Escrita da História e construção do regional na obra de Arthur Reis
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Sobre este e-book
a Amazônia, Arthur Reis foi também, ao longo do tempo, taxado como um historiador "positivista", "conservador", "autoritário" ou "superado".
No caso de Arthur Reis, que publicou regularmente de 1931 ao início dos anos 1980, faz-se necessário problematizar o que é tomado como sua "obra", analisando a sequência cronológica dos livros publicados, discutindo as permanências e as mudanças nas posturas
de Arthur Reis, em seus pontos de vista e referências bibliográ cas, assim como vincular sua produção intelectual com seu itinerário social desde que lançou seu livro de estreia, até o momento em que experimenta consagração no campo intelectual brasileiro.
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Escrita da História e construção do regional na obra de Arthur Reis - Hélio da Costa Dantas
ímpar.
Prefácio: A construção do lugar chamado Amazônia
A publicação de um livro consagrado a entender o pensamento de Arthur Cézar Ferreira Reis é muito oportuna. O historiador amazonense (1906-1993), cuja extensa obra representou o maior esforço individual de explicação dessa região do Brasil, não havia merecido, até o momento, um trabalho a ele dedicado. Com o estudo de Hélio Dantas, que agora vem à luz, um importante passo é dado na direção de compreender a formação de uma matriz reflexiva que balizou e baliza muitas das abordagens posteriores sobre a Amazônia.
Muitas são as possibilidades de estudo da obra de Arthur Reis, dado o interesse variado que esse historiador demonstrou em seus livros: desde a pretensão de abarcar toda a história do Amazonas, num de seus livros mais difundidos⁹, até a de contar a história de um pequeno município paraense. Entre estes dois extremos, Arthur Reis também orientou sua atenção para os aspectos ligados à presença portuguesa e à administração colonial da região, para os movimentos migratórios na formação do estado do Amazonas, para a economia local, com destaque para a atividade extrativa da borracha, para a presença indígena, para o ensino de História.
Depois de se formar em Direito, em 1927, no Rio de Janeiro, Arthur Reis retornou ao Amazonas, onde veio a ser professor e membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, exerceu cargos políticos de confiança, dirigiu um instituto científico e foi governador do Estado. Sua trajetória apontaria para uma coerência entre as atividades que exerceu e o interesse manifesto pela história local que aparece em seus escritos. Isto torna tentador querer explicar a produção intelectual de quem quer que seja pela sua biografia, num entendimento de que a experiência de vida é o que naturalmente determina o modo de pensar. Na presente obra, seu autor nem cedeu a essa tentação, nem, tampouco quis negar estatuto científico à dimensão do vivido individual
, que é uma das formas de se considerar a biografia, como mostra François Dosse¹⁰.
De todas as possibilidades de abordar a obra de Arthur Reis, a melhor, bem provavelmente, está em não considerar sua bibliografia como resultado da vida que teve, mas como parte dessa mesma vida. Sob essa ótica, sua obra não representa o resultado do que quer que seja; ao contrário, ela é a própria construção, partícipe no centro do processo de constituição de sua carreira. Não é o telhado, mas, sim, o alicerce; não é a subjetivação da experiência, mas, sim, a própria experiência.
Existe ainda, claro, outra dimensão implicada nisto que foi chamado experiência: trata-se do contexto no qual os escritos de Arthur Reis surgiram e foram difundidos. Como fica demonstrado no presente texto, Reis foi um dos responsáveis pela formação desse contexto em que ele próprio viveu e em que produziu suas obras. Esta ideia, aparentemente simples, é tão mais válida à medida em que aquilo que se entende por Amazônia – e que será o tema mais presente nas obras de Arthur Reis – é efeito de uma concepção datada, cujo adensamento teve a importante e decisiva contribuição desse historiador. E esse adensamento, como será demonstrado, tem suas consequências retroativas, pois age sobre o passado, dotando-o de uma tradição, de uma cultura, de uma história. A Amazônia, para corresponder a um lugar, também teve de ser um devir, um devir que sempre esteve lá.
Essas condições em que uma obra historiográfica é produzida, quando examinadas, reacendem o debate que Hobsbawm soube muito bem descrever ao dizer que toda história é história contemporânea disfarçada
¹¹. Não é, contudo, das tarefas mais fáceis apontar em qual contemporaneidade se situa a obra de Arthur Reis, pois, se sua primeira publicação, História do Amazonas, datou de 1931, quando ele contava apenas 25 anos de idade, a última, publicada em vida, foi um artigo de 1991 na Revista do IHGB. E muitas foram as transformações verificadas ao longo desse curto século XX
, tal como o caracterizou, novamente, Hobsbawm, desta vez em Era dos Extremos¹². Tanto no Brasil, como no restante do mundo, são notórias as intensas e, muitas vezes, bruscas, passagens que a sociedade ocidental experimentou. Do entre-guerras ao fim da União Soviética; da ascensão varguista ao impeachment de Fernando Collor de Melo, com o qual viera uma abertura inédita do país às importações.
Ao seu modo, esta região, conhecida como Amazônia, e, mais especificamente, o estado do Amazonas, viveu essas mudanças, como um lugar, em grande medida, ainda apartado do restante da nação. São inteiramente dignos de menção os esforços realizados a fim de reunir esta porção do país ao seu restante: desde as primeiras décadas do século XX, com a instalação das linhas telegráficas, passando pelas campanhas de integração do período compreendido pelo varguismo, que estimulou o movimento migratório para a região Norte, até, ulteriormente, o Plano de Integração Nacional, na década de 1970, em cujo contexto foi criada a Zona Franca de Manaus.
