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O processo de Luís XVI
O processo de Luís XVI
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E-book260 páginas6 horas

O processo de Luís XVI

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Sobre este e-book

Esse processo, assim conduzido, tinha a dupla utilidade de recolocar a realeza onde ela realmente está, no povo, constatar o direito deste e começar para ele o exercício por toda a terra; por outro lado, trazer à luz esse ridículo mistério do qual a humanidade bárbara fez há tanto tempo uma religião, o mistério da encarnação monárquica, a estranha ficção que supõe a sabedoria de um grande povo concentrada num imbecil — governo da unidade, diz-se, como se essa pobre cabeça não fosse ordinariamente o joguete de mil influências contrárias que a disputam.
IdiomaPortuguês
EditoraEDUEL
Data de lançamento6 de nov. de 2019
ISBN9788530200626
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    O processo de Luís XVI - Jules Michelet

    XVI.

    CAPÍTULO I

    Luís XVI era culpado.

    Objeto dos capítulos seguintes. Circunstâncias atenuantes em favor de Luís XVI. Mentiras do rei constatadas pelos realistas. Apelo do rei ao estrangeiro. Não existia, em 93, nenhum documento decisivo contra ele. Seu jesuitismo político, seu apego às doutrinas da razão de Estado e da salvação pública. Tradição real da razão de Estado e da salvação pública. Os reis e os príncipes, formando uma família, desconheciam, traíam facilmente a nacionalidade. Cada nação tornando-se uma pessoa, o estupro de uma nação é o maior dos crimes.

    Luís XVI era culpado. Para convencer-se disso, basta con-frontar, de um lado, suas alegações, do outro, as alegações contrárias, as aterradoras confissões feitas, principalmente após 1815, pelos realistas franceses e estrangeiros, os mais devotados servidores do rei.

    Apressemo-nos em dizer que, todavia, ele tinha a seu favor graves circunstâncias atenuantes. A fatalidade da raça, de educação, de entourage, constituía-lhe, talvez, um tipo de ignorância invencível. Coisa estranha, entre suas numerosas mentiras (que vamos constatar), ele não se considerava responsável por nada e julgava-se inocente. Culpado mais do que imaginava, ao menos não era indigno da clemência pública. Suas veleidades de reformas, seu ministério de Turgot, a glória marítima de seu reinado, Cherbourg e a guerra da América, pediam que se lhe concedessem graça.

    Confrontemos suas alegações e os desmentidos que lhes dão os realistas.

    1. Nunca tive a intenção de sair do reino, disse em 26 de junho de 1791, em sua declaração, aos comissários da Constituinte. Ele dissera em 20 de junho ao sr. de Valory, o guarda-costas que o acompanhava na viagem de Varennes: Amanhã dormirei na abadia de Orval, abadia situada fora do reino, em território austríaco (publicado em 1823, p. 257 do volume Affaire de Varennes, coleção Barrière). Nenhum testemunho mais grave que o do sr. de Valory, que deu sua vida ao rei nessa perigosa viagem, e, sobrevivendo por milagre, exibiu em 1815 seu fanatismo realista como presidente da corte prebostal do Doubs.

    2. Não tenho nenhuma relação com meus irmãos, diz o rei na mesma declaração de 26 de junho de 1791. E, dez dias depois, em 7 de julho, diz Bertrand de Molleville (Mémoires II, 171), o rei expediu seus poderes ao Senhor. As memórias judiciárias de Froment, primeiro organizador das Vendeias meridionais, informaram-nos, por volta de 1820, que o rei tinha por agente ordinário junto a seus irmãos o alemão Flachs-landen.

    3. Não tenho nenhuma relação com as potências estran-gei-ras, não lhes enderecei nenhum protesto (declaração de 26 de junho de 1791). As Mémoires d’un Homme d’État (I, 103) dão-nos textualmente o protesto que ele endereçara à Prússia, em 3 de dezembro de 1790, e testemunham ter ele endereçado protestos semelhantes à Espanha e às outras po-tências. Mallet-Dupan foi especialmente enviado, em 91, aos príncipes alemães, e encarre-gado de explicar de viva voz o que não se queria escrever.

    No mesmo dia em que o rei aceitou solenemente a Constituição, e recebeu, de alguma forma, a anistia nacional, vimo-lo entrar chorando de raiva, humilhado com o novo cerimonial, e, nessa exasperação, escrever imediatamente, ab irato, ao imperador (sra. Campan, II, 169). O testemunho bastante superficial da camareira torna-se grave quando se trata dessa cena interna, tão surpreendente e tão patética, da qual foi testemunha com várias outras pessoas.

