Pena de morte no direito e na literatura
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Pena de morte no direito e na literatura - Márcia Teshima
BIODATAS
PREFÁCIO
Aprendi com meu professor e amigo, Fábio Roberto D’Ávila, que a pena de morte contém uma contradição invencível: a morte não é pena; e a pena, em sentido jurídico, não pode ser morte. Todavia, em pleno século XXI, a pena de morte permanece sendo uma questão jurídica, política e filosófica. Isso se revela paradoxal na medida em que sua abolição, como se verifica nos ordenamentos jurídicos de diversas democracias constitucionais, certamente representa uma das conquistas civilizatórias mais significativas entre os trunfos dos direitos humanos.
No Brasil, a última execução de pena de morte de que se tem notícia não resultou do célebre caso Motta Coqueiro, mas foi a de um escravo chamado Francisco, ocorrida em 1876, no estado do Rio de Janeiro. Desde então, apesar da conservação de sua previsão legal, a pena de morte passou a ser sistematicamente comutada.
Isso não significa, contudo, uma larga tradição de repúdio à pena de morte, sobretudo em razão das ondas de autoritarismo que marcaram nossa história. No plano normativo, o constitucionalismo brasileiro apresenta uma ambivalência entre a abolição da pena de morte, ao menos no plano civil (Constituições de 1891, 1934 e 1946), e o seu restabelecimento (Constituições de 1937 e 1967/1969). A Constituição de 1988, por sua vez, não trouxe nenhuma garantia além da já conhecida: a abolição da pena de morte para crimes comuns, porém sua tradicional previsão para crimes de guerra.
Em tempos sombrios, marcadamente autoritários, os discursos sobre a necessidade de restabelecimento da pena de morte perdem a timidez, sobretudo em períodos eleitorais — à revelia das limitações de reforma constitucional —, revelando como ela ainda está presente e, pior, como encontra fácil adesão em parte expressiva da sociedade brasileira.
E, aqui, reside a importância deste livro — A pena de morte no Direito e na Literatura —, organizado por Márcia Teshima e Lilian Yamamoto, que reúne doze trabalhos inéditos que abordam distintos aspectos teóricos e práticos da pena de morte envolvendo as perspectivas jurídica, filosófica e literária.
Kohki Abe, professor da Universidade Meijigakuin, no Japão, abre a obra, examinando criticamente a promoção da abolição da pena de morte por meio de diversos instrumentos adotados no âmbito do direito internacional, com ênfase para o tratamento conferido aos crimes de guerra pelo Tribunal Penal Internacional.
Marielle Teixeira da Silva Polli e Márcia Teshima, ambas da Universidade Estadual de Londrina, apresentam as origens do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e seus instrumentos, tanto normativos quanto organizacionais, e seu papel de tutelar o direito à vida. Por meio do estudo de casos, as autoras observam que o sistema normativo não é suficiente para a efetiva proteção dos direitos humanos, sendo imprescindível a atuação de órgãos como a Comissão e a Corte Interamericanas para a garantia do direito à vida.
José Ricardo da Silva Baron e Marcia Teshima, vinculados à Universidade Estadual de Londrina, analisam as violações ao direito à vida e o direito à integridade pessoal, assegurados na Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a partir do caso Wong Ho Wing v. República do Peru, e da sentença prolatada pela Corte Interamericana.
Lucas Bálico Parpinelli e Patrícia Ayub da Costa, ambos também da Universidade Estadual de Londrina, partindo da premissa de que a pena de morte é uma forma de censura preocupante, oferecem um panorama histórico da evolução da pena de morte, especificamente no mundo ocidental, e o tratamento conferido pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Rafael Gomiero Pitta, da Universidade Estadual de Londrina e doutorando da Universidade Estadual do Norte do Paraná, identifica que a pena de morte, na China, responde a fatores ligados à opinião pública, realizando uma análise crítica a partir de pesquisas conduzidas por organismos internacionais no sentido de relativizar o impacto desse fator na manutenção da pena capital.
Fernanda Franck e Ivana Nobre Bertolazo, da Faculdade do Norte Novo de Apucarana, discutem a pena de morte e o imaginário social, evidenciando a irracionalidade que marca o sentido comum ao enfrentar a seguinte questão: "qual a justificativa que as pessoas dão para se posicionarem contra ou a favor à pena de morte?"