É nesse quadro de imbricações, envolvendo problemáticas de toda natureza – espaciais, políticas, culturais, econômicas –, que se situa a obra de Arthur Reis. Faz, portanto, todo o sentido abordar sua obra jogando luz em suas concepções de colonização e civilização, em combinação com o estudo do papel do Estado e das elites envolvidas nesse processo, como se propõe o presente volume. Isto representa tomar o pensamento de Arthur Reis naquilo em que ele se apresenta como formador das almas locais e nacionais e menos como obra de referência factual.
Ao fazê-lo, Hélio Dantas demonstra consciência plena das condições de seu ofício de historiador, o que faz de seu texto também uma importante referência de reflexão teórica e metodológica. Juntam-se a essa qualidade, importantes passagens de erudição historiográfica, em que habilmente problematiza e costura diferentes tradições narrativas, tanto com o propósito de compreender o que faz da Amazônia um conceito aparentemente atemporal, naturalizado
, como o de não incorrer em anacronismos.
Acompanhar a trajetória percorrida pelo conceito de Amazônia, até chegar a ser "instaurada enquanto um objeto de saber", representa, no caso desta obra, também testemunhar como se dá a construção do raciocínio historiográfico que seu autor soube muito bem desenvolver e que, agora, graças ao apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas, pode ser compartilhado com um merecido público ampliado.
Manaus, 3 de julho de 2014
James Roberto Silva
Capítulo 1: Reconstituição da trajetória intelectual
Quais os fatores a serem levados em consideração no momento de análise e interpretação de textos, e no caso deste livro, textos historiográficos? Buscou-se evitar o caminho fácil das generalizações interpretativas quando se analisa a obra
de um autor. No caso de Arthur Reis, que publicou regularmente de 1931 ao início dos anos 1980, faz-se necessário problematizar o que é tomado como sua obra
, analisando a sequência cronológica dos livros publicados, discutindo as permanências e as mudanças nas posturas de Arthur Reis, em seus pontos de vista e referências bibliográficas, assim como vincular sua produção intelectual com seu itinerário social desde que lançou seu livro de estreia, até o momento em que experimenta consagração no campo intelectual brasileiro e por fim, quando suas ideias ganham ampla difusão tanto no senso comum acadêmico quanto no popular, passando a ser alvo de estudos e pesquisas específicos.
1. Análise e interpretação de textos
Para além do debate internalismo/externalismo e da abordagem texto/contexto¹³, alternativas teóricas mais eficazes para enfrentar esta questão têm se apresentado. Uma delas, das quais se fará grande uso nesta análise, é a do sociólogo Pierre Bourdieu, que trabalhou sobre o conceito de campo na intenção de superar o extremismo
das abordagens supracitadas. Conforme este sociólogo francês
entre esses dois polos [internalismo/externalismo], muito distanciados, entre os quais se supõe, um pouco imprudentemente, que a ligação possa se fazer, existe um universo intermediário que chamo o campo literário, artístico, jurídico ou científico, isto é, o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas.¹⁴
Partindo desta perspectiva teórica, admite-se que os agentes sociais, movimentando-se segundo uma lógica social própria, tendem a agir e produzir suas obras em função desse jogo social específico e delimitado. É em função dessa delimitação que as complexas operações de internalização de valores sociais externos podem ser mais bem compreendidas e avaliadas. É a partir do jogo social próprio desse microcosmo social – que impõe suas regras e exige estratégias determinadas – que as vinculações com agentes sociais externos, tais como aqueles ligados à política, ganham outra dimensão: não mais uma relação direta de reflexo, mas uma relação mais indireta, refratada
. É claro que, dependendo de cada conjuntura, o grau de ingerência da política no âmbito do campo de produção simbólica poderá ser maior ou menor, dada a maior ou menor autonomia do campo intelectual, por exemplo.
Caso levemos em consideração a ideia de contexto
para compreendermos como uma determinada obra se tornou possível e viável, devemos atentar para quais contextos, de fato, se tratam. Sem dúvida deve empreender-se uma contextualização histórica, afinal é forçoso se compreender as linhas gerais e o quadro abrangente onde irá se localizar a obra e o autor. No entanto, esse quadro geral, por si só, não será capaz de levar adiante a identificação dos elementos textuais. Tal abordagem mais internalista
deverá combinar-se, portanto, com aqueles elementos mais externos. É dessa combinação bem dosada entre uma dimensão e outra que a noção de campo vem auxiliar em uma análise que permita desvelar os processos de criação intelectual, evitando-se os equívocos comumente cometidos pela brutalização da relação entre obra/autor e contexto socioeconômico. E na medida em que se exercita esse reducionismo, identificando- se o contexto que de fato se trata, estabelecendo-se os diálogos intertextuais mais reveladores das resoluções encontradas pelo autor e obra em foco, encontra-se fatalmente o horizonte discursivo que viabilizou a emergência da obra, mas horizonte esse que não pode se ater simplesmente à sua dimensão discursiva.
Torna-se central para o entendimento do conjunto de uma obra, que se leve em consideração a movimentação dos diferentes atores sociais legitimamente autorizados a falar sobre determinado assunto. O jogo das representações somente passa a fazer sentido quando a movimentação dos atores sociais é levada em conta, buscando-se entender qual é a lógica social que preside tal movimentação. Pois é essa movimentação que torna o vínculo entre a dimensão da produção simbólica e a arena política, por exemplo, mais explícito, sem que se caia nos recorrentes engodos de fazer-se uma ligação direta e fácil entre produção intelectual e grupos sociais específicos, tais como classes dominantes ou elites. Uma coisa é reconhecer a existência desse vínculo, outra mais difícil é demonstrar como tal vinculação é operada em cada livro em particular. Os riscos de se cometer generalizações e a própria ânsia de buscar modelos já prontos fazem com que equívocos grosseiros sejam cometidos quando afirma-se, por exemplo, que um