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Gandhi: O despertar dos humilhados
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Gandhi: O despertar dos humilhados
E-book597 páginas11 horas

Gandhi: O despertar dos humilhados

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Sobre este e-book

Reconheço que estou totalmente indefeso diante da violência quando ela é feita pelos nossos e, enquanto ouço falar sobre ela, um médico tomando o meu pulso logo constataria a aceleração dos batimentos cardíacos do meu coração. Tenho necessidade de alguns instantes, consagrados à espera da ajuda de Deus, para que o meu coração recupere um ritmo normal. Sou incapaz de remediar essa debilidade. Eu a alimento. Essa emotividade me permite continuar sendo apto a servir e a guiar, a permanecer humilde e guardar a confiança em Deus. Somente Ele sabe quando estarei suficientemente contrariado e comovido, pelos nossos atos de violência, para que se justifique um jejum temporário ou permanente. É a última arma do satyagrahi contra aqueles a quem se ama. Mahatma Gandhi (1869 - 1948)
IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de nov. de 2013
ISBN9788542800791
Gandhi: O despertar dos humilhados

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    Gandhi - Jacques Attali

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    À Índia,

    com a minha admiração

    Marx edificou sua doutrina sobre certa filosofia da História. Mas que História? Aquela da Europa. Mas o que é a Europa? Não é toda a humanidade.

    Ho Chi Minh, maio de 1921

    É a lei do amor que governa a humanidade. Se a violência, isto é, o ódio, a tivesse governado, ela já teria desaparecido há muito tempo.

    Mohandas Gandhi, 13 de abril de 1940

    AGRADECIMENTOS

    Este livro é o resultado de quatro anos de trabalho, de leituras, de viagens e encontros. Foi necessário, em particular, escolher entre versões dos mesmos fatos, por vezes contraditórias. Não há sequer um fato que não seja contado de cinco ou seis maneiras diferentes, situado em datas divergentes, pelas próprias testemunhas oculares. Foi necessário escolher datas e interpretações. Assumo sozinho essas escolhas.

    Fui benificiado por colaborações muito preciosas: na Índia, os professores Prakash Shah, Prakash Patel, Haresh Shah, Xavier Bertrand e o professor Hemang Desai, que traduziu para mim os textos guzerates; nos Estados Unidos Shashi Tharoor; na França, Jane Auzenet e o Professor Prithwindra Mukherjee aceitaram reler meus manuscritos e responder, com uma paciência excepcional, às minhas questões mais precisas. Esse último, em particular, traduziu para mim textos bengalis e releu minhas provas com uma atenção pela qual lhe sou muito grato. Josseline Rivière preparou o caderno de fotos. Michel Desbois imaginou e confeccionou a capa do livro. Nathalie Reignier iniciou os preparativos para a produção deste livro. Rachida Azzouz, Murielle Clairet e Charlotte Duperray providenciaram a diagramação dos manuscritos e da bibliografia. Meus agradecimentos a todos eles.

    001.tif

    O Raj Britânico

    Nunca a violência foi mais ameaçadora e multiforme do que nos dias de hoje. Nunca as ações e as ideias de Mohandas Gandhi, que a combateu com um sorriso nos lábios e até a morte, foram mais atuais.

    Poucas pessoas deixaram um traço tão forte na história humana, atravessando com suavidade um século de barbárie, tentando racionalizar os piores monstros, fazendo do seu sacrifício um meio de conduzir os outros à introspecção, revelando que a humilhação é o verdadeiro motor da História, praticando a única utopia que permite a esperança na sobrevivência da espécie humana, a da tolerância e a da não violência. Sua ação transformou o século XX na Índia. Será preciso ouvi­-lo para que a humanidade sobreviva ao século XXI.

    Sua mensagem, ele gostava de dizer, era sua vida. E essa vida é, visivelmente, transparente. Porque sua paixão pela verdade o conduziu a divulgar, por meio de escritos quase cotidianos, a evolução do seu caráter, dos seus sentimentos, dos seus problemas, da sua doutrina, da sua ética, da sua prática, da sua estratégia, das suas diretrizes.

    Ainda assim, Gandhi permanece um enigma apaixonante.

    Enquanto que alguns dos seus contemporâneos indianos como Chandrasékhara Venkata Raman, que recebeu o prêmio Nobel de Física em 1930, Ramanuja, matemático genial da teoria dos números, ou Satyendranath Bose, que trabalhou com Einstein, foram gênios excepcionais, ele próprio não foi nem um teórico, nem um líder militar e nem mesmo um advogado brilhante. Como, então, esse homenzinho tímido – nascido em um meio modesto, em uma casta honorável, mas inferior aos brâmanes, sem grandes contatos – tornou­-se o mestre moral de um país dentre os mais sofisticados, mais hierarquizados e mais religiosos do mundo? Como esse homem de voz sufocada, incapaz de falar em público aos trinta anos, soube reunir, aos cinquenta, milhões de homens prontos a morrer por ele? Como ele ousou, em dezenas de ocasiões, colocar sua vida em jogo para forçar os outros a refletirem sobre suas próprias fraquezas? Como ele conseguiu se tornar o que realmente desejou ser? Como compreender aquele que aconselhava as vítimas do holocausto a aceitá­-lo e a cumprimentarem com um querido amigo os carrascos? Como acreditar, enfim, naquele que, por vezes, dava a sensação de contradizer, na sua vida privada, os princípios que exigia que os outros respeitassem?

    Suas incontáveis biografias, escritas durante sua vida e após sua morte, quase sempre, trazem muito pouca luz a todas essas questões: quase todas são obras de pessoas próximas que se mantiveram devotas ou de hagiógrafos que não procuravam por suas fraquezas, que não colocam suas ações suficientemente em perspectiva, raramente confrontando­-o com os desafios do seu tempo que, no entanto, restituem ao seu pensamento uma trágica universalidade. Além disso, sua obra literária e jornalística – 50 mil páginas escritas, principalmente, em guzeráti – só foi disponiblizada muito tempo depois em inglês e, ainda mais tarde, em francês.

    Mas também por uma outra razão que só me ocorreu ao escrever sobre ele: sua vida é uma resposta a uma humilhação. Primeiramente, a dos indianos da África do Sul face aos ingleses e aos bôeres, posteriormente, a dos intocáveis face aos outros hindus e, enfim, dos indianos face aos ingleses. Humilhações nas quais Gandhi encontrou a fonte da sua revolta, de sua filosofia, de suas vitórias; humilhações universais que nos concernem mais do que nunca.