Ana Julia Paiva Pinceli e Laís Bignami Motta, ambas da Universidade Estadual de Londrina, investigam a história da pena de morte no Brasil e sua relação com o erro judiciário, utilizando-se do romance histórico Fera de Macabu, de Carlos Marchi.
Angela Couto Machado Fonseca e Dhyego Câmara de Araújo, ambos da Universidade Federal do Paraná, analisam a produção da morte e a exposição à morte sob a perspectiva da biopolítica. Para tanto, entendem que a devida tematização da morte exige ultrapassar as concepções de vida/morte como fenômenos meramente jurídicos e pensá-los como efeitos de relações de poder pertencentes a uma lógica da modernidade política.
Henriete Karam, professora do Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro Universitário UniFG, partindo do pressuposto de que a literatura pode contribuir para a reflexão no campo do direito, oferece um panorama da representação literária da pena de morte — e a análise das questões jurídicas nelas retratadas —, a partir de três romances da literatura universal: O último dia de um condenado, de Victor Hugo; Billy Budd, de Herman Melville; Portas abertas, de Leonardo Sciascia.
Maria Cristina Müller, da Universidade Estadual de Londrina, reflete sobre o julgamento de Adolf Eichmann, ocorrido na Corte Distrital de Jerusalém, entre abril e dezembro de 1961, e problematiza a banalidade do mal, noção desenvolvida por Hannah Arendt, tendo em vista a não correspondência entre ser mal e fazer o mal.
Renan Pavini, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, discute o equívoco de Derrida ao analisar um conhecido texto de Maurice Blanchot (La litteráture et le droit a la mort). Para tanto, resgata O último dia de um condenado, de Victor Hugo, a fim de demonstrar a militância do escritor contra a pena de morte, ao contrário da abordagem desenvolvida por Blanchot ao trabalhar as temáticas da morte, da literatura, do indivíduo, da história, da linguagem, da revolução, no próprio espaço de seu pensamento e no espaço literário.
Lilian Yamamoto, do Instituto Catuaí de Ensino Superior e da Universidade de São Paulo, aproveita a obra Lágrimas da Ignorância, escrita por um condenado à morte, Norio Nagayama, para problematizar a questão do tempo sob a perspectiva de quem aguarda a execução da pena capital. Para tanto, traz uma breve biografia do autor, a descrição do gênero literário watakushi shosetsu, o processo de condenação e o conceito de tempo no cárcere, interpretado como uma sucessão de presentes subtraídos do condenado.
Trata-se, em suma, de uma obra coletiva que merece atenção por parte das comunidades jurídica e acadêmica, seja pela qualidade dos trabalhos que contém, seja pela relevância e atualidade do tema que busca discutir, sob uma ótica nitidamente interdisciplinar.
Boa leitura a todos!
Porto Alegre, inverno de 2018.
Prof. Dr. André Karam Trindade
Presidente da Rede Brasileira Direito e Literatura
NOTA DAS COORDENADORAS
Nos últimos 50 anos, o entendimento sobre a pena de morte mudou drasticamente, e os instrumentos de direito internacional dos direitos humanos acompanharam essa tendência, sendo que 104 países aboliram-na de seus ordenamentos jurídicos. Apesar da importância de tal avanço, a escassez bibliográfica sobre o tema no Brasil foi uma das motivações para a elaboração desta obra. Trata-se de uma iniciativa inovadora no Brasil, que visa analisar a pena de morte nos aspectos teóricos e práticos a partir de uma ótica do direito, da filosofia e da literatura, para apontar os avanços da proteção à vida humana nas últimas décadas.
