Não Julgueis: antropologia da justiça e figuras da opinião pública entre os séculos XIX e XX
De Luigi Lacchè
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Diego Nunes, na Apresentação
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Não Julgueis - Luigi Lacchè
Depois da religião e da realeza, não seria [a Justiça] a maior máquina das sociedades?
— H. de Balzac, Une ténébreuse affaire
Estava prensado contra a mesa, a aglomeração dele era tão grande que ele teve de oferecer resistência para não empurrar estrado abaixo a mesa do juiz de instrução e talvez mesmo este.
— F. Kafka, O Processo
Apresentação
Trazemos ao público de língua portuguesa a tradução de 'Não Julgueis': Antropologia da justiça e figuras da opinião pública entre os séculos XIX e XX
, escrito pelo professor Luigi Lacchè, catedrático de História do Direito e ex-reitor da Universidade de Macerata, na Itália. A presente obra, originalmente publicada em italiano (Lacchè, 2009), já foi traduzida para o alemão (Lacchè, 2012) e para o espanhol (Lacchè, 2014), e é fruto de conferência realizada em 2008 para o curso de História da Justiça na Universidade de Nápoles.
Partindo da literatura e passando pela tradição cristã, pela filosofia e pela crônica jornalística chega até a história do direito, construindo uma visão integrada de o penal
, concepção cunhada pelo mestre do professor Lacchè e um dos principais historiadores do direito penal do século XX, Mario Sbriccoli. Para este último,
refiro-me à história penal como a um campo que compreende a história do direito penal, mas que não se exaure nele, porque no penal não há somente o direito. Existem as normas, que são algo diferente (talvez muito diferente), existem as conexões com a sociedade, os valores, os interesses, as razões de alarme, as relações com o Estado, a relação entre ordem e garantia. Existe o controle social, que não é direito nem legislação, não é sanção, nem sancionado, mas tem uma importância extraordinária. Além disso, malgrado tenhamos sido habituados a pensar a partir do pressuposto segundo o qual o penal é algo unidimensional, determinado por sua derivação integralmente estatal, a história do penal é, na verdade, a história de uma pluralidade articulada
(Sbriccoli, [1993] 2009, p. 1.181).
Analisando tal passagem, publicada post mortem, o professor Lacché apresenta a pluralidade de ‘ingredientes’
que compõem uma história do penal:
"[...] o privilégio da obra doutrinal e do papel dos juristas; os sistemas normativos diversos pelo penal; a legislação; a criminalidade presente; a práxis judiciária; a processualidade do direito penal, ou melhor, o entrelaçamento, por muito tempo, insolúvel entre a dimensão prática do enforcement e o desenvolvimento dos princípios substanciais; a constante adequação do penal à constituição material de cada sociedade; a presença crucial da política na conformação dos sistemas penais e no uso do penal por parte dos poderes públicos, com o penal mostrando uma natural e fortíssima propensão a assimilar-se com as fases políticas e com o momento ‘ideológico’ de cada fase diversa: em última instância, com as sensibilidades e as culturas, com as visões éticas, com a ideia de civilização que as sociedades elaboram e depois buscam realizar" (Lacchè, 2007, p. 16).
Diante disso, fica plenamente justificada a abordagem do autor, que é fruto de longa meditação acerca da construção de uma narrativa historiográfica adequada à complexidade da questão penal. Esta, como visto, apresenta-se mais enquanto um caleidoscópio do que propriamente um monólito. É justamente na variedade de fontes que é possível, senão necessário, reconstruir o penal.
No Brasil, a história da justiça tradicionalmente tem sido feita a partir da perspectiva da história social. Trata-se de historiografia em grau já muito avançado, desde os estudos sobre a inquisição na América Portuguesa (Vainfas, 1989), passando pelos estudos sobre escravidão (Mamigonian, 2017) e chegando nos movimentos sociais dos trabalhadores (Castro Gomes; Silva, 2013). Os historiadores reconheceram no sistema de justiça em ação um cenário privilegiado; em especial, pela análise de processos judiciais.
Em âmbito mais específico, como a história do tribunal do júri, a questão se confirma: desde o trabalho clássico de Thomas Flory (1981) sobre jurados e juízes de paz na formação do império, passando pelos bons trabalhos sobre história da justiça criminal, como o de Ivan Vellasco (2008), chegando em análises mais recentes, como a microhistória de Deivy Carneiro (2019). Todos eles têm contribuído para o debate apresentando novas fontes e novas perspectivas de análise da sociedade brasileira e sua participação na administração da justiça criminal.
Entre nós, ainda está em construção uma historiografia jurídica, feita por historiadores do direito com formação jurídica, capaz de exaltar nesses processos a autonomia do direito.¹ Aquilo que o também historiador do direito de Macerata, Massimo Meccarelli, tem se referido como uma história das dimensões jurídicas da justiça
(2015).
A disponibilização deste texto do professor Lacchè em nosso idioma pode nos estimular a apostar-se em tal perspectiva da História do Direito, que ultrapassa o basilar estudo – muito necessário em uma área em formação (Dal Ri Jr., 2013; Fonseca, 2012) – das grandes legislações, dos principais institutos doutrinários e da praxe tribunalícia.
Neste sentido, parece haver amplo espaço para a discussão de casos da justiça brasileira na história e seu entrelaçamento com importantes setores da sociedade civil como a imprensa, tal qual nos proporciona o professor Lacchè, realizada por historiadores do direito profissionais. Assim tenderemos a sentir menos os efeitos, ou ao menos colocar no devido lugar de entretenimento, as estórias da justiça e seus baluartes (Castro Neves, 2018).
A longa tradição do júri no Império; a presença dos bacharéis na imprensa até o início da república; as longevas discussões sobre a constituição da profissão advocatícia, desde a fundação do IAB até a criação da OAB; a longa permanência de rábulas, provisionados e outras figuras sem formação jurídica na vida dos tribunais; a conformação