    Esta é, portanto, definitivamente, a principal razão de ser desta biografia: narrar a história fabulosa de um homem cujo inacreditável destino moderniza a força motriz essencial da história humana: nem o lucro nem a luta de classe, mas o belo e bom despertar dos humilhados.

    Por muito tempo, o ocidente recusou, a todos esses povos colonizados, chamados "primitivos" ou "bárbaros", o status de humanos. Eles são, hoje, vistos como ameaças. Eles são, na realidade, promessas. O destino deles mostra também que, se a luta dos povos pela liberdade não se inscrever num quadro de ética e de metafísica, se a batalha para modificar os outros não começar por uma luta de todos os instantes para modificar a si mesmo, corre­-se um grande risco de conduzir apenas a uma mudança de liderança.

    Esta é a principal mensagem de Gandhi: para parar verdadeiramente de ser humilhado, é preciso primeiramente parar de humilhar. É preciso modificar a forma de se relacionar com o outro. Como diz de uma outra maneira e de forma sublime um dos cantos de Tagore que Gandhi adorava escutar: Meu incenso não exala nenhum perfume enquanto eu não o queimo; / minha lâmpada não ilumina enquanto eu não a acendo.¹⁵¹ Em outras palavras, a humillhação é a faísca que dá ao humilhado o desejo de se encontrar; se ele não o faz, ele não tem outro futuro que não seja o de tornar­-se, ele mesmo, um carrasco.

    *

    Mais do que qualquer outro país, a Índia foi humilhada. Mais do que qualquer outro subcontinente, este está, hoje, em situação de influenciar o futuro do mundo. Mais do que qualquer outro ser humano, o indiano de hoje – quer ele viva na Índia, no Paquistão ou em Bangladesh, quer ele seja engenheiro no Vale Silício ou imame em um subúrbio de Manchester – representa e representará um papel na História. E isso não surpreende: depois de dois séculos de dominação britânica, que sucedeu a dois outros de dominação mongólica, os herdeiros de Gandhi terão, de uma forma ou de outra, sua revanche econômica, política, cultural e militar sobre todas as humilhações das quais foram vítimas.

    Um homem frágil e sorridente fez com que tomassem consciência da sua dignidade e alçou­-os ao mais alto de si mesmos. Seu destino traz a marca de nosso passado, nosso futuro trará a marca de sua história.

    Antes de encontrá­-lo, convém fixar o cenário: a colonização das Índias pelos britânicos foi, antes de tudo, como quase todas as outras aventuras coloniais, relacionada a uma questão financeira. Ela foi, em seguida, uma questão política. Enfim – e somente enfim – uma questão civilizatória.

    Primeiramente, uma questão econômica. No início do século XVIII, a Índia, em igualdade de condições com a China, estava no primeiro patamar da economia mundial, com 22% da renda do planeta. A partir do final do século XVIII, os mercadores ingleses passaram a controlar Calcutá e os centros econômicos do Bengala, com a preocupação de fazê­-lo de tal forma que essa colonização não custasse nada à Coroa. Dessa maneira, a Índia pagou, ela mesma, sua própria submissão, tornando­-se, ao mesmo tempo, um reservatório de tropas e de matérias­-primas e um mercado para os produtos ingleses. Na realidade, enquanto a América do Norte (Estados Unidos e Canadá), a África do Sul e a Austrália foram, desde o início, terras de colonização, a Grã­-Bretanha, aterrorizada pelo tamanho da população indiana, enviou à Índia apenas militares, funcionários e mercadores. Nem mesmo – ou muito poucos – missionários cristãos foram mandados ao país. Homens solitários lá faziam fortuna e retornavam à Inglaterra para gastá­-la, onde, por vezes, compravam uma circunscrição com o dinheiro adquirido no Império. Os casamentos inter­-raciais ocorreram, ao menos, até a chegada, em 1830, dos primeiros fishing fleets, ou seja, dos navios que transportavam mulheres inglesas que lá iam pescar um marido. Diferentemente do que aconteceu nas colônias francesas, as colônias inglesas deram vida a uma burguesia local forte e se apoiaram nela.

    Tudo começa em 1757 quando um extraordinário aventureiro inglês, Robert Clive, entra em Calcutá, faz um acordo com o nababo de Bengala para voltar­-se contra os franceses, e tomar­-lhes Chandannagar; e depois trai seu aliado bengali, esmagando­-o na batalha de Plassey e expulsando, igualmente, os holandeses da região. Sua ambição não era a de estabelecer uma presença política, mas sim uma companhia comercial privada, a Companhia das Índias Orientais. Em 1763, o tratado de Paris, assinado sem que os soldados de Luís XV tenham sofrido derrota em campo, deixa para a Companhia Francesa das Índias apenas cinco feitorias. Um ano mais tarde, Clive, transformado em governador e comandante­-chefe, após quatro anos de ausência, toma o poder econômico em toda Bengala, deixando para o nababo apenas o poder político e judiciário. Bengala torna­-se, assim, a primeira implantação inglesa durável sobre o subcontinente; a administração permanece mongol, as leis continuam islâmicas e a língua dos funcionários continua sendo o persa. Clive contenta­-se em assegurar o domínio dos impostos e do comércio: o primeiro funcionário indiano sob o controle britânico é o coletor de impostos gerais. Em seguida, ele faz um acordo com os responsáveis pela coleta do imposto imobiliário para o imperador mongol, os zamindare, e consegue a devoção dos proprietários de terras; posteriormente, assume, de forma progressiva, o controle do comércio exterior, constituindo o Império da Companhia, o Company Raj, no qual somente os britânicos ocupavam cargos de responsabilidade.

    Em 1774, Clive, que se tornara imensamente rico, acusado de corrupção (Meu Deus, responde a seus acusadores, eu estou surpreso com minha própria moderação!) e muito doente, suicida­-se em Londres. O Raj* se apropria então – de um após o outro – dos monopólios, tão rentáveis quanto impopulares, do sal e do chá. Em seguida, os ingleses fazem de todo o subcontinente um dos principais mercados para a indústria têxtil de Lancashire. Exploram as minas de carvão de Bihar e de Orissa e desenvolvem culturas de exportação, como a do chá, asfixiando a agricultura alimentar, a indústria e o artesanato. Na metade do século XIX, para organizar o encaminhamento rápido desses produtos de exportação em direção aos portos, o Raj constrói uma malha ferroviária de mais de 60 mil quilômetros. No total, por volta de 1850, a Índia produz, a preços baixos, gêneros alimentícios e matérias­-primas para o mercado britânico e compra – a preços elevados – os produtos primários da indústria britânica.

