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O Caminho Das Orquídeas
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E-book152 páginas1 hora

O Caminho Das Orquídeas

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Sobre este e-book

O caminho das orquídeas: contos inesperados é uma obra que mergulha nas profundezas das histórias simples, porém marcantes, que compõem a trajetória de vida de uma mulher intrinsecamente ligada às suas lembranças. Com o olhar atento aos detalhes do cotidiano e uma sensibilidade única para capturar os momentos mais singulares, a autora compartilha relatos de aventuras, amizades, desafios e até mesmo tragédias. Histórias que são tecidas nas páginas deste livro, apresentando um mosaico vívido das experiências que forjaram sua identidade. Este livro revela-se uma obra que celebra a riqueza das memórias pessoais como um patrimônio coletivo a ser compartilhado. É um convite para adentrar no universo íntimo e plural da autora, onde as linhas do tempo se cruzam e se entrelaçam, formando uma tapeçaria única e emocionante. Ana Carolina Cezimbra Revisora e tradutora UFRGS – Editora Alcance
IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de jan. de 2024
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    O Caminho Das Orquídeas - Maria Antonieta Galmarini

    As quatro meninas

    No inverno rigoroso de Uruguaiana, no início dos anos sessenta, as quatro meninas sentavam em banquinhos na frente de casa para tomarem sol. As mãozinhas pequenas eram crestadas pelo frio e às vezes até sangravam. As idades variavam de quatro a dez anos. O pai escolhera o lugar mais alto do bairro para comprar o terreno e construir a casa, livre das enchentes do Rio Uruguai. Fez quatro cômodos, a cozinha com o fogão à lenha, o quarto do casal e uma peça grande que servia de refeitório e quarto das crianças. Ele teve o cuidado de juntar bem a madeira para não deixar frestas e deixar a casa mais quentinha.

    Havia apenas uma torneira na frente da casa e uma tina para lavar as roupas, as louças e também para as meninas tomarem banho nuas. Os vizinhos enxergavam tudo, pois não havia muros. Pela manhã, quando geava, as roupas no varal ficavam parecendo espantalhos de braços abertos, era preciso deixá-las ao sol para derreter o gelo e as peças virarem roupas novamente e serem usadas.

    A mãe ficava em casa sempre, o pai que era carpinteiro trazia tudo o que era preciso para a família viver, gêneros alimentícios, roupas, sapatos e o que fosse preciso. No fim do ano, vinha um saco com brinquedos sortidos que eram vendidos à granel mais baratos nas lojas de liquidação. A menina mais esperta escolhia os melhores brinquedos, as outras se contentavam com o que sobrava.

    A única vez que a família saía era aos domingos para ir ao culto da igreja Assembleia de Deus. Os pais ficavam no grande salão escutando o sermão do pastor e as cantorias, e as crianças eram levadas para um salão menor para brincarem com joguinhos de montar e soldadinhos de chumbo.

    Beatriz, com sete anos, era a filha do meio, sonhava em um dia ir para a escola e estudar, mas não falava nada, gostava da vida que levava junto com os pais e as irmãs, nem imaginava que existisse outro tipo de vida melhor, mas soube disso no dia do casamento de uma prima. Os tios moravam numa chácara na mesma rua, eles tinham vacas leiteiras e porcos. A filha mais velha arranjara casamento com um rapaz da alta sociedade. A festa foi deslumbrante com garçons para servir os convidados com todo o requinte exigido.

    As crianças viam tudo de longe, claro que os pais não haviam sido convidados. Belinha, a menina mais velha, não se conteve e foi lá. Os garçons repassavam às escondidas doces e salgados à menina. Vinham nas bandejas carne de peru desfiada, salgadinhos, canapés e outras iguarias, coisa que nem em sonho elas pensavam comer um dia. Rosa e Ana, as duas meninas menores, dançavam felizes com o som da música que vinha da festa.

    Beatriz era muito apegada ao pai, aos sábados levantava de madrugada para acompanhá-lo ao mercado para fazer as compras, ia no bagageiro da bicicleta. No caminho via a grama toda branca que a lembrava o merengue do bolo do casamento da prima e em pensamento revivia as delícias que ela e as irmãs haviam provado naquele dia. No sábado seguinte era vez de ir a Paso de Los Libres, porém, era proibido pelos argentinos levar crianças, então a menina ficava numa pracinha defronte à Igreja do Carmo, do lado brasileiro, esperando o pai retornar com as compras e resgatá-la. Mas a espera era recompensada: na bolsa vinham maçãs deliciosas, bem vermelhinhas, caramelos de doce de leite, chupetins – que eram pirulitos gigantes e coloridos –, doce de leite, alfajores e muitas outras coisas que faziam felizes as crianças.

