Salvando Keloi
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Salvando Keloi - Gilberto Galhardo de Andrade
Autor
1
Deitado sobre a sua cama estava ele, meio sonolento e cansado das atividades feitas durante o dia, onde brincara com seus amigos imaginários.
Sua cama não era das mais confortáveis, era simples de estrado fraco e colchão já deformado pelo tempo de uso.
Mas o corpo franzino de pés descalços mal afundava qualquer pedaço de boa espuma do colchão.
De repente ele escuta ao longe chamarem o seu nome, ele hesita em responder, mas a insistência do chamado o faz vibrar suas fracas cordas vocais.
- Fala... – responde ele para a voz que o chama.
Sua mãe, mulher simples, mas de princípios fortes, ordena a ele que levante e vá se lavar para poderem fazer a última refeição do dia que estava por acabar.
Então ele se levanta, senta na cama, que chega a ranger como o barulho da madeira velha, olha em direção ao quintal, vê o caminho de pedras que leva ao banheiro, desanima só de saber todo o trabalho que terá para poder se banhar.
Ouve novamente sua mãe apressá-lo para tomar o seu banho, então ele respira fundo prende o ar, segura por alguns instantes, e solta o ar com força.
Se levanta, pega um balde de alumínio com mais ou menos 30 litros de capacidade e com um chuveiro acoplado em sua base.
Ele então leva o balde e o pendura no cano apropriado para suportar o peso que será nele colocado. Ele dirige seu olhar por todo o vasto quintal à procura das latas que esquentariam o seu banho.
As localiza bem distante de onde estava, correu em direção as latas, apanhou as duas e foi direto a um tanque pegar água para aquecer em uma espécie de fogão onde sua mãe já acendera o fogo.
Cuidadosamente ele coloca as latas para aquecer a sua água e a de sua mãe, para que pudessem banhar-se e fazerem a refeição.
Enquanto esquentava a água, viu sua mãe fazer um sinal como dizendo para que pegasse alguns panos que serviriam para transportar as latas sem se queimar, e encher o balde que estava preso no banheiro.
Assim o fez, providenciou não só os panos como também as roupas e as toalhas para poderem se secar.
Deixou tudo preparado bem próximo à porta de saída do pequeno banheiro, rude e feita de ripas de madeiras com espaços e frestas por onde o vento sempre conseguia passagem.
Ele se voltou para o fogão e, a passos rápidos, aproximou-se da água que aquecia nas latas, colocou a mão sobre a água e sentiu o calor que dela exalava.
Concluiu que já era hora de tirar e fazer a travessia do fogão para o chuveiro improvisado no balde.
Deixou sua mãe banhar-se primeiro, já que não gostava muito de água quente, aguardou sua mãe finalizar seu banho, passou a ela suas vestes e a toalha para que ela pudesse se secar e vestir-se com roupa limpa.
Quando, depois de alguns minutos, sua mãe sai e libera o banheiro para que ele possa se lavar, arrasta um pequeno tronco, de cinco quilos, para alcançar a pequena chave que libera a água e a empurra, e água começa a cair.
Rapidamente ele se lava, para poder depois aproveitar a água como quiser, não correndo o risco de ela acabar e o seu banho não.
Toda essa rotina ele realizava a noite e depois pela manhã, já que não conseguia ficar sem tomar o seu banho. Levantava uma hora mais cedo só para poder se lavar, mesmo no frio.
Terminou seu banho, secou-se e se trocou, deixou tudo preparado para que, no dia seguinte, pudesse com rapidez realizar novamente o processo.
A voz incansável de sua mãe lhe chama para que ele se dirija à pequena mesa feita rudemente com pedaços de tábua e com pés de madeira e ferro, suas cadeiras eram tocos de árvores com tábuas pregadas para dar um mínimo de conforto ao sentar.
E sua mãe, com um sorriso leve no rosto, dá início ao ritual de todos os dias para a fome espantar, faz a sua oração pede a benção para o alimento e para o filho.
Sentam-se, e a mãe serve primeiro o filho e depois se serve. A refeição do dia era sempre a mesma: um arroz mal cozido, alguns caroços de feijão, filé de cacto cozido e um pequeno copo com água.
Fazem a humilde ceia em silêncio, a mãe briga com seus olhos fazendo o possível para segurar as lágrimas quando olha para o filho e o vê se alimentando com pouca vontade, apenas para matar a fome e não para apreciar o sabor da refeição.
É quando ele rompe o silêncio e pergunta à sua mãe:
- O que vamos comer amanhã, mãe?
Ela pensa e diz ao filho:
- Meu filho, prometo que amanhã teremos o que comer – então ele inicia um diálogo.
- Sabe mãe, um dia a gente vai sair daqui e conseguir mudar e melhorar de vida?
- Sim filho, vamos sim! E se depender de minhas orações, não demorará muito. Agora vamos nos deitar, pois amanhã você tem aula.
Ele olha rapidamente para a mãe, arregala os olhos e diz:
- Eu não quero ir pra escola não.
- Mas meu filho você precisar ir.
- Mas é muito chato lá, mãe!
