, intencionalmente ou não, marcas em nossos alunos e, portanto, devemos atentar a isto em nosso ofício. Como pesquisador, pensar em que medida essas práticas docentes também sofrem marcas externas e, assim, identificar a partir de quais matrizes se dá a construção do conhecimento histórico escolar.

    Este livro nasceu como uma tese de doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA-Ufam). É, de certa forma, um chamamento para que, entre os historiadores e educadores locais, a História ensinada alcance o devido reconhecimento como objeto lídimo de investigações, aproximando concepções teóricas e procedimentos metodológicos que favoreceram a ampliação da noção de fontes, o refinamento do tratamento documental, a ressignificação do discurso oficial, a identificação de novos personagens, a valorização das entrelinhas e dos silêncios.

    Para tanto, pretende-se recuperar o ensino de História no (e do) Amazonas em suas experiências dos anos 30, período de forte intervenção na educação com vistas à consolidação da ditadura varguista. Trata-se, em última análise, de enxergar a História ensinada amazonense não como tema diletante e descontínuo, fruto de um exercício de erudição fugaz. Pelo contrário, este recorte da historicidade da disciplina se justifica por sua relevância para ajudar a compreender a atual conjuntura educacional, marcada pelo expurgo, desde 2010, desses saberes das grades curriculares da educação básica – algo que significou a negação do direito dos estudantes da rede pública amazonense em conhecer suas raízes, construir suas memórias e repensar sua atuação na sociedade. Assim, a pesquisa almeja alcançar aquilo que todo trabalho historiográfico persegue: a partir da análise das fontes compulsadas, apontar nexos processuais capazes de unir dois momentos (distanciados no tempo) numa explicação crível e compromissada que, neste caso, aponta argumentações em defesa da validade do ensino e da aprendizagem dos saberes históricos locais no âmbito escolar.

    História Ensinada, Culturas e Saberes Escolares no Amazonas (1930 – 1937) apresenta, em seu primeiro capítulo, O Ensino de História como Objeto de Pesquisa, as bases teórico-metodológicas que demonstram a ampliação do leque de interesses e justificam a aproximação dos historiadores com questões que até bem pouco tempo eram quase exclusivamente do métier de pedagogos: a história da educação, particularmente da escolarização dos saberes.

    Ele divide-se em três partes. Inicialmente problematiza os saberes escolares sobre História ensinada no Amazonas, assumindo suas discussões como necessárias para os alunos romperem com leituras naturalizadoras da sociedade e compreenderem como se constroem identidades, lendo no tempo como as sociedades lidavam com as diferenças. Por isso, denuncia o processo de expurgo da disciplina FHA, defendendo seu retorno encimado do argumento que lhe reconhece primazia no aprimoramento da consciência histórica dos alunos, isto é, de sua orientação identitária e para participação social.

    No passo seguinte, recupera suas raízes historiográficas com o objetivo de demonstrar as sendas tomadas para superar as resistências e enfrentamentos em sua busca de espaço na academia. Para tanto, foi realizada a identificação de autores e obras que marcaram a escrita de prescrições didáticas e análises de experiências e conjunturas, mesmo com todos os riscos de omissões, intencionais ou não, inerentes a um exercício dessa natureza. Assim, foram levantadas as contribuições de Jonathas Serrano, Murilo Mendes, Amélia Americano e Arthur Reis, até os anos 50 e dali até o final dos 80, de Dea Fenelon e Conceição Cabrini, principalmente. Na década de 90, numa conjuntura favorecida por novas políticas públicas para educação houve alguma ampliação no interesse pela temática, o que originou o surgimento de novos atores nesse cenário, como Selva Fonseca, Thaís Nívea, Décio Gatti Jr., dentre outros.

    Por fim, há identificação de duas chaves de compreensão para os estudos de História ensinada: cultura e disciplinas escolares, que ganharam musculatura na medida em que os investigadores aproximaram-se das abordagens possíveis no bojo da nova História cultural. São trazidas e discutidas neste item, também, as fontes coligidas que permitiram a escrita desta obra.

    O capítulo dois, intitulado Políticas, Sujeitos e Práticas Escolares no Amazonas dos Anos 1930, preocupa-se em apresentar em que cenário, com quais atores e a partir de quais ações se constituiu a educação pública amazonense ao longo dos anos 30 do século passado.

    Em meio à instabilidade no exercício do poder executivo na década de 20, o legado educacional aos anos 30 foi bastante precário, sendo patente tanto as insuficiências infraestruturais quanto a dificuldade para garantir acesso e permanência na escola para as crianças entre seis e quatorze anos. O sistema de interventorias implementado nem trouxe constância política, tampouco mudanças significativas para instrução.