    Mas um dia as crianças receberam a notícia: o pai estava doente e elas teriam de ser afastadas para não verem o pai morrer. Foram levadas então para a casa da tia, aquela que casou a filha com pompas. A mãe acreditava que era preciso evitar esse sofrimento às crianças. Assim foi feito, nunca mais elas viram o pai.

    A igreja que a família frequentava enviou por algum tempo uma cesta com alimentos. Vestidos de luto: para a mãe, em preto e branco; e para as meninas, vestidinhos nas cores marrom e branco. Pareciam fantasias de um carnaval antigo, talvez ficassem bem numa colombina triste.

    A alimentação começou a rarear. A mãe preocupada fazia das tripas coração, literalmente ia aos açougues e comprava mais barato miúdos tais como fígado, coração, rins, mondongo, tripa gorda ou qualquer coisa que estivesse na oferta do dia. Mais interessantes eram as patas de boi que eram cozidas durante horas e horas numa panela de ferro. Após esfriar a proteína em forma de gelatina que o cozido se transformava, ele era consumido pela família e proporcionava um bom sustento.

    As padarias vendiam pão dormido e até mesmo pão já torrado por um preço irrisório. A mãe procurava e achava alimentos nutritivos e mais baratos, mas tudo isso às custas de vender muito barato todas as ferramentas do marido. Então chegou o momento que as duas meninas mais velhas, Belinha e Beatriz, precisaram seguir a vida com outras duas famílias diferentes. As duas meninas menores, Rosa e Ana, ficaram com a mãe.

    Leite americano

    Ao ingressar no grupo escolar, soube que na merenda seria servido um leite que vinha dos Estados Unidos. Era uma novidade para todos. Com esse leite se fazia vários alimentos, tais como mingau, café com leite, arroz com leite e aveia.

    Leite é proteína e sustenta. Muitas crianças vinham para a escola de barriga vazia, tinham pouco ou nada em casa para comer. Quando tocava a sineta da merenda, saíamos correndo feito cabritos em direção ao ubre da mãe. O material escolar era esquecido, cadeiras eram derrubadas e tudo ficava para trás. Empreendíamos uma verdadeira maratona para ver quem chegava primeiro. Se sobrasse merenda, poderíamos repeti-la. A minha geração desfrutou desse laticínio dos sete aos catorze anos, com exceção das crianças que estudaram em escolas particulares.

    Em 1961 foi assinado um acordo de cooperação entre os Estados Unidos e alguns países da América Latina chamado de Aliança para o Progresso, idealizado pelo presidente Kennedy. Nesse acordo os países signatários receberiam leite em pó para a merenda escolar. Em contrapartida, esses governos deveriam cumprir exigências de cunho desenvolvimentista estabelecidas unilateralmente pelo governo norte-americano. Na prática, a ideologia vigente era frear o avanço socialista na América do Sul. A geopolítica era dividida entre capitalismo e socialismo.

    Houve quem duvidasse da bonomia americana. Muitos políticos viram, nesse tipo de doação, intervencionismo capitalista. Vários setores da sociedade vociferaram contra esse acordo em falas retumbantes.

    O Brasil não cumpriu as demandas exigidas pela referida potência, mas, mesmo assim, recebeu o leite doado até 1969. Nesse ano, outro presidente chamado Richard Nixon extinguiu o programa. Surgiram boatos de que no leite doado havia anticoncepcionais, mas nada foi comprovado. Se fosse verdade, atingiria apenas as populações pobres. Seria hoje um tipo de Teoria da Conspiração.

    Passados três anos desse evento, os norte-americanos não foram tão sutis, pois não enviaram leite em pó e sim submarinos que ficaram estacionados na Baía da Guanabara, num claro apoio ao golpe militar de 1964 no Brasil, fato comprovado anos depois.

    Quase na mesma época foram distribuídos nas escolas da Espanha leite em pó e enormes queijos cremosos e enlatados em cuja etiqueta se via o emblema do programa: duas mãos entrelaçadas com a bandeira norte-americana de fundo. Esse fato foi relatado em um dos livros da escritora espanhola Maria Dueñas. Em troca, o governo espanhol permitiu a instalação de três bases de bombardeiros para a força aérea e uma grande base aeronaval, todos esses empreendimentos espalhados por várias cidades espanholas.

    Nada é de graça nesse mundo, nem o leite das crianças.

    Gastronomia

    A recomendação era para não abrir a porta para estranhos. Éramos duas crianças obedientes. As velhinhas constituíam uma exceção, naturalmente. Certa vez, eu e minha irmã atendemos a porta. A mãe gritou lá de dentro: Quem é? Nós respondemos em coro: É a vozinha! Faz ela entrar, respondeu a mãe. Quando ela viu a vozinha, notou que tinha se enganado, não a conhecia nem desta nem de outras vidas. Danou-se! Que entre e almoce, já que a comida já estava pronta.

    Nós costumávamos receber as velhinhas que passavam e batiam

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