A concepção do livro surgiu do evento Pena de Morte: o Direito e a Literatura
em 2016, cuja palestra da professora doutora Henriete Karam, intitulada A pena de morte na literatura: Victor Hugo, Melville e Sciacia
, serviu como fonte inspiradora. O evento foi organizado pelo Programa de Formação Complementar em Direito Internacional dos Direitos Humanos e Mecanismos de Solução de Conflitos, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), do qual a coorganizadora, Márcia Teshima, é a coordenadora. O presente programa tem um histórico pleno de realizações e tem como principal escopo o estudo do direito internacional dos direitos humanos, promovendo a participação dos integrantes em atividades acadêmicas nos âmbitos nacional e internacional. Entre as realizações do grupo, destacam-se a obtenção do prêmio de melhor memorial escrito em língua portuguesa do júri simulado da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a participação em competições internacionais, como a da Academia de Direitos Humanos e Direito Humanitário da American University-Washington College of Law e Nelson Mandela World Human Rights Moot Court Competition, promovida pelo Centro de Direitos Humanos da Universidade de Pretória (África do Sul), em colaboração com o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, em Genebra.
No Brasil, a pena de morte encontra aplicação restrita aos tempos de guerra. Apesar disso, para o combate à criminalidade, ela é ainda vista como uma possibilidade para alguns. Para promover uma maior compreensão do tema, a obra reúne estudos sobre casos que versam sobre a temática no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em obras literárias e na análise filosófica sobre o tema. Oferecendo contraponto à tendência abolicionista, serão examinados os sistemas japonês e chinês de aplicação da pena de morte. Pretende-se perquirir as diversas análises que elucidam a tendência abolicionista da pena de morte no direito internacional. A Pena de Morte no Direito e na Literatura é a primeira obra brasileira que abrange essas questões, reunindo de maneira democrática autores doutores, mestres e alunos de graduação do Programa para tratar da temática.
Londrina, agosto de 2018.
Márcia Teshima
Lilian Yamamoto
OS CRIMES DE GUERRA E A PENA DE MORTE
Kohki Abe¹
A dinâmica da restrição da pena de morte no direito internacional
Os instrumentos de direitos humanos que restringem a Pena de Morte
A consciência sobre a pena de morte modificou-se drasticamente nos últimos 50 anos. O direito internacional desenvolveu a proteção à pessoa humana, direcionada à restrição da aplicação da pena de morte no âmbito dos direitos humanos e do direito humanitário, relacionado ao conflito armado.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi criada em 1948. O Pacto dos Direitos Civis e Políticos codificou parte do conteúdo da Declaração em 1966. O artigo 6 do Pacto estabeleceu o princípio de que Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida
² e, após esse princípio se tornar conhecido, foram estabelecidas regras detalhadas que tratam da pena de morte. As regras deixam claro que a pena de morte, por ser uma limitação do direito à vida, tem um caráter excepcional, devendo ser somente aplicada sob condições muito restritas.
Originalmente, o direito à vida não deveria admitir exceções. Entretanto, na realidade, há muitos países que estabelecem a pena de morte e, para que esses países ratificassem o Pacto de Direitos Civis e Políticos,
a pena de morte também foi admitida no instrumento, ainda que em condições muito restritas.
Em 1984, foi adotada uma Resolução da Organização das Nações Unidas que assegura os direitos dos condenados à morte, estabelecendo procedimentos extremamente detalhados. Essa tendência de restrição à pena de morte atingiu o seu ápice em 1989, quando, no âmbito das Nações Unidas, o Segundo Protocolo Adicional ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos com vista à Abolição da Pena de Morte foi criado³.
A Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes veta a execução da pena de morte de forma desumana. A Convenção sobre os Direitos da Criança proíbe a execução de menores de 18 anos. Dessa forma, vários instrumentos de direito internacional dos direitos humanos, assim como as resoluções das Nações Unidas, têm diminuído os casos em que é possível a aplicação da pena de morte, sendo o apogeu dessa tendência o supramencionado Protocolo Adicional com Vistas à Abolição da Pena de Morte.
Em 1983, o Conselho da Europa adotou e adicionou o Protocolo número 6 à Convenção Europeia de Direitos Humanos que Elimina a Pena de Morte. Esse instrumento previa a aplicação da pena de morte excepcionalmente para crimes cometidos em tempos de guerra, mas, em 2003, o Protocolo n. 13, voltado à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, Relativo à Abolição da Pena de Morte em Quaisquer Circunstâncias, prescreve a proibição da aplicação dessa pena, mesmo em situação de guerra. No Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948), codificada pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), tem a política de restrição à pena de morte como o Pacto de Direitos Civis e Políticos. Entretanto, em 1990, um protocolo que elimina a pena de morte foi criado. Dessa forma, a partir da segunda metade da década de 1980 até o século XXI, a pena de morte passa a não ser admitida de maneira expressa nos instrumentos de direitos humanos⁴.