    É identificado o modelo de racionalização do trabalho pedagógico amazonense: escolas isoladas, reunidas e os grupos escolares, além de uma novidade, as escolas de emergências, criadas para dar conta das características específicas de mobilidade populacional e peculiaridades geográficas do interior do Estado. O Regulamento Geral da Instrução Pública de 1932 é detalhado para compreender a lógica organizacional da instrução pública do Amazonas e como nela a disciplina História se insere.

    No segundo momento, são dadas vozes aos professores por meio do recobramento da Revista de Educação, veículo da longeva Sociedade Amazonense de Professores, na qual se expunham experiências educativas de outras regiões, pregavam em favor do método escolanovista em substituição às práticas nas quais os estudantes passivamente ouviam, copiavam e repetiam as lições, não raras vezes, sob ameaças psicológicas e físicas. O ensino de História é vislumbrado nas páginas da revista quando da crítica à sua didática recorrente. Há também o estudo do processo de ingresso do professor Paulo Eleutherio como lente de História universal no Gymnasio Amazonense Pedro II.

    No terceiro momento, são os estudantes que tem suas experiências desnudadas na comparação entre as memórias construídas e as informações coligidas em documentos escolares (livros de vida escolar e inquéritos administrativos) e oficiais (como o Diário Oficial, o RGIP). Verifica-se em que medida as representações que tomavam os ginasianos como jovens ordeiros, orgulhosos da farda que envergavam e, acima de tudo, patriotas preocupados com a política estadual distanciavam-se do que informava os processos abertos para apurar denúncias de agressões, depredação de patrimônio e até roubo.

    Discutidos os fundamentos teóricos e apresentada a dinâmica da política educacional e as interações entre os sujeitos escolares, o capítulo três, A História Ensinada no Amazonas, 1930 – 1937, identifica os saberes históricos ensinados nas escolas e sobre o Amazonas.

    Num primeiro tópico aponta-se espaços para o encontro desses saberes: o Igha cumpria o papel de confirmar através de estudos regionalizados a escrita da História alinhavada pelo IHGB. O jovem Arthur Cezar Ferreira Reis ocupou destacada posição na produção de uma identidade amazonense moldada no desejo de autonomia em relação ao Pará, mas sem colocar quaisquer dúvidas do pertencimento e do papel político que o Amazonas podia desempenhar no Estado varguista. Na escola, a História ensinada foi muito bem parametrizada nos documentos oficiais que organizavam a instrução pública: conteúdos, teorias, prescrições didáticas deixavam claro o que e como ensinar aos alunos. Os professores que procurassem ampliar sua erudição histórica poderiam encontrar em bibliotecas exemplares de livros didáticos que traziam concepções sobre o ensino diferentes para as escolas primárias e secundárias.

    O segundo tópico se dirige à História que era ensinada no Amazonas. Estudam-se as teses que foram produzidas para preenchimento de cadeiras em dois estabelecimentos de ensino profissionalizantes: a Escola Normal e a Escola de Comércio Sólon de Lucena. Os professores João de Freitas e Salignac e Souza, no começo dos anos 30, apresentaram seus trabalhos aspirando se tornar lentes das normalistas abordando temas de História universal. Thales Loureiro e Antônio Carneiro, em 1938, defenderam seus estudos para escola de comércio abordando discussões que se ligavam à História local. Uma vez que os assuntos a serem dissertados eram de livre escolha dos candidatos, eles sugerem uma ampliação do interesse sobre as raízes do Estado.

    No terceiro tópico, por fim, se investiga a História do Amazonas que era ensinada. Toma-se o posicionamento de Arthur Reis como indicativo de seu papel proeminente numa negociação para a inclusão de saberes históricos do Amazonas. Em dois momentos distintos e usando-se de dois veículos importantes – as páginas da Revista de Educação e o salão nobre do Gymnasio Amazonense – apontou não apenas o primário como o nível de ensino apropriado para o seu ensino como descreveu um programa de ensino em substituição ao que foi produzido em 1932 e que achou, em certos trechos, cômico. Reis propugnou contra os opositores do ensino da História local embasando argumentos de ordem pedagógica e política.

    Capítulo 1

    O Ensino de História como objeto de pesquisa

    O mínimo que se pode exigir de um historiador é que ele seja capaz de refletir sobre a história de sua disciplina, de interrogar os diferentes sentidos do trabalho histórico, de compreender as razões que levam à profissionalização de seu universo acadêmico. O mínimo que se pode exigir de um educador é que seja capaz de sentir os desafios do tempo presente, de pensar sua ação nas continuidades e mudanças do trabalho pedagógico, de participar de uma maneira crítica da construção de uma escola mais atenta às realidades sociais.