- Chato ou não você tem que ir, é assim que você quer mudar de vida?
Ele então baixa a cabeça, ameniza seu sentimento de revolta com a missão rotineira da escola e concorda com a mãe.
- Tá bem, eu vou então.
Sua mãe recolhe os pratos da mesa e trata de limpá-los para ter menos serviço no dia seguinte.
Seu filho se dirige a passos lentos para o quarto onde horas atrás tentava cochilar, olha a cama como se desejasse não usá-la, mas como não tem opção, enfrenta o colchão.
Deita-se e vê o teto coberto de telhas quebradas, pedaços de madeira e buracos que, quando chove, inundam sua cama.
Naquele dia o céu estava sem nuvens e, através dos buracos, conseguia enxergar as estrelas na escuridão, que brilhavam com grande intensidade.
Começou a pensar em várias coisas que pudessem o fazer mudar de vida, as idéias iam e vinham em sua mente sem que ele fosse capaz de entender ou descrever qualquer uma delas.
E entre pensamentos e olhares, adormece.
Sua mãe chega para se deitar junto do filho, embora em móvel distinto, e bem mais precário que o de seu filho.
Ela o acaricia, ora e diz baixinho que nada é para sempre e que, com certeza, alguém lá em cima estaria olhando por eles e ouvindo suas súplicas.
Ela então beija o filho após velar seu sono, e se recolhe em sua cama feita de papelão forrado de folhas de jornais e papéis de presentes que encontrava na região onde morava.
Amanhece o dia e os feches de claridade invadem o pequeno lar dos dois, fazendo com que seus olhos se abram para um novo despertar do dia.
O menino rapidamente levanta e se dirige para seu banho, o faz e se apronta para que, junto de sua mãe, possa ir pra escola.
Eles saem juntos, o menino para a escola e mãe para a sorte da vida.
O dia sempre demorava a passar, até porque o menino estudava pela manhã e ficava na pequena escola até o entardecer, esperando a hora de sua mãe apanhá-lo.
Não demora muito e sua mãe chega com o sorriso mais forte do que de costume.
Ele avistou nos braços da mãe algumas batatas, cenouras e outros legumes, e entendeu o motivo daquele enorme sorriso.
Ele se voltou para o pequeno pátio da escola e pediu para um dos professores lhe conseguir um pouco de sal.
Junto com o ajudante, foram até a cozinha da escola e ele recebeu um punhado de sal para poder ter, depois de muitos dias, uma refeição diferente e mais saborosa. Bem mais saborosa do que o filé de cacto cozido sem sal e sem gosto.
Junta-se a sua mãe e ignoram as horas de caminhada que terão pela frente até chegarem à humilde casinha.
Só de saberem que terão uma refeição diferente do que as de costume, até se esquecem de todo o ritual que terão pela frente, pegar a água, aquecer a água, carregar o peso...
Vão pelo caminho fazendo planos para a refeição que estão prestes a preparar.
Quando avistam a trilha que leva para a casa onde moram, notam algo estranho ao longe, custam a acreditar.
O menino esfrega as mãos nos olhos e não acredita no que eles veem. A casinha onde moram sendo devorada pelas chamas, que consumia o pouco que tinham.
A mãe se ajoelha, não acreditando, abraça o filho que chora, olha para os céus um tanto quanto inconformada com o que estava acontecendo.
Alguns poucos moradores que das proximidades, com seus pequenos gestos e esforço, tentavam, em vão, apagar o incêndio que devorava aquela humilde morada.
A mãe assistia a tudo da mesma forma: ajoelhada e abraçada ao filho, os legumes que trazia nas mãos foram caindo e se perdendo no chão.
Ela olha para o filho que, aos prantos, só conseguia dizer em meios aos soluços de tristeza:
E agora mãe, e agora?
2
Aquela foi a mais longa das noites, tudo o que, em uma vida inteira, foi conquistado, em minutos foi perdido.
A única coisa que ainda resistia a tudo era a pergunta: e agora mãe?
.
Ela olhava para o filho sem ter o que dizer ou fazer, simplesmente o abraçou para tentar confortá-lo com seu carinho.
Um dos moradores vem até os dois e oferece dormida por uma noite, para que pudessem se recompor física e mentalmente.
Aceitaram prontamente o convite do velho senhor e se dirigiram para o seu humilde casebre, um pouco melhor e mais confortável do que mãe e filho haviam acabado de perder.
Lá chegando o gentil senhor ofereceu sua cama para que os dois pudessem descansar e enfrentar a dura rotina que teriam pela frente.
Pela manhã, pouco antes do sol raiar, os dois foram acordados pelo delicioso aroma de café e pão fresco. Simples, mas farta, viram uma mesa posta com a refeição que os aguardava.
O senhor tratou de servi-los e deixá-los bem à vontade e os chamou para degustarem o café da manhã em sua companhia.
Timidamente se aproximaram da mesa e se acomodaram para fazer a ceia matinal.
Foi quando o senhor olhou para a mulher e para o menino e disse para ambos:
- Tomei a liberdade de falar com um conhecido que me indicou um lugar mais adiante daqui, onde há uma casinha que necessita de alguém para cuidar dela...