    Consequência: 7 grandes períodos de fome, na primeira metade do século XIX e 24, na segunda⁸⁰. Em 1869, quando Gandhi nasce, a situação é tão trágica que os homens dos distritos mais pobres de Madras e de Bengala começam a emigrar em direção aos Estados Unidos, às Antilhas, ao Peru, à Reunião, às Ilhas Maurício, à Madagáscar e à África do Sul, onde eles se alugam como escravos para plantadores ingleses e bôeres instalados em vastas terras virgens, ideais para o chá, o café e o açúcar. Nós encontraremos Gandhi em local semelhante em breve.

    A colonização das Índias é, em seguida, uma questão política. Em 1784, William Pitt, Primeiro­-ministro em Londres, coloca a Companhia sob a autoridade de um Conselho de Controle. Um pouco mais tarde, em Calcutá, Lorde Cornwallis, governador geral, reorganiza a administração de Bengala, anglicizando­-a. Um dos seus primeiros gestos consiste em interditar o porte de armas. No Sul, Sir Thomas Munro o imita, assumindo, em primeiro lugar, o controle dos impostos. No Oeste, Sir Elphinstone age de maneira semelhante, permitindo, entretanto, que os príncipes preservassem seus privilégios, suas armas e seus palácios. No Norte, Sir Charles Metcalfe assume todos os poderes, deixando uma aparência de autonomia nas vilas. Em Calcutá, elevada a capital do Raj, um governador geral substitui o Grão Mongol; ele se apropria de suas pompas e de seus palácios, firma tratados de aliança com centenas de príncipes do subcontinente submetidos à supervisão do poder suserano (Paramount Power) do Raj. Um residente britânico pode intervir, a seu bel­-prazer, na gestão interna de cada um desses principados, que não podem negociar diretamente, nem com as potências estrangeiras, nem mesmo entre si. Em 1805, alguns milhares de funcionários e de soldados britânicos impõem, assim, sua autoridade a mais de 150 milhões de indianos, apoiando­-se em um exército de 155 mil homens⁹: soldados ingleses, mas, sobretudo, os cipaios (do hindi sipâhi para soldado) do Bengala; as altas castas do Awadh fornecem tropas de elite da mesma forma que faziam para o Grão Mongol.

    Pouco a pouco, o governador geral domina os mercadores da Companhia, assistido, a partir de 1833, por um Conselho Legislativo composto exclusivamente por oficiais britânicos⁹. Em 1835, aparecem as primeiras escolas britânicas, inicialmente reservadas às raras crianças dos trabalhadores expatriados e às das elites principescas e mercantis. Os primeiros indianos diplomados nas três universidades instituídas nos anos 1850, em Calcutá, Madras e Bombaim, muito raramente têm acesso às altas esferas da administração do país, que permanecem, quase exclusivamente, britânicas. Poucos indianos fazem carreira em Londres⁶⁸.

    Em maio de 1857 (no mesmo momento que a França começa a guerra na África contra o Império Toutcouleur e ocupa o Cantão), o exército britânico decide obrigar os cipaios, na maioria muçulmanos, a atravessarem o mar para servir na Birmânia e lhes impõe o uso de um novo fuzil, cujos cartuchos eram untados com gordura animal; eles se revoltam, levando consigo proprietários de terras, camponeses, cidadãos de Awadh e da Índia central. Ocupam até mesmo Deli, cidade, então, tornada secundária após ter sido a capital dos Grãos Mongóis. Em Cawnpore**, quatrocentos ingleses (dentre eles mulheres e crianças) foram massacrados. Em represália, o governador geral, Lorde Canning (denominado por zombaria "Canning, o Clemente), extermina a família do imperador mongol, príncipe muçulmano e, com a ajuda dos príncipes hinduístas, sufoca a revolta. Como dirá o historiador William Rushbrook: os Estados principescos constituem, a partir de agora, uma rede de fortalezas aliadas em território disputado⁵⁰".

    Fica claro, para os ingleses, que a Índia se tornou, neste momento, uma colônia política, e não mais apenas um balcão de mercadorias. Em 2 de agosto de 1858 (no mesmo momento em que se fomenta na China o que se chama às vezes de a Segunda Guerra do Ópio, abrindo novas portas para a França, os Estados Unidos e a Grã­-Bretanha), a Companhia das Índias é abolida por um primeiro Gouvernment of India Act, transmitindo os seus poderes a um vice­-rei, nomeado por cinco anos. Ele dirige os funcionários locais, rodeados por um grande grupo de agentes de alto nível – o Serviço Civil Indiano (ICS) – os quais são recrutados por concurso, a partir de um programa combinando cultura geral, línguas locais e senso de comando, depois de passarem três anos em Hailesbury, em um estabelecimento criado especialmente para esse fim. Esse serviço, o qual abrigará, progressivamente, alguns indianos com cargos importantes, irá se revelar como extremamente sólido e eficaz, capaz de resistir a todos os ataques, até o dia da independência⁹. Ele será conhecido por um nome significativo: o corpete de ferro.

    Dois terços do subcontinente são, então, divididos em dez províncias (Assam, Bengala, Bihar, Bombaim, Províncias Centrais, Madras, Fronteiras do Noroeste, Orissa, Punjab e Sind), cada uma delas dirigida por um "governador, e outras seis (Ajmer Merwara, Ilhas Andamã e Nicobar, Baluquistão, Coorg, Deli, Panth­-Pilyouda) sob a autoridade direta de um alto comissário"; nessas zonas sob administração direta, os britânicos se apoiam nos notáveis tradicionais, os zamindares e os jagirdares⁶⁸. O outro terço do continente, dividido em 565 estados, ficou sob o controle de reis e marajás hindus e siques, nababos e begumes muçulmanos, todos príncipes ainda hereditários, que prestam juramento de fidelidade à Coroa britânica; dentre os mais importantes, os estados de Jaipur, Gwalior, Hyderabad, Mysore, Jammu e Caxemira, dentre os quais os ingleses habilmente atiçam os antagonismos. Em 1861, um Conselho [legislativo] do Raj e os conselhos consultivos provinciais são abertos a alguns raros notáveis indianos escolhidos pelo vice­-rei⁶⁸. Esse sistema corresponde, ao mesmo tempo, à concepção inglesa de democracia censitária e à concepção indiana do Estado protetor com um sistema de castas imanente.

