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Faces da Cura
Faces da Cura
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E-book207 páginas3 horas

Faces da Cura

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Sobre este e-book

Unidos pelo frágil vínculo da solidariedade e pelo tema da cura – e suas facetas –, os quatro personagens são marcados por tragédias familiares e passam a se relacionar proporcionando, uns aos outros, descobertas e aprendizados sobre o amor e a tolerância sexual e religiosa.Ambientado em Brasília, este romance narra o abandono de uma criança pobre e a maneira como foi acolhida por desconhecidos. A partir disso, o destino e as ideias desses marcantes personagens se completam e se entrecruzam, ao mesmo tempo que se configura o perfil social e psicológico deles.Uma saborosa experiência repleta de temas atemporais, e alguns até mesmo em voga atualmente – como a "cura gay" –, narrada de forma dinâmica e surpreendente. minor-bidi;mso-ansi-language:EN-US;mso-fareast-language: EN-US;mso-bidi-language:AR-SA'>Recheada de paixão, mistério, ação e intrigas políticas, a trama é tão perturbadora quanto fascinante.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de out. de 2015
ISBN9788542806762
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    Faces da Cura - Mauricio Nardelli

    obra.

    I

    AS CONDIÇÕES DE VIDA NO ASSENTAMENTO ONDE Naldo nasceu eram extremas; tão ruins que a sorte e a esperança desanimadas, insuficientes, quase nunca aconteciam por lá. Precária favela vizinha à cidade-satélite do Paranoá – iniciada na década de 1990 por famílias miseráveis recém-chegadas a Brasília –, tomou forma caótica semelhante à de um cinzento campo de refugiados empoeirado de algum sangrento conflito armado africano. Ali surgiam pessoas de todas as cores e credos, igualmente desesperadas, fugidas da fome causada pela seca, da escassez de empregos em suas cidades e por outras questões da triste realidade brasileira – brotavam. Foram amontoando-se nas proximidades da cidade e constituíram-se à força como uma comunidade marginal sem qualquer apoio governamental. Não tinham água, esgoto, calçamento, segurança, eletricidade, posto médico, sopão, nada; nem ônibus passava por lá. O arame farpado que dividia a terra em minúsculos lotes fora obtido durante a madrugada, furtado de cima dos muros de um condomínio da casas que teve o azar de ver surgir ao seu lado imensa invasão. O governo e os mais influentes membros da sociedade da Capital Federal, naquela época, entendiam que, apesar de não faltarem recursos financeiros, se oferecessem condições mínimas de vida para as pessoas dessas comunidades clandestinas, atrairiam cada vez mais gente pobre e indesejável para a cidade deles. Porcos, cabras e galinhas eram criados soltos dentro do assentamento. Os pais de Naldo não matavam as galinhas para comê-las, pois, em longo prazo, os ovos que elas poriam eram mais importantes. Não possuíam um fogão e, mesmo que possuíssem, não havia dinheiro para comprar gás; fogueiras eram perigosas e mal vistas pelos vizinhos – muitos deles destemperados e agressivos –, que temiam as graves consequências que um incêndio produziria nas rústicas estruturas construídas com pedaços de plástico e Madeirit. Seus pais, por não disporem de muita opção, alimentaram Naldo com ovos crus desde muito cedo, o que fez com que aprendesse a comê-los naturalmente, saboreando a iguaria. Como não havia sido programado para se enojar, deleitava-se comendo ovos crus. Através de um pequeno buraco que fazia na casca, tomando cuidado para não desperdiçar o alimento, sugava a clara e a gema de dentro deles com a voracidade de uma jaritataca esfomeada.

    Sua mãe se ocupava pedindo esmolas nas casas do Lago Sul, bairro de classe média alta abastada, onde a maioria suntuosa das residências é ampla e possui piscinas, churrasqueiras, saunas, e, pelo menos, dois carros na garagem. Nas quadras e conjuntos residenciais há apenas um acesso para entrada e saída. São raras as esquinas. As crianças do lugar nascem em maternidades sofisticadas, pelas mãos de obstetras e de enfermeiras de gabarito; recebem todas as vacinas imprescindíveis e são bem nutridas; frequentam excelentes escolas particulares. Porém, muitas delas não são felizes se não podem calçar o tênis de grife da moda, ficam mais infelizes ainda quando não conseguem exibir brinquedos modernos tops de linha.