A restrição da pena de morte no Direito Internacional Humanitário
Após a Segunda Guerra Mundial, em 1949, foram criadas 4 convenções que tratam da proteção de feridos, ou seja, regras de guerra em situações de conflito. Entre elas, a Convenção de Genebra Relativa à Proteção das Pessoas Civis em Tempo de Guerra e a Convenção de Genebra Relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra preveem condições específicas para a aplicação da pena de morte. A primeira Convenção prevê requisitos rígidos no procedimento da execução da pena de morte de civis. Ambas as Convenções foram complementadas por Protocolos em 1977. Os protocolos preveem a proibição da execução por crimes praticados durante a menoridade, gravidez, e de mães de crianças que se encontram na infância. Assim, mesmo durante os tempos de guerra, a aplicação da pena de morte foi restringida.
Em especial o artigo 3, letra d, comum às quatro Convenções de Genebra, prevê que estão proibidas as condenações proferidas e as execuções efetuadas sem prévio julgamento, realizado por um tribunal regularmente constituído
⁵. A disposição que prevê que ofereça todas as garantias judiciais reconhecidas como indispensáveis pelos povos civilizados
⁶ é a garantia de devido processo legal estabelecido no artigo 14 do Pacto de Direitos Civis e Políticos. Se esse princípio não for respeitado, não haverá possibilidade de se executar a pena de morte. Outrossim, há previsões específicas no Primeiro Protocolo Facultativo ao Pacto de Direitos Civis e Políticos que estabelecem que, quando há execução da pena de morte em tempos de guerra, ou em situações de emergência, haverá necessidade de garantir as mínimas condições, o que é ainda mais necessário do que quando ocorre em tempos de paz. Assim, enquanto há uma clara tendência de execução da pena de morte em tempo de paz, houve limitação dessa pena em tempos de guerra, de maneira que a sua aplicação tornou-se drasticamente difícil.
A Contenção da Pena de Morte no Direito Processual Penal Internacional
Na década de 1990, as regras do direito internacional progrediram dramaticamente no que se refere aos crimes de guerra. Nos tribunais especiais da ex-Iugoslávia e de Ruanda criados pelo Conselho de Segurança da ONU, em 1994, não há a previsão da aplicação da pena de morte. Está expressamente estabelecido que apenas a pena de reclusão é possível.
Na década de 1990, a mistura de elementos de tribunais nacionais e internacionais dá origem às cortes híbridas que foram criadas em várias regiões do mundo. Após o término dos conflitos armados, quando o Estado começa a dar novos passos, o papel realizado pelos tribunais no ajuste de contas para a realização da justiça torna-se de fundamental importância. Uma vez que há um forte apelo para que esses tribunais sejam bem estabelecidos, nascem os tribunais híbridos, com o envolvimento da ONU. Nos casos em que se observa o mínimo envolvimento da ONU, por exemplo, em Kosovo, Timor Leste, Serra Leoa, Camboja, entre outros, a pena máxima não consiste na pena de morte. A ONU, de maneira pioneira, nos instrumentos de direitos humanos e direito humanitário se esforçou para que houvesse eliminação da pena de morte. Se houvesse a instituição da pena de morte em Kosovo, Timor Leste ou Serra Leoa, a ONU não participaria na instituição dos tribunais. Dessa forma, para a criação de um tribunal justo, com a intervenção da ONU, a pena de morte não poderá ser instituída como a pena máxima.
O instrumento que estabelece o Tribunal Penal Internacional (1998) prevê a pena de prisão perpétua como a pena máxima. O Tribunal Penal Internacional é o tribunal no qual as pessoas que cometeram os crimes mais graves na face da Terra, como o genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, são trazidos ao juízo. Em suma, está estabelecido que os indivíduos que são julgados pelos crimes mais graves na face da Terra não serão suscetíveis da pena de morte. Se recordarmos que no Tribunal de Tóquio ou no Tribunal de Nuremberg a pena máxima era a de morte, é possível ver, simbolicamente, a modificação do comportamento do direito penal internacional com relação à pena capital.