    4. Se ele negou toda relação com as potências, com razão ainda maior nega ter apelado para seus exércitos. Entretanto, os srs. de Bouillé, em suas justificativas endereçadas aos realistas, foram obrigados a dizer claramente o que se passara, com sua franqueza militar. O pai já se explica desde 1797. O filho (Mémoires l823, p. 41) fala de forma ainda mais clara; en-viado para preparar a viagem a Varennes, exigiu uma missiva do rei e da rainha. A rainha expressava nesse bilhete a necessidade de assegurar-se nos socorros das potências estrangeiras e que se ia trabalhar com afinco nesse sentido... A carta do rei era de seu próprio punho e detalhada. Ele dizia que era preciso assegurar-se nos socorros estrangeiros e pacientar até lá.

    Deu todo o poder a Breteuil para tratar com o estrangeiro. Todos os escritores realistas confessam-no sem dificuldade.

    Em 1835, a Revue rétrospective publicou a carta que a rai-nha escrevia ao imperador, seu irmão, em 1o de junho de 1791, para obter dele um socorro de tropas austríacas, dez mil homens para começar; no entanto, tão logo o rei esteja livre, diz a rainha, eles verão com alegria as potências apoiarem sua causa.

    O sr. Hue, camareiro do rei, que em 10 de agosto acompa-nhou-o das Tulherias à Assembleia, viu-o, inclusive nos Feuillants, enviar um gentil-homem, sr. Aubier, ao rei da Prússia. Com que objetivo? A invasão imediata dos exércitos prussianos indica-o em demasia. Em toda a expedição, de Longwy a Verdun, de Verdun a Valmy, um agente pessoal de Luís XVI, sr. de Caraman, encontra-se junto ao rei da Prússia (Mémoires d’un Homme d’État, I, 418), sem dúvida para balan-cear a influência dos chefes emigrados, para conservar à expedição o caráter de um socorro solicitado por Luís XVI, dirigido por ele próprio para agir em seu proveito.

    Cativo nos Feuillants, no Templo, temia os emigrados e seus irmãos, tanto quanto os jacobinos. Tomava suas precauções contra eles junto a soberanos; apelava para estes, de preferência. Leitor assíduo de Hume, cheio da lembrança de Carlos I, que pereceu por ter feito a guerra civil, desejava evitá-la mais do que tudo. Pensava que os estrangeiros, entrando a fim de pôr ordem na França, não trariam as paixões furiosas dos emigrados, seu espírito de vingança, sua insolência, seu espírito de reação. Seu primeiro plano era introduzir o estrangeiro, mas em tal medida que ele próprio pudesse permanecer senhor da situação; teria chamado um corpo considerável de suíços, os vinte e cinco mil homens que as antigas capitulações autorizavam, um outro corpo de espanhóis e piemonteses, doze mil austríacos apenas, poucos ou nenhum prussiano; desconfiava da Áustria e mais ainda da Prússia. Foi apenas no último momento, após 10 de agosto, que ele lançou-se nos braços desta última potência.

    Pode-se dizer que, de fato, seus irmãos arruinaram-no. Implacáveis inimigos da rainha, eles teriam entrado apenas para mover-lhe um processo, e teriam anulado o rei, usurpando a realeza, como tenência geral. Luís XVI temia principalmente o conde de Artois, o pupilo do pérfido Calonne, o príncipe dos loucos. A morte de Luís XVI era o que mais podia agradar a essa corte de intrigantes. Dançaram em Coblença (se acreditarmos em um livro muito realista) pelo 21 de janeiro.

    A Convenção ignorava completamente essa situação de Luís XVI com relação à emigração. Ela teria tido alguma piedade se houvesse sabido que esse homem desafortunado estava entre dois perigos e temia sua própria família.

    Ignorava igualmente os fatos reais e graves que incrimina-vam Luís XVI.

    Nenhum daqueles que o acusaram na Convenção, nem Gohier, nem Valazé, nem Mailhe, nem Rulh, nem Robert Lindet, souberam de algo, articularam algo de positivo. Geralmente invectivam, divagam, tateiam nas trevas, querem agarrá-lo às cegas, e ele escapa-lhes. Acusam-no de três tipos de coisas: ou de coisas anistiadas (Nancy, Varennes, o Campo de Marte) por sua aceitação da Constituição em setembro de 91 — ou de coisas incertas e difíceis de provar (ele deu dinheiro para pagar um decreto? negligenciou voluntariamente a organização do exército? disparou por primeiro em 10 de agosto?) — ou, então, enfim, de coisas que só podem motivar a acusação muito indiretamente. (Eles censuram-lhe, por exemplo, por ter dedicado só um dia da semana para receber as cartas da França, enquanto abria todos os dias, no mesmo instante em que as recebia, as cartas do estrangeiro.)