    António Nóvoa

    Saberes escolares sobre a história no/do Amazonas: entre políticas de descarte e estratégias de resgate

    Por uma valorização dos estudos sobre História ensinada no Amazonas

    Por volta do último quartel do século XX, ao superar a sedução estruturalista para construir um conhecimento atinado às invariâncias, sequências e recorrência dos fenômenos sociais, a História assumiu sua diversidade de interpretações, adequando seus objetivos e sua escrita aos diferentes públicos a quem se destinava. Nesse processo, a História ensinada (ou escolar) começou a ser reconhecida em suas especificidades, diferenciando-se de outras duas amplas abordagens, a acadêmica – caracterizada por uma narrativa metodologicamente controlada – e a massiva – voltada para circulação entre não especialistas¹.

    A História ensinada pode ser sucintamente definida como matéria de ensino nas escolas e objeto de políticas públicas de educação. Obviamente, ela dialoga com os tipos acadêmico e massivo, mas possui métodos baseados em regras pedagógicas bem definidas que mobilizam recursos e saberes próprios e cobram do professor solidez intelectual (como historiador) e profissional (na experiência docente). Seus objetivos mais destacados junto aos alunos são fazê-los pensar historicamente, ou seja, romper com leituras naturalizadoras da sociedade; e compreender como se constroem identidades, isto é, ler no tempo como se lidavam com as diferenças².

    Uma característica marcante da História ensinada é sua oralidade. Em função da efemeridade da aula, ela é fundamentada na verbalização e não na escrita de uma narrativa, mas isto não significa que ela produza um conhecimento de menor valor, afinal, na expressão de François Furet, fazer história é contar uma história. Logo, é necessário que haja um alargamento da noção de escrita/texto histórico, para se tomar a aula como texto, o professor como autor e o aluno como leitor, e, com isso, ampliar as possibilidades de criação de explicações históricas satisfatórias às necessidades de um determinado público³.

    Nesse sentido, estudar a História ensinada no Amazonas é uma tarefa necessária para apreender as variantes da construção do saber histórico escolar em meio as especificidades amazônicas, tirando da obscuridade questões atinentes aos métodos de ensino, às concepções históricas dos professores, às tentativas de instrumentalização pelo Estado, às representações dos alunos sobre o papel dessa disciplina no dia-a-dia, etc. Ao colocar essas questões numa escala de tempo, recuperando sua historicidade, torna-se possível identificar apropriações, resistências e negociações na trajetória do ensino local da História.

    Esta pesquisa se propõe a acompanhar esse percurso, entre 1930 e 1937, período em que no Amazonas foram colocadas em prática ações para consolidação da ditadura varguista e superação do descuido da instrução pública, quadro agravado pela volatilidade no executivo estadual e pela persistente letargia econômica do setor extrativista. Nesse cenário, o ensino de História foi influenciado por um discurso em prol de uma identidade nacional pacificadora e livre de resistências, estratégia utilizada para o agrupamento de apoio ao líder do regime⁴.

    Porém, na medida em que o conhecimento histórico não se limita a explicação diletante de um objeto sem enxergá-lo processualmente, pelo contrário, nos permite compreender as heresias que fizeram de nós o que somos hoje, adicionalmente esta investigação pode fornecer pistas para pensar as políticas contemporâneas para o ensino de História, a exemplo do que foi implementado no ano de 2010 pela Secretaria Municipal de Educação de Manaus (Semed)⁵.

    O expurgo dos saberes escolares sobre História do Amazonas

    Naquele ano a Semed decidiu negar aos seus alunos, o direito à aprendizagem da História local ao extinguir a disciplina Fundamentos de História do Amazonas (FHA). A medida teve um efeito devastador, pois como a Secretaria de Estado de Educação e Qualidade de Ensino (Seduc) fez algo semelhante uma década antes, então, desde 2014, nenhum discente que concluiu o ensino fundamental na rede pública teve contato sistemático com o estudo das raízes do lugar em que vive⁶.