    Um organismo central, o Survey of India, suprime, pelo menos virtualmente, as fronteiras interiores entre essas entidades, para inventar uma Índia abstrata, britânica, e que se tornará, pouco a pouco, uma realidade para os próprios indianos⁶. Em Londres, um secretário de Estado da Índia e uma administração, o Indian Office, controlam o conjunto.

    A colonização é enfim uma questão civilizatória. Ora, para os ingleses, existe, evidentemente, apenas uma civilização, a sua, a defender mais do que promover: não se trata propriamente de trazer para as populações locais os benefícios do british way of life; a Índia é, para os ingleses (da mesma forma que a África para os franceses), apenas uma moldura em que se pode fixar a grandiosidade da sua "civilização", a qual não se relaciona àqueles sub­-homens. E mesmo que a primeira metade do século XIX conduza os ingleses a interditar, por princípio, o sacrifício ritual das viúvas e a combater – também por princípio – os bandos que matam em nome da deusa Kali, ninguém, em Londres, considera os indianos como seres humanos dignos de possuírem os mesmos direitos que os ingleses. Ninguém igualmente se interessa pela fabulosa pluralidade da sua cultura, da sua literatura, das suas religiões, da sua história, da sua filosofia e de suas artes. Se certos oficiais ingleses aprendem algumas de suas línguas é, em geral, para melhor vigiá­-los. A maior parte dos britânicos que ali vive e trabalha se isola em alojamentos e clubes, onde eles reproduzem, o mais próximo possível, o modo de vida londrino. Quer-se ir à Índia para fazer fortuna, mas ninguém, ou quase ninguém, deseja ali morrer.

    Alguns ingleses se inquietam com essa possibilidade. Deste modo, desde o começo do século XIX, Thomas Munro nota que, se a Índia foi invadida e governada, durante mais de sete séculos, por conquistadores vindos do Nordeste, frequentemente mais violentos e cruéis que os britânicos, ela nunca foi tão humilhada quanto neste momento. Alguns audaciosos, dentre os administradores britânicos, apaixonam­-se pelo país. Outros chegam mesmo a indignar­-se ao ver 95% dos habitantes do subcontinente suportarem uma vida mais que miserável, em povoados imutáveis, nos quais cada um exerce uma função correspondente à sua casta, produzindo com dificuldade os bens necessários à sobrevivência: para se alimentar, das vacas sagradas provém o leite; para se vestir, o algodão, confeccionado pelas mulheres, fornece os tecidos. Outros, mais raros ainda, ousam pensar que o povo – um dia – assimilará o espírito das instituições britânicas, que a Índia se tornará uma democracia e que não terá mais necessidade deles. Em 1838, um deles, que se tornará famoso, o jovem Charles Trevelyan, escreve com mais de um século de antecedência:

    É da natureza das coisas que a ligação existente entre dois países tão distantes um do outro não seja para sempre: nenhuma política, por mais voluntarista que seja, poderá impedir os nativos de acabar por encontrar a sua independência. [...] Formados por nós e dotados do nosso saber e das nossas instituições políticas, a Índia permanecerá o mais fiel monumento da benevolência britânica.⁵⁰

    Em 1869, ano do nascimento de Gandhi, os ingleses não desejavam enxergar que a Índia era um extraordinário mosaico de civilizações e de culturas: hinduísta, zoroastrista, cristã, judaica, budista, muçulmana, persa etc., que ali vivem mais de 230 milhões de habitantes, falando 179 línguas e 544 dialetos, sobre 4.112 milhões de quilômetros quadrados entre a barreira do Himalaia e os oceanos. Eles também não veem que, apesar deles e contra eles, alguns símbolos começam a unificar esse quebra­-cabeças. Não se trata de uma língua (lá são faladas centenas), nem de uma cultura (lá cultivam­-se milhares), nem de uma religião (contam­-se ali algumas dezenas) e nem mesmo da vaca, que exclui os muçulmanos, mas sim da multiplicidade de peregrinações, que levam milhões de pessoas a atravessar, permanentemente, o continente, e da vasta mitologia que os alimenta, em particular, a divindade mais recente e mais sagrada do panteão hindu, a Bharat Mata: a Mãe Índia⁶. Para promover essa nova consciência de si, uma burguesia e uma elite produzidas pela colonização britânica opõem­-se aos que saqueiam e humilham a Índia. Eles são industriais, jornalistas e, sobretudo, advogados e religiosos. Os ingleses não percebem que está começando a nascer, dessa forma, um orgulho de ser indiano, que se alimenta do ódio ao colonizador: para que a Índia contribua em qualquer coisa para o mundo – pensam os jovens – é preciso, em primeiro lugar, que ela se desembarace da tutela e da influência do Ocidente, e que ela reencontre sua identidade no seu fabuloso passado, no seu esplendor multiforme.

    Como sempre, o humilhado se descobre na humilhação. Na primeira fileira, conduzindo­-o, ontem e amanhã, Mohandas Gandhi.

    *

    Por todas essas razões, eu desejei contar aqui as inacreditáveis repercussões de sua vida e de sua doutrina. Não como bajulador e – menos ainda – como inimigo: eu desejei compreender como esse jovem advogado fracassado se tornou um dos homens mais importantes da história da humanidade; como esse jovem mundano se transformou em um santo laico; como esse anglófilo se tornou ferozmente antiocidental; como mil derrotas se converteram em triunfo para ele; como Mohandas se tornou Gandhi. Para consegui­-lo, foi­-me necessário – e será necessário ao leitor – interessar­-me por culturas, filosofias, estratégias e mentalidades que nos são a priori radicalmente exóticas; penetrar em um universo, em uma forma de pensar o mundo e conceitos muito diferentes dos nossos; em particular, conseguir compreender por que o poder e a razão, tão positivamente estimados no Ocidente, estão classificados, para Gandhi e tantos outros indianos do seu tempo, dentre os piores defeitos.