A Restrição da Pena de Morte no Comitê de Direitos Humanos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos
O Comitê de Direitos Humanos é um órgão internacional de fiscalização para vigiar se o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966) está sendo respeitado. O Comitê avalia os relatórios que os países que fazem parte do Pacto apresentam a cada cinco anos. O Japão adotou o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos em 1979, tendo sido seus relatórios submetidos à avaliação do Comitê por 6 vezes. Além da análise dos relatórios, o Comitê também tem um procedimento para receber comunicações relacionadas às violações de direitos humanos. O indivíduo que alega ter sofrido violação dos direitos garantidos pelo Protocolo poderá recorrer ao Comitê após ter esgotado todos os remédios domésticos disponíveis. A seguir, vamos analisar como o Comitê tem julgado as comunicações que tratam da violação do direito à vida entre 1998 e 2008⁷.
Caso Kindler v. Canadá (1993). Após receber a condenação à morte pelo Tribunal no estado da Pensilvânia, o norte-americano Kindler fugiu para o Canadá. Os Estados Unidos solicitaram a sua extradição que foi concedida pelo Canadá. Kindler afirmou no tribunal no Canadá que
a pena de morte me espera nos Estados Unidos. Ao me extraditarem aos Estados Unidos, o Canadá, que já aboliu a pena capital (naquela época, o Canadá já tinha abolido a pena de morte nos tempos de paz) não deveria me extraditar. A extradição configura uma violação do Canadá ao direito à vida.
Não obstante a argumentação, a Suprema Corte do Canadá decidiu que apesar do Canadá ter abolido a pena de morte, a sua extradição aos Estados Unidos, não configura violação à Constituição
(KINDLER v. CANADÁ, 1993). Kindler apresentou comunicação ao Comitê de Direitos Humanos que decidiu que o fato do Canadá ter abolido a pena de morte não constitui obrigação do país recusar a extradição aos Estados Unidos. Não há obrigação de solicitação de garantias de que a pena de morte não será executada
(KINDLER v. CANADÁ, 1993).
Caso Ng v. Canadá (1993). Um condenado à morte no estado da Califórnia fugiu do presídio para o Canadá. Novamente o Canadá extraditou o condenado. Nesse caso, não foi a extradição em si que foi discutida, mas a punição desumana aplicada na Califórnia que executava os prisioneiros na câmara de gás. O Comitê entendeu que, se é possível prever que será aplicada tal pena, o Canadá estaria violando o artigo 7 do Pacto que veda a aplicação de penas desumanas.
Na primeira metade da década de 1990, várias comunicações relacionadas à Jamaica foram trazidas para o exame do Comitê. Eram comunicações que expunham a ausência de respeito ao devido processo legal nos julgamentos, e que determinavam a condenação à morte. O Comitê decidiu que o desrespeito ao devido processo legal configurava a própria violação ao direito à vida (art. 6). Nesse sentido, o Comitê emitiu recomendações para a libertação dos condenados.
Novamente em 2003, um condenado à morte na Pensilvânia, Roger Judge, foge para o Canadá. O governo canadense mais uma vez autorizou a extradição. Judge argumentou que, se retornasse ao país, perderia a sua vida, baseando seu processo na violação ao direito à vida. Uma vez que não logrou êxito por meio dos remédios internos, ele fez uma comunicação ao Comitê, que rebateu o argumento do governo canadense, baseado no caso Kindler, de 10 anos atrás, dizendo que o entendimento desse caso já não era mais válido reconhecendo que
se deve garantir consistência e coerência na sua jurisprudência, mas deve haver situações excepcionais em que a revisão do escopo da aplicação dos direitos protegidos pelo Pacto é solicitado, como quando uma violação alegada envolve os direitos mais fundamentais — o direito à vida— e em particular se houve um desenvolvimento notável na esfera factual e legal e modificações na opinião internacional acerca do tema levantado (KINDLER v. CANADÁ, 1993).
Dessa forma, observa-se que, em comparação ao caso Kindler, de 1993, houve uma ampliação do consenso internacional em direção à abolição da pena de morte. Além disso, a Suprema Corte do Canadá passou a pedir garantias da não execução da pena de morte para realizar a extradição. Atualmente, há o entendimento de que há violação do direito à vida (art. 6) caso seja concedida extradição de um país que tenha abolido a pena de morte a país que ainda a preveja.