    O responsável por esse expurgo foi o Sr. Amazonino Armando Mendes, então Prefeito de Manaus, assessorado pelo Prof. Dr. Vicente de Paula Queiroz Nogueira, que exercia a função de secretário de educação. Político conservador de presença recorrente no poder executivo amazonense, ao longo de seus governos Mendes nunca estabeleceu ações consistentes e duradouras para o setor educacional. A corroboração ao fim dos estudos sobre a História do Amazonas apenas exemplificou seu recorrente desrespeito com os docentes, sua inobservância das normas emanadas do Conselho Municipal de Educação (CME) e, principalmente, seu descompromisso com uma educação que permita aos estudantes se assenhorar da herança humanística a que tem direito e compreender seu protagonismo nas transformações sociais⁷.

    A justificativa oficial para a retirada do componente curricular foi a adequação da rede ao ensino fundamental de nove anos. Porém, podem-se acrescentar duas outras razões não assumidas de público. A primeira orbita em torno do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do município, consideravelmente abaixo dos números delineados para o Estado e para União pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (INEP). Assumindo um pragmatismo de curto prazo, a Semed priorizou as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, cujos conteúdos são aferidos pela Prova Brasil, aumentando-lhes a carga horária, em detrimento da parte diversificada do currículo⁸.

    O segundo motivo tem um cunho acentuadamente político: se trata de uma estratégia de esquecimento manifesto das origens do grupo que se reveza nas estruturas de poder do governo desde 1982. Na última configuração do programa de FHA, o conteúdo mais contemporâneo que a disciplina trabalhava já se limitava a uma análise política e econômica do Amazonas na distante conjuntura do Estado Novo. Não havia, por tanto, espaço naquele currículo formal para perquirir, por exemplo, como se constituíram as forças políticas estaduais a partir do fim do regime militar⁹.

    Mesmo assim, ante a mínima possibilidade do professor manejar discussões indesejadas em currículos ocultos, a opção pela extinção da disciplina se constituiu num meio mais seguro e eficaz para suprimir quaisquer possibilidades de se criar uma geração educada e crítica, potencialmente capaz de questionar as oligarquias que se mantem enraizadas no comando do Estado¹⁰.

    Para cumprir o que preconiza a legislação, a Semed precisou encaminhar a mudança de estrutura curricular para ser analisada pelo CME. O fez, literalmente, no encerramento do ano letivo, em 17 de dezembro de 2009. O parecer emanado pelo Relator do processo, o conselheiro Francisco de Assis Costa de Lima, e aprovado unanimemente foi claro: mesmo não havendo, em âmbito municipal, previsão legal de obrigatoriedade da disciplina, a orientação era de migração dos conteúdos de FHA para disciplina História que também deveria absorver sua carga horária¹¹.

    Entretanto, a estrutura de sexto ao nono ano do ensino fundamental posta em funcionamento a partir do ano subsequente, desrespeitou a decisão da plenária, pois adicionou apenas metade da carga horária e não dispensou orientações oficiais sobre a intersecção dos conteúdos locais com aqueles tradicionais da História¹².

    Os sujeitos escolares mais diretamente afetados nesse processo, professores e alunos, não tiveram suas vozes escutadas. Especialmente os docentes foram ignorados pelo uso de um estratagema questionável: no último bimestre de 2009, representantes dos setores pedagógicos da Semed resolveram conversar com alguns professores da disciplina sobre suas práticas de ensino. As falas docentes denunciaram dificuldades provenientes da indisponibilidade de impressos didáticos de qualidade e o abastecimento precário das bibliotecas escolares de livros sobre a História local. O que a Secretaria preferiu escutar seletivamente foram apenas argumentos para perpetrar a retirada da disciplina, desconsiderando o papel que deveria exercer no fomento da produção de material para uso pedagógico e sua responsabilidade em proporcionar condições para o aprimoramento dos saberes docentes¹³.

    Outra questão, de viés prático, se colocou após o expurgo de FHA: um número considerável de professores teve diminuída a carga horária. As soluções encaminhadas pela Secretaria foram duas: dividir a lotação do docente em quantas escolas fosse necessário para completar suas horas de trabalho semanais ou complementar sua carga com outras disciplinas. Em ambos os casos, as condições de trabalho desse profissional do magistério tornaram-se mais precárias¹⁴.

    Esse expurgo, da forma como foi feito, demonstrou quanto a Secretaria Municipal de Educação se esforçou para impedir que práticas didático-pedagógicas ligadas à construção do conhecimento sobre a História local estimulassem o desenvolvimento de uma consciência histórica entre os alunos.