    Eu narrarei, quase dia após dia, a extraordinária fabricação de Gandhi por ele mesmo, subdividindo sua vida em sete partes em torno de sete conceitos essenciais para ele.

    Para reconstruir sua juventude, falarei dos Modh Vanik, nome da casta na qual ele nasceu, em 1869. Para descrever a tomada de consciência da sua identidade, falarei de Shatavadhani, fabuloso guru que mudou o seu olhar sobre o mundo, em 1891, após o retorno dos estudos em Londres. Para tornar compreensível o seu primeiro combate na África do Sul, onde viveu de 1893 a 1914, falarei do Satyagraha, palavra que ele inventou para designar uma forma extremamente original de desobediência civil. Para seguir sua busca da identidade indiana, que elaborou de 1914 a 1930, falarei do Hind SwaRaj ou autodomínio para a Índia. Em seguida, quando foi confrontado com o aumento da violência pelo mundo, de 1931 a 1939, falarei da sua Ahimsa, a não violência absoluta, indo até o sacrifício final. Narrarei como, justamente no meio de uma guerra contra as ditaduras, lançou aos ingleses um estranho apelo para que deixassem a Índia: Quit India!, que não impediu a divisão do subcontinente, em 15 de agosto de 1947, e seu assassinato, em 30 de janeiro de 1948, murmurando o mantra hindu do He Rama!

    Compreenderemos, então, que não há nada de mais universal do que esta vida tão inacreditável, tão sofisticada, tão torturada, tão martirizada, tão intensa, e que ela ajuda todo e qualquer indivíduo a responder a única questão que vale: é possível encontrar­-se a si mesmo?

    * A palavra Râj em hindustâni significa reino. O termo Raj britânico ou Índia britânica é uma denominação não oficial usada para designar a área geográfica na qual predominou o domínio colonial britânico sobre o subcontinente indiano (N.T.).

    ** Atual Kanpur (N.T.).

    CAPÍTULO I

    Modh Vanik

    1869­-1888

    Em 1777, um certo Harjivan Gandhi, comerciante da casta Banya, da subcasta dos Modh Vanik, originário do vilarejo de Kutiyana, no estado de Junagadh, compra uma casa em Porbandar, tranquilo porto de pesca na península de Kathiawar, em Guzerate, sobre a costa do mar de Omã, ao norte de Bombaim¹⁰⁹. Porbandar é um dos cerca de trezentos estados de Guzerate. Bandar significa porto em persa.

    O Guzerate é uma das culturas mais antigas e uma das mais velhas entidades políticas da Índia. A principal língua falada ali, o guzeráti*, apareceu no século X e descende do sânscrito, como o marati, o híndi e o bengali; o primeiro livro conhecido escrito em guzeráti, em 1185, é o Bharteswar Bahubali, obra do monge jainista Shalibhadra. O nome do principal estado principesco, o Guzerate, é conhecido desde o século XII; no final do século XIII, o persa torna­-se a língua da corte e da administração. Desde a sua fundação, o estado do Guzerate desempenha um grande papel na história do subcontinente, ao ponto mesmo de ser o lugar onde nasceram, com poucos anos de intervalo, três dos quatro fundadores da Índia e do Paquistão: se Nehru é originário da Caxemira, Gandhi, Patel e Jinnah são todos os três guzerates. Os quatro serão advogados.

    Nascimento em Porbandar

    Porbandar é cortada por ruelas estreitas, nas quais se amontoam bazares e templos de todas as religiões da Índia Ocidental¹¹⁰; ali vêm rezar marinheiros vindos da Arábia e da África. É uma cidade impregnada de misticismo, à mesma distância de uma cidade santa, Dwarka (santificada pela passagem de Krishna e onde vivia, no século XVI, a poetisa mística Mirabai) e do templo de Somnath, construído pelos reis Vallabhi no século VI, no qual se misturavam os ensinamentos de Buda, de Mahavira (um dos fundadores do jainismo) e do pensador vishnuísta Vallabhacharya⁵⁴.

    No começo do século XIX, Porbandar é ainda um estado bem pequeno – menos de 50 mil habitantes – no interior do grande estado de Guzerate. A família reinante, que descende dos mongóis, é muçulmana, enquanto a população é basicamente hindu, com comunidades de muçulmanos, jainistas, pársis, zoroastristas e cristãos.

    Harjivan Gandhi (cujo nome significa comerciante de perfumes) ali se instala como comerciante, exatamente como exige a sua casta, os vaishya (ou, em guzeráti, os Modh Vanik), enquanto os brâmanes são sacerdotes e os kshatriyas, soldados.

    Por volta de 1830, um dos seus netos, Uttamchand, torna­-se o diwan, ou seja, o primeiro­-ministro do príncipe da cidade, Rana Khimaji: um hindu a serviço de um muçulmano. Primeiro­-ministro é um título muito pomposo para um estado tão pequeno: na França, ele seria equivalente ao de um secretário geral de prefeitura. Na época, naquele espaço exíguo, o príncipe exerce poderes ilimitados sobre a vida e as propriedades de seus súditos; ele pode gastar, ao seu bel­-prazer, a receita da cidade; e, como não existe nem liberdade de associação, nem liberdade de expressão, ele não se encontra submetido a nenhum contrapoder. Sequer existe, como em alguns dos maiores estados da Índia de então, um corpo legislativo⁹, uma assembleia virtual consultiva designada pelo soberano. Em 1835, o príncipe morre jovem, dando lugar a um regente que demite o diwan⁵⁴. Uttamchand deixa, então, Porbandar e se refugia na cidade natal de seu avô, Junagadh.

    Por volta de 1840, um novo príncipe, Rana Vikramjit, toma o poder e volta a chamar Uttamchand, que se reinstala na casa de seu avô¹⁵⁴. Em 1848, ele deixa o posto de diwan para um de seus filhos, Karamchand, então com 25 anos. Este vive ainda na casa do bisavô, onde ocupa dois aposentos no primeiro andar, com uma minúscula cozinha e uma pequena varanda. Karamchand é muito religioso: respeita as proibições alimentares, reza todos os dias sem se voltar para nenhum deus em particular e convida para ir à sua casa, de tempos em tempos, pandits hindus, monges jainistas, adivinhos pársis ou muçulmanos⁵⁴. Como em toda família hindu, vive­-se em família, casa­-se dentro da casta. Os meninos são mimados e as meninas condenadas, assim que atingem a idade fértil, a emigrar para a família do esposo. As viúvas são reclusas.