Nos últimos 10 anos, houve uma grande movimentação internacional de clamor pela abolição da pena de morte. Outrossim, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos é vigente e deve ser interpretado à luz dos padrões atuais. Dessa forma, é como o direito internacional estivesse vivo e sempre se modificando. Portanto, não causa nenhum estranhamento a decisão do Comitê de Direitos Humanos.
A Contenção da Pena de Morte em Tribunais Internacionais
A Corte Internacional de Justiça e a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiram casos envolvendo a pena de morte. Ambas as cortes julgaram casos que tratavam de provisões existentes na Convenção de Viena sobre Relações Consulares. A Convenção, estabelecida em 1963, garante no artigo 36 que os funcionários consulares terão direito a visitar o nacional do Estado que envia que esteja encarcerado, preso preventivamente ou detido de qualquer outra maneira, conversar e corresponder-se com ele e providenciar quanto à sua defesa perante os tribunais
⁸.
Por exemplo, uma pessoa de nacionalidade japonesa que sofra detenção, prisão preventiva ou encarceramento na China tem a garantia de comunicação ou direito à entrevista com o consulado japonês sediado na China. Na verdade, esse direito tem sido amplamente desrespeitado nos Estados Unidos. Em especial, no estado do Texas, houve muitos casos em que não se concedeu o direito à comunicação aos réus que foram condenados à morte. Havia muitos mexicanos incluídos entre os prejudicados. O governo mexicano dirigiu-se à Corte Interamericana de Direitos Humanos solicitando uma opinião consultiva sobre a ação dos Estados Unidos que viola a Convenção sobre Relações Consulares, concluída em Viena em 24 de abril de 1963
(CASE..., 2008, p. 311). A Convenção Americana de Direitos Humanos está vigente no continente americano, e há uma Corte estabelecida sob a Convenção. A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem a competência de elaborar opinião jurídica acerca da interpretação de tratados de direitos humanos.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu sua opinião consultiva em 1999, em que, de forma direta e indireta, apontou que o ato dos EUA, de não dar a possibilidade para que os prisioneiros tenham contato com os consulados, violava o art. 36 da Convenção sobre Relações Consulares, além de violar o direito à vida, quando há condenação à pena de morte.
A opinião consultiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos também teve grande impacto sobre a Corte Internacional de Justiça. O Paraguai, seguido pela Alemanha e pelo México, apresentaram procedimentos perante a Corte Internacional de Justiça argumentando que seus nacionais não tiveram a oportunidade de ter contato com seus consulados, sendo assim condenados à morte. Assim, apontaram a violação da Convenção sobre Relações Consulares.
Em especial, há um importante caso apresentado pela Alemanha. Os irmãos LaGrand estavam detidos no estado do Texas, sendo condenados à morte. A Alemanha apontou a violação à Convenção sobre Relações Consulares perante a Corte Internacional de Justiça de modo a suspender a execução. A CIJ ordenou aos EUA a suspensão da execução em suas medidas provisionais. Entretanto, os EUA ignoraram tal ordem e seguiram com a execução. Mesmo após a execução, o julgamento teve prosseguimento e, ao final, concluiu-se que houve violação do art. 36 da Convenção sobre Relações Consulares.
Talvez seja possível afirmar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos é a corte mais liberal do mundo. Ela exerce uma grande influência na Corte Internacional de Justiça. Assim, o pedido de ONGs e de muitos indivíduos da Alemanha para que se poupasse a vida dos irmãos LaGrand chegou ao governo alemão, que levou o pleito à Corte Internacional de Justiça. Além disso, não se pode ignorar o fato de que o movimento internacional para a eliminação da pena de morte também foi um elemento importante. Até mesmo na CIJ, que, até aquele momento, consistia na personificação do direito internacional centrado nos Estados, pode-se verificar que o direito dos indivíduos passa a ser protegido. Além disso, a tendência em restringir a aplicação da pena de morte se alastra.
O Significado da adoção do estatuto do Tribunal Penal Internacional pelo Japão
A ligação entre a guerra e a Pena de Morte
O Tribunal Penal Internacional talvez se torne uma das palavras-chave que fazem o elo entre os crimes de guerra e a pena de morte. O papel exercido pelo Tribunal Penal Internacional na contenção da guerra e pena de morte se tornou muito importante.