    Com o propósito de logo sensibilizar as senhoras do bairro nobre nas ocasiões em que perambulavam a pedir esmolas, ainda muito pequeno Naldo era carregado no colo de sua mãe. Havia de prover o sustento da família, já que o pai, sempre bêbado e agressivo, em nada colaborava. A criança febril, mal nutrida, macilenta bastante morena de sol era exposta enrolada em tecido barato presa ao tórax da mãe, tal e qual um marsúpio. As reações ao espetáculo deprimente eram as mais angustiosas. Os olhos de boa parte das senhoras para as quais suplicavam esmola lacrimejavam emocionados diante do frágil estorvo humano. Outras, ao contrário, desprezavam a encenação dolorosa, indiferentes. Havia, também, as que se assustavam com a violência estética do quadro e até mesmo as que se indignavam e que repreendiam a mãe mendicante, chamando-a de irresponsável; desumana.

    O expediente da mãe era providencial, na maioria das vezes, as desprevenidas senhoras faziam com que mãe e filho esperassem à porta até que elas providenciassem provisões e lanche para os dois. Porém, jamais uma delas se interessou fraternalmente pela situação da pedinte, como chegara àquela condição paupérrima? Jamais ela recebeu auxílio produtivo além da piedade paternalista, nunca orientação prática e educativa. Davam só a caridade imediata, sem outro compromisso. Alienada, a mendiga aceitava o donativo aleatório, paliativo, para ela era o que importava.

    O menino cresceu sem certidão de nascimento. Quando saiu sozinho pela primeira vez para pedir esmolas Naldo tinha, aproximadamente, quatro anos de idade; sequer havia aprendido a falar direito. Outro irmão havia nascido e sua mãe estava de resguardo. Providenciar comida para todos continuava a ser uma necessidade diária inadiável. Por isso, Naldo foi trabalhar como pedinte com os meninos que viviam no mesmo assentamento; crianças um pouco mais velhas que ele. Passou a ser a mascote de um pequeno grupo de garotos indigentes.

    Saiam cedo do embrião de favela direto para o ponto de ônibus da linha Paranoá-plano piloto, a aproximadamente um quilômetro de distância percorrida a pé pelo acostamento de uma estrada interestadual muito movimentada.

    O transporte público precário era detestável, pois quem mandava na cidade utilizava carro próprio. Somente pessoas pobres usavam transporte público e o único disponível era o ônibus; não havia trem nem metrô. Táxi, impensável. Nada além do ônibus. Após longa espera pelo coletivo, as crianças ainda imploravam ao trocador que ele as deixasse passar por baixo da roleta. Se não viajassem de graça, era problema, enxotadas, saltavam humildes para esperar durante uma hora o próximo lotação. Eis a primeira dificuldade do dia e precisava ser habilmente resolvida. Assim como as madames, cada cobrador de ônibus reagia de uma maneira própria, quando a turma andrajosa aparecia. Os rabugentos e frustrados descarregavam nos tristes espantalhos infantis a raiva enrustida que traziam no coração, recusando-se malvados a abrir a porta para que entrassem pelo menos. Embora, oprimidos também, não se identificavam solidários com os pequenos párias sociais, recusavam-se a ajudá-los, esquecidos de que toda infância pobre é parecida. Bastaria olhar para outro lado enquanto os meninos passassem por baixo da roleta, mas não, preferiam transmitir o problema para o colega do próximo coletivo, deixar que esperassem por alguém mais benevolente. De qualquer forma, do jeito fácil, ou difícil, o grupo sempre conseguia chegar aonde queria.

    Ao circular mendigando pelo Lago Sul o grupo maltrapilho daquelas crianças pedintes via de longe os outros petizes, saindo da aula de inglês, o motorista à espera na porta da academia, lanchando no McDonald’s. As roupas de marca, os celulares caros, os ouvidos conectados ao som importado. As bicicletas cromadas radicais, patins de titânio, skates, carrinhos de ferro Ferrari vermelhos, bonecos de super-heróis cheios de acessórios, pequenos aviões planadores. Tudo aquilo parecia aos pequenos párias extremamente fascinante. Na companhia da sua mãe, jamais conseguira observar tanto. Mas no meio da matilha esfarrapada tudo era permitido. Para Naldo, as crianças ricas lhe pareciam muito diferentes dele; quase outra categoria de gente, talvez vinda de outro lugar, possível somente em filme. Não se sentia semelhante a elas.