    O aprimoramento da consciência histórica como argumento para manutenção da História do Amazonas

    Apesar da convergência entre professores e as falas oficiais dos sistemas de ensino quanto ao objetivo mais geral da História escolar, isto é, desenvolver nos alunos as capacidades de que o cidadão precisa para participar da sociedade de maneira autônoma e refletida, o que se percebe é a continuidade de didáticas aplicadas para moldar consciências e ditar obrigações e comportamentos. Essas práticas acabam por impedir o aprimoramento de uma consciência histórica que permitiria uma dupla orientação aos discentes: uma voltada para identidade, ao contribuir numa reflexão sobre si; e outra para práxis, ao estimular que se pense sobre o papel desempenhado na sociedade¹⁵.

    A História ensinada participa intensamente dos jogos de saber-poder dos sistemas de educação porque colabora na constituição das identidades dos outros – aí reside a importância da Semed em manter em sua estrutura curricular a disciplina FHA: permitir que seus alunos construam suas identidades pessoais e coletivas para saber agir no mundo em que estão inseridas, a partir da identificação, na História local, dos determinantes socioeconômicos, culturais e políticos de suas origens¹⁶.

    Se na própria Secretaria existisse uma reflexão sobre a historicidade do ensino de História no Amazonas, ela teria percebido que a subsunção da disciplina se opôs às lutas de professores, em especial de Arthur Cezar Ferreira Reis que, há cerca de oitenta anos, promovia em seus escritos e palestras a necessidade de trazer para a sala de aula a História local mostrando os benefícios adicionais aos alunos quando a disciplina deixava de ser fastidiosa para ser relacionar com as ações dos homens e com as questões da terra natal.

    Portanto, investigar como a História ensinada se configurou nos anos 30 em termos metodológicos, de concepções históricas e nas negociações necessárias para sustentar seu ensino no primário, é possível encontrar elementos que permitam refletir sobre o expurgo de FHA, atrás de seus significados nos jogos de saber-poder contemporâneos.

    Em que pesem esses argumentos, infelizmente, a História ensinada ainda ocupa um lugar marginal na academia e se faz necessário construí-la teórica e metodologicamente como um objeto de pesquisa legítimo.

    A história ensinada como objeto de pesquisa: em busca de suas raízes historiográficas

    História ensinada, um objeto em busca de legitimidade

    Na última década ficou evidente o crescimento no país do interesse geral por informações, produtos e abordagens associados à área de História, veiculados por diferentes suportes. Na literatura, alguns dos mais recentes best-sellers são reportagens com fundo histórico ou pesquisas historiográficas sobre temas polêmicos. Estão consolidadas no mercado varejista revistas voltadas para um público de não especialistas de diferentes faixas etárias. Operadoras de TV por assinatura ampliaram o número de canais cujo mote central é a compreensão da experiência humana no tempo. Games on-line ou para plataformas diferentes reinterpretam eventos do passado em busca de panos de fundo verossímeis para suas tramas¹⁷.

    Um campo da História, entretanto, ainda parece impermeável a este boom: o que se liga ao ensino – o que reflete em grande medida o espaço que essas discussões ocupam na academia. A História Ensinada busca ainda melhor lugar entre os interesses dos historiadores brasileiros, ainda que se observe algum crescimento nas publicações de dissertações, teses e livros sobre o tema, conforme mostram sites de bibliotecas digitais de algumas das principais Instituições de Ensino Superior do país¹⁸.

    A partir de fins dos anos 80 esse campo de pesquisa começou a se acomodar nos espaços de produção historiográfica. Antes disso, num momento de incessantes lutas pela redemocratização do Brasil, os historiadores estiveram às voltas com preocupações de outras naturezas: grosso modo, alguns buscaram compor sínteses políticas e econômicas que pudessem explicar os processos de formação da nação enquanto outros optaram por desnudar categorias e sujeitos silenciados, revelando suas faces, aspirações e resistências em trabalhos de história social, principalmente¹⁹.

    A pesquisa histórica realizada neste período entrincheirou-se em temas que, acreditava-se, eram mais autênticos para contribuir nas lutas contra os modelos excludentes de organização político-econômica e social impetrados pelos governos autoritários. Neste contexto, não só o conjunto de professores dedicados às pesquisas sobre ensino de História era reduzido como os resultados das investigações eram postos em segundo plano na medida em que seus fóruns de divulgação e discussão acadêmica não alcançavam grande expressão no métier dos historiadores brasileiros.

    O resultado dessa desqualificação foi uma historiografia do ensino de história praticamente desconhecida, inclusive, no interior dos próprios cursos de licenciatura. De modo perverso, as pesquisas sobre os métodos, os embates teóricos, os sujeitos, os desafios da disciplina escolar não interessaram justamente à História²⁰.

    Prescrições e análises I: Uma História do ensino de História até os anos 80

    Nestes termos, não é despropositado pensar que os professores graduados neste ínterim

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