A partir do século XX, cresceu o movimento de intolerância à guerra. Se, por um lado, foi porque se tornou possível reunir a influência de várias vozes; por outro, reside no fato de que o uso de armamentos com capacidade de extermínio de pessoas a serem utilizados durante a guerra poderiam criar altos danos para ambos os países, além dos custos de guerra terem se tornado altos. Dessa forma, chegou o momento de se resolverem os conflitos sem guerra.
O conflito deve ser resolvido pacificamente, a força armada não deve ser acionada, a ameaça com o uso da força não deve ser feita. Essa é a realidade do direito internacional, o pensamento pacífico no qual se fundamenta o direito internacional. A não utilização das armas, a resolução pacífica de conflitos constitui um grande princípio que deve ser perseguido incessantemente. Na sociedade internacional, o sistema de proteção dos direitos humanos se fortaleceu nos últimos 50 anos sob o apelo de melhorar as condições causadoras de conflito. Na sociedade internacional, ao construir um ambiente de proteção aos direitos, é possível prevenir os conflitos. Caso ocorram os conflitos, tenta-se resolvê-los de forma pacífica. Para que não surjam conflitos, fortalece-se a proteção dos direitos humanos. O comportamento pacífico há mais de meio século fortaleceu o sistema de direitos humanos.
Mas, a aspiração de paz tem sido pisoteada inúmeras vezes pelas grandes potências. Apesar do direito internacional se fundamentar no pensamento pacifista; na realidade, os países europeus e os EUA têm movimentado o direito internacional, pois as pessoas que representam esses países são a elite política decisória. Na sua maioria, são homens que compõem a elite masculina do poder, que tem em comum a memória
de agressor, que, nesse contexto, pisoteiam o direito internacional nos bastidores. Por esse motivo, o uso da força não cessou, sendo o direito internacional visto apenas do lado que fazia o seu uso. Como não se levou em consideração o ponto de vista daquele que não fazia o uso da força, esta se repete, e a punição dos crimes de guerra daqueles que fizeram uso da força não era considerado como uma possibilidade. Uma vez que a cadeia de impunidade ou de irresponsabilidade tem se repetido, o pensamento pacífico do direito internacional tem sido continuamente pisoteado.
Nesse contexto, da década de 1990 até o século XXI, mulheres e indígenas, além das populações que não foram protegidas pelo direito internacional, erguem as suas vozes para que o direito internacional lhes possa dar ganhos e que possam ser transformados. Mas, em reação inversa, os Estados Unidos procuraram ter o direito internacional em suas mãos novamente, e a elite decisória que sustenta a administração norte-americana provoca o crescimento da movimentação para que haja uma legalização do império
das empresas transnacionais. Dessa forma, há uma competição acirrada entre a força que procura atrair o direito internacional para o indivíduo e a força que procura, mais uma vez, atrair o direito internacional para o lado do império.
O Tribunal Penal Internacional não é um resultado da legalização do império
no direito vigente; muito pelo contrário, resulta do surgimento de uma nova onda. O Tribunal Penal Internacional retém o ponto de vista do lado daquele que é atacado, e não daquele que ataca, tendo um significado muito importante, uma vez que não apoia a memória do agressor.
Cortando a Corrente da Impunidade
O que chama a atenção é a função do Tribunal Penal Internacional (TPI) de finalizar a corrente da impunidade. A lei controlada pelas grandes potências, quando violada por elas, não resulta em sanções, gerando uma corrente de impunidade que se tornava um terreno fértil para a continuidade de novas guerras. Cessar a corrente de impunidade é a grande missão destinada ao TPI. A partir da contenção de crimes, como os crimes de guerra e genocídio, será possível organizar um ambiente ou atmosfera legal. Em outras palavras, seria uma forma de obter o primado do direito em vez da força, sendo um sinal da construção de uma sociedade internacional.
O Tribunal Penal Internacional julga as pessoas que cometeram crimes e, nesse sentido, é um tribunal penal, mas o que esse tribunal internacional deseja é que o criminoso receba uma pena, o que seria uma forma de a vítima ter a sua dignidade social recuperada.