    Em 1858, com o Indian Act, como vimos, a situação muda: o príncipe ainda reina, ao menos aparentemente, mas ele está, a partir daquele momento, sob a tutela de um agente britânico instalado na cidade.

    Karamchand Gandhi se casou três vezes; suas sucessivas esposas são todas escolhidas no interior da sua casta, primeiro por seus pais, depois por seus tios¹⁰⁹. Ele tem uma filha com a primeira mulher; nenhum filho com a segunda; em seguida, uma filha com a terceira, com a qual se casa sem ter se divorciado ainda da anterior¹²⁸. Quando essa terceira esposa morre, em 1859, ele se casa com uma quarta, Putlibai, como sempre, sem conhecê­-la: ela também pertencia à sua casta, os Modh Vanik, e sua família é influenciada por uma seita jainista, os Pranami⁵⁴. Putlibai é extremamente devota, toda a sua vida nada mais será do que jejuns, ritos e observâncias mais próximas do jainismo que do hinduísmo.

    A ideia-chave do jainismo é a ahimsa, que podemos traduzir, de forma sumária, do sânscrito, como não violência. Rohanna, o fundador dessa religião, contemporâneo de Buda, considera que, se cada religião é uma via de acesso ao cosmos, a alma, encarcerada no corpo, deve ser libertada com a prática de uma abstinência tão completa quanto seja possível. Como, para ele, tudo o que existe no cosmos possui uma alma, convém proteger a vida sob todas as formas. Assim, os jainistas varrem diante de si, para não esmagar o menor inseto e usam uma máscara diante da boca, para não engoli­-los.

    Putlibai, primeiramente, dá à luz uma filha, Ralitabehn (Goki), a terceira de Karamchand; ela não é, portanto, bem acolhida. Em seguida, para grande alegria do pai, três meninos veem sucessivamente o dia: Lakshmidas (Kala), Kavsandas (Karsania) e Mohandas (Mohania), que nasce em 2 de outubro de 1869.

    Karamchand aposta tudo no seu primogênito. A caçula será o Mahatma**.

    Naquele ano, dia 17 de novembro, ou seja, 45 dias depois do nascimento de Mohandas, os franceses inauguram o canal de Suez, do qual o Estado Egípcio e 21mil franceses são proprietários conjuntamente. Esse canal inquieta os ingleses: ele abre uma via sem desvios em direção à Índia, enquanto a Navy controla perfeitamente a rota do cabo através de uma cadeia de guarnições militares ao longo da costa africana. Além disso, o primeiro­-ministro inglês anterior, Lorde Palmerson, havia se recusado a permitir que rendimentos ingleses fossem investidos no último elo da cadeia de junção com o Império, porque não se tratava de uma iniciativa britânica, mas havia advertido: Se o canal for finalmente construído, a Inglaterra será, cedo ou tarde, obrigada a anexar o Egito⁵⁹. O que ela fará em breve.

    Em outra parte do mundo, naquele mesmo ano, o imperador Mutsuhito (também chamado de Meiji Tenno) deixa Kioto para fazer do Edo sua nova capital, com o nome de Tóquio. Na França, sob o pseudônimo de conde de Lautréamont, Isidore Ducasse publica Os Cantos de Maldoror³⁹; Carpeaux é acusado de atentado ao pudor por ter esculpido A dança, destinada à fachada da Ópera de Paris. Nos Estados Unidos, comemora­-se o término da via férrea Nova York­-São Francisco. Na Rússia, Tolstói termina o quarto volume de Guerra e Paz. Na Grã­-Bretanha, William Gladstone é nomeado primeiro­-ministro e Karl Marx começa a escrever o que será O Capital. Na Alemanha, um de seus amigos, Wilhelm Liebknecht, reagrupa as organizações operárias e funda o Partido Social­-Democrata. Na África, na Ásia, na Oceania e na América, colonizadores alemães, holandeses, espanhóis, portugueses, belgas, franceses e ingleses continuam a subjugar os habitantes e a massacrá­-los quando eles os atrapalham.

    No ano seguinte – 1870 –, enquanto o arqueólogo alemão Heinrich Schliemann descobre, em Hissarlik (Turquia), um sítio presumido como sendo Troia e saqueia todas as obras que traz à luz, uma guerra começa entre a França e a Prússia. Em Calcutá, o vice­-rei das Índias instaura um sistema nacional de diplomas. Uma terrível fome devasta o Bihar, o Rajastão, a Índia central, o Bengala e o Deccan, desencadeando horríveis revoltas⁵⁰. Para combatê­-las, a administração colonial inventa, no ano seguinte, a noção de "tribos criminosas" e edita o Criminal Tribes Act que lhe permite denunciar sob essa apelação as tribos (adivasi), mas também os ladrões, os excluídos, os desclassificados, os dissidentes, os pastores nômades, os mendigos (sannyasin) e os músicos, e reprimi­-los sem justificativas legais⁵⁰. Nesse mesmo ano, em toda a Índia, mais de trezentas plantations de chá, estendidas sobre 12 mil hectares, todas pertencentes aos ingleses, produzem apenas para exportação mais do que a China produz para ela mesma⁵⁰.

    Os administradores britânicos mais esclarecidos defendem que a repressão não seja a única resposta às revoltas e que uma modernização do sistema político torne possível também a modernização da economia rural, da qual dependem 95% dos habitantes, quase todos analfabetos. Em 1873 – ano em que o americano Christopher Scholes inventa a primeira máquina de escrever –, Charles Trevelyan, mais visionário do que nunca, é nomeado governador da província de Madras e, em seguida, encarregado das finanças junto ao vice­-rei, explica que é dever da civilização britânica familiarizar a Índia com o parlamentarismo⁹; ele propõe a instalação de um "conselho representativo em cada província, que será para toda a Índia a escola do autogoverno"⁹. Mas ele se encontra extremamente isolado: jamais, pensa­-se em Londres, os indianos serão capazes de se ocuparem dos seus próprios negócios.