Imediatamente a senhora falou – Não temos dinheiro para custear o aluguel desta casa e...
Antes que ela pudesse terminar, o senhor a interrompeu dizendo:
- Não se preocupem com isso, o dono já me deu as chaves e me pediu que os acomodassem lá, até porque ele não a usa.
O garoto escutava atentamente tudo o que aquele bondoso senhor falava e se enchia de esperança.
Diante da situação em que se encontravam, não tiveram outra escolha a não ser aceitar a oferta e tomar conta da casa.
Então a mãe olha para o homem diante dela e, com lágrimas nos olhos, agradece o bom homem.
- Muito, mas muito obrigada mesmo senhor...
- Amaro – responde ele - Senhor Amaro. E vocês são?
- Oh! Desculpe-me, sequer nos apresentamos. Meu nome é Ercilia e este é meu único filho.
Ela então olha para o menino e diz.
- Diga o seu nome para o senhor Amaro, filho.
O menino um tanto quanto assustado e com fome, para de comer um pouco, termina de engolir o alimento que seus dentes trituravam, e diz ao senhor.
- Meu nome é Edgar.
- Que bom! - Responde o senhor Amaro - Comam... comam mais que a caminhada é longa e precisamos ter as energias recarregadas. - E sorri a fim de também conseguir trazer um pouco de felicidade aos dois.
Edgar então pergunta ao senhor Amaro:
- A casa que o senhor vai nos levar é grande? Tem porta? Tem janela?
Sua mãe, vendo toda aquela euforia do menino, tenta fazê-lo parar.
- Mas o que é isso filho, chega de tanta pergunta!
Senhor Amaro sorri novamente e fala:
- Deixe o garoto perguntar... Olha Edgar, a casa é bem ajeitadinha, tem um grande quintal, uma pequena cerca em volta, muitas árvores ao redor, algumas até com frutas!
Edgar se admira – Nossa!
E o senhor Amaro continua – ... Já estava me esquecendo! Tem também um lago grande, bem pertinho, que é possível ver da janela dos quartos.
- E dá para pescar? Tem peixe lá? A água é limpa? – pergunta, eufórico, Edgar.
E, calmamente, o senhor Amaro responde.
- Isso eu não sei não, mas se nós formos para lá, vai ficar sabendo, é ou não é?
- Mãe, anda logo, eu quero ver como é lá! – diz Edgar.
Sua mãe termina a refeição e se propõe a recolher a mesa e lavar os recipientes utilizados, mas é impedida pelo senhor Amaro.
- Deixe tudo aí, senhora, eu arrumo depois que voltar.
E juntos os três seguiram pela estradinha e começaram a caminhar esperançosos, a fim de conhecerem logo a casinha, a qual seria, provavelmente, a sua morada por um longo tempo.
Depois de muita caminhada e bastante conversa entre os três, eles chegaram ao destino. Dona Ercilia não acreditava no que seus olhos viam. Edgar ficou sem reação, abismado, devorando com os olhos tudo o que via.
Senhor Amaro aponta com a mão e diz a eles.
- É esta casinha que está sendo oferecida à senhora, o que acha?
Dona Ercilia fica maravilhada com a casa.
- Ela é linda!
- Vamos entrar. Tome, pegue a chave, conheça o seu mais novo aconchego. – diz o senhor Amaro.
- Entra mãe, entra! – apressa o menino Edgar.
Eles entram e ficam maravilhados com o tamanho da casa, e até com muitos móveis, um tanto quanto empoeirados, nada que um dia de limpeza não resolva.
O senhor Amaro os deixa, alegando ter compromisso, e se despede dos novos moradores que seguem maravilhados com o lugar.
Dona Ercilia é só sorrisos, abraça o filho que também ri à toa e, só depois de algum tempo, se dão conta de que sequer agradeceram ao senhor Amaro.
- Meu filho, esquecemos de agradecer aquele homem que, gentilmente, nos deu morada e comida. Temos que voltar à sua casa e mostrar a ele nossa gratidão.
- O que você acha? – pergunta a mãe.
- É verdade mãe, a gente esqueceu né!?
- É verdade meu filho. Vamos nos acomodar e arrumar aqui, depois faremos uma visita ao senhor... senhor... como era o nome dele mesmo, filho?.
- Amaro, mãe. Senhor Amaro.
Ela então reflete, ao ouvir o nome duas vezes dito pelo filho e, em pensamento, diz:
- Aquele homem tem amor até no nome.
Rapidamente eles começaram a ajeitar tudo, deixar a casa com a cara deles. Edgar não se conteve e foi conhecer o quintal, as árvores e principalmente o lago.
Voltou para dentro de casa e disse à sua mãe.
- Mãe, é muito grande aqui! Gostei demais desse lugar.
Dona Ercilia se enche de alegria ao ver o filho superando a drástica perda que teve recentemente.
Eles passaram o resto do dia arrumando e limpando a casa. A lua já brilhava alta no céu quando resolveram ver o que iriam comer.