Outro ponto importante é que o Tribunal Penal Internacional vetou de maneira absoluta a pena de morte. Os crimes que deverão ser julgados no tribunal são os crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade, mas o fato de não se aplicar a pena de morte a pessoas que cometeram esses crimes torna ainda mais difícil a aplicação da pena de morte. Assim, é possível concluir que o Tribunal Penal Internacional propicia um novo ambiente internacional, em que se produz um contexto sem a existência de pena de morte.
O Tribunal Penal Internacional traz o ponto de vista daqueles que foram atacados, almejando a paz, ao mesmo tempo que a competência da violência estatal não permite a pena de morte. Dessa forma, reflete a construção de uma ordem internacional cujo ideal não inclui o emprego necessário da força. É por esse motivo que os Estados Unidos, criadores da ordem internacional pela força, possuem uma forte aversão ao tribunal. O Tribunal Penal Internacional, ao ser administrado ideológica e fielmente, em suma, desde que não se deixe levar pela dinâmica da codificação do Império
, será uma oportunidade de modificar a sociedade internacional. Nessa ordem, a pena de morte não seria mais admitida.
Referências
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¹ Professor de Direito Internacional do Departamento de Direito da Universidade Meijigakuin, Yokohama, Japão. Ex-presidente da Sociedade Japonesa de Direito Internacional dos Direitos Humanos, Associação Japonesa de Estudos da Paz e da ONG Human Rights Now
. Presidente do Conselho de Direitos Humanos do Governo de Kawasaki e conselheiro em assuntos de refúgio para o Ministério da Justiça do Japão. Texto traduzido por Lilian Yamamoto do capítulo 3 do livro Aragau shisou- Heiwa wo tsukuru chikara (Ideologia de Resistência- A força da criação da paz), Tóquio: Fumashobo, 2008, p. 79-93. Atualizações, após 2008, constam nas notas de rodapé.
² Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/pacto.htm. Acesso em: 22 de jul. 2019.
³ A Assembleia Geral da ONU adotou resoluções sobre a moratória aplicada na execução da pena de morte em diversas ocasiões (2008, 2010, 2014 e 2016).
⁴ Em 2015, a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos adotou o Projeto de um Protocolo para a abolição da pena de morte, visando promover a eliminação dessa pena no continente africano.
⁵ Convenção para Melhorar a Situação dos Feridos e Doentes das Forças Armadas em Campanha. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Conven%C3%A7%C3%A3o-de-Genebra/convencao-de-genebra-iii.html. Acesso em: 22 jul. 2019.
⁶ Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/pacto.htm. Acesso em: 22 de jul. 2019.
⁷ Casos analisados pelo mesmo Comitê após 2008 (lista não exaustiva): Johnson x Gana, UN Human Rights Committee (HRC), Communication No. 2177/2012: Human Rights Committee: Decision adopted by the Committee at its 110th session (10–28 March 2014), 6 May 2014, CCPR/C/110/D/2177/2012. Disponível em: http://www.refworld.org/docid/5374aabc4.html. Acesso em: 11 abr. 2018; Zhuk x Bielorússia, UN Human Rights Committee (HRC), Communication No.1910/2010, Human Rights Committee: Decision adopted by the Committee at its 109th session (14 October–1 November 2013). 2 December 2013, CCPR/C/109/D/1910/2009. Disponível em: http://juris.ohchr.org/search/results/2?typeOfDecisionFilter=0&countryFilter=0&treatyFilter=0/. Acesso em: 11 abr. 2018; Andrei Burdyko v. Belarus, CCPR/C/114/D/2017/2010, UN Human Rights Committee (HRC), 25 September 2015. Disponível em: http://www.refworld.org/cases,HRC,593171544.html. Acesso em: 11 abr. 2018.
⁸ BRASIL. Decreto n. 61.078, de 26 de julho de 1967. Convenção de Viena sobre Relações Consulares. 1967. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d61078.htm. Acesso em: 11 ago. 2019.
O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS E O DIREITO À VIDA
Marielle Teixeira da Silva Polli⁹
Marcia Teshima¹⁰
Introdução
Em 1945, no cenário após a Segunda Guerra Mundial, quando os direitos individuais da pessoa