    Em 1875, como anunciado, a Grã­-Bretanha força o vice­-rei do Egito, Ismael, a vender­-lhe por um preço irrisório sua parte no canal de Suez. Um excelente negócio: as ações passarão a ser pagas a uma taxa de 25% ao ano; o excedente, os quatro quintos do tráfico marítimo sobre o canal serão assegurados pela marinha mercante britânica e pela Navy. No mesmo momento, em Nova York, ocidentais começam a se interessar pelo mundo indiano: depois de vinte anos de viagens na Índia e no Tibete, a herdeira de uma grande família russa, Helena Petrovna­-Hahn (que escolhe ser chamada de Helena Blavatsky), funda a organização teosófica; seu objetivo é reforçar a fraternidade universal por meio do estudo das literaturas budista e bramanista. Essa organização logo desempenhará um papel considerável na vida de Gandhi. Neste ano, nasce Vallabhbhai Patel, que será com Nehru um dos dois principais colaboradores de Gandhi.

    Durante esse tempo, o jovem Mohandas (ele está com seis anos) aprende com sua mãe, de quem ele é extremamente próximo, os rudimentos do hinduísmo e do jainismo, sem que lhe seja imposta a rejeição às outras religiões com as quais ele convive na cidade. Deus está em todos os lugares, ela lhe ensina: nas plantas, nos animais, no fogo, na água, nas estrelas; as religiões dão imagens diferentes do ser supremo, do Sem forma, tão válidas umas quanto as outras; e o homem, elo na cadeia de seres vivos, pode, qualquer que seja a sua obediência religiosa, esperar por uma vida melhor na próxima reencarnação. Tudo isso, Mohandas não esquecerá jamais: ele morrerá propriamente por haver desejado compreender o ponto de vista dos muçulmanos.

    Paralelamente, na falta de uma escola, aprende também, com seu pai, a escrever o guzeráti, desenhando as letras na terra com os dedos¹⁰⁹. É, então, a única língua que ele fala.

    Em 1876, a França e a Grã­-Bretanha tomam definitivamente o controle das finanças públicas egípcias, enquanto, em Bayreuth, é inaugurado o Festspielhaus***; nos Estados Unidos, aparece o telefone de Bell, seguido do fonógrafo de Edison, e prossegue o genocídio dos ameríndios das planícies.

    Casamento em Rajkot

    Naquele ano de 1876, o pai de Mohandas é recrutado como diwan em Rajkot, a 180 quilômetros a leste de Porbandar. Rajkot não é uma cidade costeira. Quente e poeirenta, ela é mais populosa e desenvolvida que Porbandar¹²⁸. O posto é, portanto, mais interessante para o diwan. Essa mudança, que constitui uma espécie de promoção, não tem nada de excepcional. Acontece com muita frequência que um diwan mude de uma cidade para outra. E Karamchand, que tem, então, 53 anos, já passou 28 como diwan de Porbandar, onde é substituído pelo seu próprio irmão, Tulsidas¹⁵⁴. Antes de deixar Porbandar, segundo a tradição, ele promete seus filhos em casamento: para Mohandas cabe Kasturbai, filha de um comerciante da cidade, Gokuldas Makanji; uma menina encantadora e analfabeta que permanece na casa de seus pais enquanto o prometido segue a sua família para Rajkot⁵⁴.

    Os Gandhi se instalam no que é hoje Ghee Kanta Road, em uma bela casa chamada Kaba Gandhi no Delo. Mohandas, com sete anos, entra no curso primário em que o ensino é ministrado na língua guzeráti. Nessa época, a situação econômica do país é catastrófica: os rendimentos agrícolas começam a diminuir; a população, que ultrapassa 260 milhões de habitantes, continua a aumentar⁸⁰. Apesar da enorme capacidade de produção agrícola, a desorganização no armazenamento e nos transportes é tamanha que a fome provoca 4 milhões de mortes na Índia do Sul⁸⁰; relatórios atestam o endividamento dos camponeses; miseráveis se amontoam nos campos de refugiados. As revoltas recomeçam e a administração inglesa cria uma Famine Relief and Insurance; mas, em Madras, para economizar, o governador britânico, Richard Temple, reduz a quase nada as magras rações alimentares distribuídas nesses campos de miséria⁵⁰. Lorde Lytton, o vice­-rei, aprova a medida: É preciso manter vivos nossos camponeses, a qualquer preço, sem levar em conta os gastos?⁵⁰.

    Ao mesmo tempo, um brâmane guzerate, Swami Dayananda Sarasvati, propõe­-se a reformar o hinduísmo e funda a Arya Samaj, ou a Sociedade dos Nobres, para defender os Intocáveis, promover as uniões intercastas e um novo casamento para as viúvas; ele lança o conceito de swaraj: direito ao domínio de si mesmo, à autonomia e à autodeterminação de cada indivíduo. Teremos que voltar a falar dele, da mesma forma que de Mohammed Ali Jinnah que nasce neste mesmo ano em outra família – muçulmana – de comerciantes de Kathiawar⁵⁰ e que se tornará o fundador do Paquistão, após debater com Gandhi por muito tempo.

    Em 1877, a anexação do Transvaal pelos britânicos provoca uma primeira insurreição dos bôeres. A rainha Vitória é proclamada imperatriz das Índias, e os 565 estados principescos tornam­-se, assim, vassalos da Coroa. Separa­-se, a partir de então, a British Army in India (exclusivamente britânica, sobre a qual repousa a manutenção da ordem colonial) da Indian Army (que recruta centenas de milhares de homens entre os siques, os gurkhas, os pathans e os rajputs)⁵⁰. A Famine Relief and Insurance passa a ser nada mais do que uma caixa preta do Ministério de Obras Públicas⁸⁰.

    No Bengala, um jovem advogado, Surendranath Banerjee, faz, em vão, campanha para a simultaneidade dos exames na Índia e na Inglaterra, com o objetivo de melhorar o nível e de permitir o acesso dos diplomados indianos aos cargos públicos do país. Em 1878, Lorde Lytton, encarregado pelo primeiro­-ministro, Benjamin Disraeli, de conter o avanço russo na Ásia central, envia a Cabul uma missão que o monarca, Shir Ali, recusa­-se a deixar entrar, ao mesmo tempo em que recebe com pompas o general russo Stolyetov⁶⁰.

    Naquele ano, Tolstói publica Anna Karenina; Monet pinta a Gare Saint­-Lazare; e na Índia são publicados os primeiros jornais em línguas locais.