    Certa vez, num fim de tarde de um dia difícil, ao tocarem a campainha de uma casa rica para pedir comida e algum dinheiro miúdo, a esmola foi algumas bananas com um ovo cru. Não era comida suficiente para todos. Pequeno e fraco coube-lhe o ovo. O menor da turma nunca ganhava uma disputa. Como estava acostumado a comer proteína em natura, abriu um orifício na casca do ovo, como estava faminto sugou clara e gema quase de um só gole, vigorosamente e com tanta naturalidade que despertou a atenção da piedosa dona de casa que acabara de entregar o modesto donativo. Os demais meninos não tinham o mesmo costume de sorver ovo cru e também acharam a cena um tanto repugnante e esquisita, coisa de bicho do mato. No entanto, o mais esperto da garotada percebeu que a senhora estava perplexa com o episódio, nunca vira um desjejum de ovo inglês daquele jeito grotesco, foi demais para sua sensibilidade e estômago frágil, precipitada deu as costas e voltou para dentro de casa.

    Depois do acontecimento o bando pedinte de crianças, instigado pelo líder, abordava os meninos ricos, propondo aposta com desafio que o raquítico mirrado Naldo era capaz de sugar ovos crus na casca. Num primeiro momento, os riquinhos duvidavam desconfiados que alguém seria capaz de algo tão asqueroso: engolir o conteúdo de ovos crus; para eles era proeza inacreditável. Estimulados pela curiosidade e por um pouco de sadismo, corriam para casa, traziam os ovos, queriam ver de perto tal espetáculo de circo. Com isso, além de assegurar a ingestão de muita proteína na barriga, Naldo virou uma fonte de dividendos para a descamisada trupe, em sentido irônico, uma verdadeira galinha dos ovos de ouro.

    Normalmente, os meninos dividiam o dinheiro angariado pelo golpe, ao cair da noite, antes de pegarem o ônibus de volta para o Paranoá. Não havia critérios bem definidos entre eles para a divisão do lucro apurado. As regras surgiam na hora! Ainda assim, durante as duas primeiras semanas com o grupo, Naldo sempre voltou para casa com suficiente dinheiro para entregar à sua mãe que abençoava o filho, satisfeita com a quantia providencial.

    Naldo pedia auxílio com o mesmo grupo de meninos no comércio da QI 15 quando foi sugerido que se dirigissem ao setor de chácaras da QI 05, lugar ainda não explorado por eles. Seguiram a pé, aproveitando as oportunidades surgidas pelo caminho. Ao passarem perto do Centro Comercial Gilberto Salomão, os garotos decidiram ir até lá para tentar a sorte e observar o que acontecia. O lugar era uma novidade para Naldo. Havia no local muitos restaurantes, lojas de roupas, de artigos para piscina, farmácias, um supermercado, escritórios, enfim, diversos tipos de comércio próspero e variado.

    Passava das duas horas da tarde e ainda não haviam almoçado. A quantia conseguida até aquele momento dava para todos comerem bem só uma vez. Apenas resolvia em parte o problema. Seguiram adiante, quando, na área interna do centro comercial, foram atraídos pelas magníficas máquinas barulhentas e multicoloridas de uma loja de fliperama. O fascínio foi imediato, o brilho de novidade jamais vista arrebatava. Ficaram encantados com o que viam.

    Apesar de seduzido pelo som onírico e pelas imagens coloridas incríveis das máquinas de pinball, devido à sua baixa estatura, Naldo não conseguia alcançar os botões de controle, nem enxergar o que estava se passando acima, e, por isso, não conseguiu jogar direito. Restou-lhe, portanto, o prazer de observar em torno, enquanto seus colegas gastavam, prodigamente, todo o dinheiro do almoço deles.

    As crianças se divertiram tanto que perderam a fome e não perceberam a tarde passar. Esqueceram-se do tempo e da falta que o dinheiro gasto lhes faria. Riram muito, abraçaram-se, comemoraram a cada vitória, a cada vez que passavam de fase em alguma aventura virtual. Com o fim dos recursos de que dispunham, decidiram voltar ao trabalho. Queriam ganhar mais dinheiro para jogar de novo. Como o ambiente da loja era sombrio com a finalidade de destacar as luzes e os efeitos especiais das máquinas, não notaram que já havia escurecido. Estava na hora de voltarem para casa. O penúltimo ônibus para o Paranoá passava pelo lugar às nove horas da noite. Estavam famintos, atrasados e falidos financeiramente. As lojas do centro comercial estavam quase todas fechadas ou fechando. Era uma quarta-feira, dia em que o movimento noturno dos restaurantes era mínimo. Não sabiam como conseguir o dinheiro necessário para as passagens de volta e não contavam com tempo suficiente para tanto, e não havia quase ninguém para pedirem esmolas. Dependeriam da boa vontade generosa do cobrador do ônibus que passasse que vinha geralmente lotado e, por isso, talvez nem se detivesse no ponto de parada do Gilberto Salomão, pelo excesso de passageiros. O bem-estar daquelas crianças estava por um fio.

    Mesmo contra a probabilidade desfavorável, partiram em direção ao ponto de parada, confiantes e felizes. Algo mudara sensivelmente naquelas crianças. Sentiam-se livres, realizadas, invencíveis. Haviam acabado de viver aventuras incríveis, antes inimagináveis. Pilotaram aviões, dispararam metralhadoras no campo de batalha, aceleraram carros de corrida. Não paravam de comentar sobre as vitórias e as derrotas passadas. As dificuldades presentes na vida deles pareciam um pesadelo superado, com o qual já sabiam lidar e, particularmente naquela hora, não mais os abalava e oprimia.

    O ônibus chegou na hora exata, com meia lotação e parou no ponto, quando solicitado. Explicaram com cara de choro ao cobrador que não tinham dinheiro e ele permitiu generoso que passassem por baixo da roleta sem maiores delongas. Ainda eufóricos, chegaram ao ponto final na estação rodoviária do Paranoá.

    Caminharam juntos em animada conversa, pela beira da pista rumo ao assentamento onde moravam. Antes de se separarem, combinaram, entusiasmados, que voltariam ao trabalho no Gilberto Salomão no dia seguinte, que ganhariam muito dinheiro, assim, poderiam voltar a jogar mais.

    Possuíam, agora, um propósito tangível; seria outro dia de formidável aventura na vida deles – real e virtual.

    Naldo, ainda que um tanto quanto alheio ao ocorrido por não conseguir jogar direito, sentiu a vibração positiva que o grupo emanava e também se alegrou.

    Como chegava mais tarde do que o horário normal, sua mãe o aguardava impaciente e preocupada na porta do barraco enquanto oferecia o leite do peito para o filho mais novo. Ao vê-lo, sentiu-se aliviada e foi logo pedindo que lhe entregasse o dinheiro ganho durante o dia, pois seus cigarros haviam acabado cedo e ela estava agoniada para fumar. Naldo não tinha nada, nem um tostão para entregar a sua mãe. Por sorte, ele conseguira voltar para casa ainda no mesmo dia. Ela, que já estava irritada em razão do longo período em abstinência de tabaco, passou a exigir-lhe explicações.

    – Diga a verdade, moleque! Onde você escondeu o meu dinheiro? – inquiriu.

    Naldo, surpreso e indefeso, não soube o que dizer e recebeu, com um susto, o primeiro tapa de mão aberta em seu braço.

    – Você está mentindo! Fala a verdade! Quanto você ganhou hoje? Passa pra cá o dinheiro, agora! – duvidou sua mãe.

    Como não havia dinheiro, Naldo não tinha o que responder à sua mãe; calou-se e, sentindo o braço arder, começou a chorar baixinho, com medo de irritá-la ainda mais.

    – Você gastou o meu dinheiro, não é? Gastou sim! Ou, então, está escondendo ele de mim! Moleque vagabundo, sem-vergonha! Você é safado que nem o teu pai! – acusou.

    A essa altura, Naldo já havia recebido vários safanões de sua mãe e seus ombros e costas doíam sem que ele se importasse muito com isso. Seu problema era mais sério do que a dor física dos tabefes. Não sabia inventar dinheiro. Desesperado, esgueirou-se por um canto do casebre, escondendo-se entre um sofá esfarrapado e um armário de madeira barato, onde sua mãe não o alcançava mais. Sentou-se encolhido, com a cabeça baixa em choro sufocado. Sua mãe reagiu indignada com a manobra evasiva dele que lhe pareceu pusilânime, saiu e voltou com uma vassoura na mão e passou a cutucar Naldo no intento de expulsá-lo de seu esconderijo. Ela conseguiu fazer com que o menino amedrontado se curvasse para frente, foi quando ela pegou o braço dele, retirando-o da toca improvisada de maneira brusca. O choro dele explodiu convulsivo em crise irritante e as sovas raivosas aumentaram de intensidade, ele se enroscou em mutismo, fechou os olhos e aceitou a surra resignado, até que sua mãe fatigada encerrou o castigo brutal.

    Toda a felicidade que sentira durante a tarde, a diversão vivida com seus amigos virara esmaecida lembrança antiga. Ele não mendigava para se divertir, pedia donativos para sobreviver. Naldo teve de aprender isso da pior maneira possível, levando uma surra ríspida e

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