    Em Rajkot, o pai de Mohandas tem de enfrentar a ira do funcionário residente britânico. Por tê­-lo insultado e se recusado a pedir desculpas, ele é preso. E mesmo sendo finalmente liberado, sua carreira é golpeada¹⁵⁴. Durante esse período, o jovem Mohandas, que não é um aluno particularmente dotado, lê os versos do poeta guzerate Shamlal Bhatt:

    Por um copo de água, dê uma boa refeição, / por uma acolhida amável, incline­-se com zelo,/ Devolva um centavo de ouro,/ Devolva dez vezes os serviços que você recebe./ Os verdadeiros nobres sabem que todos os homens são apenas um/ e amam devolver o bem pelo mal¹⁰⁹.

    Bem mais tarde, ele comparará esse texto com o sermão da montanha de Jesus.

    Em 26 de maio de 1879, no momento em que a França toma o Sudão (futura Mali), o exército britânico ocupa Cabul e assina com o monarca um tratado de protetorado. Nesse mesmo ano, Edison patenteia uma lâmpada incandescente, enquanto, em Paris, Jules Guesde cria o partido operário socialista francês.

    Em 1880, em Londres, o liberal Gladstone substitui o tory **** Disraeli no cargo de primeiro­-ministro. Na Índia, a produção agrícola continua a diminuir⁸⁰; uma nova subvenção para a fome e um novo fundo de seguros são criados com a finalidade de comprar o excedente de cereais na Birmânia e distribuí­-lo para a população em caso de seca ou inundação⁵⁰. Um novo vice­-rei, George Robinson, assegura: o progresso dos meios de comunicação, especialmente o trem, permite agora combater a miséria de uma maneira que estava fora do alcance dos oficiais dos primeiros tempos⁵⁰. De fato, uma vez mais, o dinheiro é desviado e o fundo em questão serve para financiar a construção de mais de 16 mil km de vias férreas. O abate das vacas torna­-se um grave objeto de controvérsia e de união da comunidade hindu, primeiro germe de um nacionalismo ainda majoritariamente imaginário.

    Em 1881, enquanto aparece em Paris O Direito à Preguiça, de Paul Lafargue, e que, para surpresa geral, os camponeses bôeres esmagam o exército inglês em Majuba Hill, circula em Berlim o primeiro trem elétrico. A Índia atravessa novamente uma grave crise alimentar: seca, inflação, fome, mortalidade⁸⁰, revoltas. Nesse período, as tropas indianas promovem massacres na Pérsia, na China, no Afeganistão, no Egito e na África negra, para a grande glória da rainha Vitória.

    Em Rajkot, Mohania – apelido dado por sua mãe – entra no colégio, da mesma forma que seus dois irmãos mais velhos. O mínimo que se pode dizer é que ele não tinha nenhum carisma. Raquítico, covarde, tímido, introvertido, ele não brilha em classe e tampouco é um líder no pátio do recreio.¹⁵⁴ Muito susceptível, queixa­-se de tudo, e a menor crítica lhe arranca lágrimas. Ele começa a aprender o inglês, com dificuldade. Duas leituras o marcam naquele ano¹⁰⁹: um drama antigo, Shravana Pitribhakta Nataka, que narra o amor de um jovem, Shravana, por seus pais; e a história de Harishchandra, mártir da verdade¹⁰⁹– o que Mohandas também será um dia.

    No ano seguinte (1882), Tolstói publica Minha confissão e Os Evangelhos, enquanto Robert Koch publica sua descoberta do bacilo da tuberculose. As tropas britânicas se instalam ao longo do canal de Suez, mesmo que, em princípio, o Egito ainda seja uma província do Império turco: para Londres, a rota do Extremo Oriente deve ser absolutamente controlada. Na Índia, o vice­-rei, Lorde Ripon, afrouxa um pouco as rédeas: um novo texto, o Local Self­-government Act, instala, nas grandes cidades, pouco numerosas, conselhos municipais eleitos por alguns notáveis. Um chefe muçulmano da Índia do Norte e grande intelectual, Sayed Ahmed Khan, objeta que um tal sistema fará com que os muçulmanos vivam sob a dominação dos hindus, seis vezes mais numerosos, e reclama uma representação separada para eles. A divisão futura começa a germinar nessa observação. Em seguida, as taxas que protegiam os tecidos de algodão indianos da concorrência das manufaturas de Liverpool e de Manchester são suprimidas, o que ameaça os frágeis primeiros alicerces da indústria indiana.

    Nesse ano, um antigo primeiro-secretário do governo da Índia – o mais alto funcionário do Indian Civil Service –, Allan Octavian Hume, aposenta­-se depois de mais de trinta anos de carreira⁹; lendo os relatórios da polícia secreta, ele se inquieta com a iminência de uma insurreição rural, constata a ausência de qualquer corpo social intermediário e pede ao vice­-rei, por escrito, uma autorização para fundar uma associação na qual se reuniriam, uma vez por ano, em dezembro, em uma assembleia pan­-indiana (All­-India meeting) notáveis que discutiriam, em um clima de confiança, questões sociais. O vice­-rei, Victor Bruce, aprova e adiciona na margem: igualmente questões administrativas⁵⁹. Allan Hume começa, então, uma viagem pela Índia para convencer os notáveis a participarem de uma primeira reunião. Ele não encontra eco considerável, mas esse movimento se tornará um dia o principal partido político indiano e conduzirá o país à independência com Gandhi na liderança.

    Ainda em 1882, outro funcionário do Raj (indiano e de um nível muito modesto), Bankim Chandra Chatterjee, escreve um romance, Monastério da Felicidade, que narra a revolta dos monges­-soldados do Bengala, no século XVIII⁶. Nele encontramos um Hino à Mãe (o Bande Mataram, Eu te saúdo, ó Mãe) que será, mais tarde, musicado por Rabindranath Tagore e se tornará o hino do nacionalismo: ele estabelece um paralelo entre a ocupação (o estupro) da Mãe Índia pelos britânicos e uma passagem do Mahabharata na qual Draiipadi, a esposa dos cinco Pandava, é desnudada pelos irmãos Kaiirava, primos e inimigos dos Pandava. Naquele mesmo ano, Swami Dayananda Sarasvati, de quem falamos anteriormente, funda a primeira "associação para a

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