    A nós que, agora, conhecemos os fatos e caminhamos na claridade, resta-nos um ponto obscuro: como explicar que um homem nascido honesto, que acreditou permanecer honesto, e até o fim diz-se inocente, pudesse mentir acerca de tantos pontos, com toda consciência.

    E não me refiro nem sequer a esses atos passageiros que os políticos atribuem sem escrúpulo às circunstâncias, e que parecem fazer parte da comédia da realeza. Refiro-me a discursos habituais, conversações combinadas de maneira a fazer crer, até junho de 91, em seu zelo constitucional, quando redigia, ao mesmo tempo, a declaração de 20 de junho, na qual desmente, nega todas essas palavras, amaldiçoa o que louvou, confessando-se assim e proclamando-se duplo, falso, mentiroso, no ato o mais autêntico.

    A educação jesuítica que recebera e a licença para mentir que seus sacerdotes davam-lhe talvez não sejam suficientes para explicar isso muito bem. Em sua própria dependência, ele, no entanto, conhecia-os, nem sempre os estimava, e não lhes teria obedecido se não tivesse achado suas opiniões conformes ao que lhe permitia sua consciência real.

    A essência dessa consciência, conhecemo-la pelo testemunho da mais grave de todas as testemunhas, do sr. de Malesherbes, era a tradição real, vinda diretamente de Luís XIV, porém, bem mais antiga: o princípio da salvação pública ou da razão de Estado. No tempo de Filipe, o Belo, utilizava-se a primeira expressão. Entretanto, no século XVII, sob Richelieu, Mazarin, Luís XIV, a segunda expressão prevalecia. Luís XVI, desde sua juventude, estava fortemente imbuído da ideia segundo a qual a salvação pública é a lei suprema, que em seu nome tudo é permitido.

    Seu camareiro, sr. Hue, conta em suas Memórias que, en-cerrado durante o Terror, próximo ao sr. de Malesherbes, ia vê-lo à noite, e registrava religiosamente suas últimas palavras. O ilustre ancião falava-lhe incessantemente de Luís XVI, de suas boas intenções e de suas virtudes. Sobre um ponto, todavia, a reabilitação dos protestantes, confessava ter encon-trado junto ao rei grandes dificuldades. Uma lei que, não somente excluía os protestantes de todos os empregos, mas que nem mesmo lhes permitia viver e morrer legalmente, parecia-lhe uma lei dura, a bem da verdade: Mas, enfim, dizia ele, é uma lei do Estado, uma lei de Luís XIV; não mudemos os limites antigos. Desconfiemos dos conselhos de uma cega filantropia.Sire, respondia-lhe Malesherbes, o que Luís XIV julgava útil, pode ter-se tornado nocivo; por sinal, a política nunca prescreve contra a justiça.Onde está, portanto, replicou o rei, o ataque perpetrado contra a justiça? A lei suprema, não é ela a salvação do Estado?... Esta máxima tradicional tornou o rei inflexível. Malesherbes só obteve para os protestantes a supressão das leis penais feitas contra eles, e sua reabilitação foi menos obtida do que arrancada dez anos depois, sob Loménie, quer dizer, pela própria Revolução, que já batia à porta, ameaçadora e terrível.

    A doutrina da salvação pública, atestada contra os reis, havia sido todo o fundamento de sua própria política, o grande mistério de Estado, arcanum imperii, que era transmitido nas famílias reais. Os jesuítas ensinavam-no para os reis contra os próprios papas, se eles não obedecessem aos jesuítas. Luís XVI havia recebido essa doutrina por dois canais ao mesmo tempo: por seu governador, La Vauguyon, jesuíta de sotaina curta, e pela tradição de Luís XIV, pelo respeito hereditário da família pela augusta memória do Grande Rei e do grande reinado.

    Esse príncipe complacente (autêntico jesuíta político), de acordo com a prática do jesuitismo religioso, tinha permitido aos reis todas as coisas, inclusive o assassínio. Uma casa, honesta sob outros aspectos, a devota casa da Áustria, não se furtou ao assassinato de Waldstein, e a outros assassinatos menos célebres. Luís XIV, um homem honesto, concedeu à razão de Estado tanto quanto à sua devoção a proscrição de seiscentos mil franceses. Quem lotou todas as Bastilhas sob Luís XV, quem as manteve repletas por sessenta anos (e isso em uma época tão calma), quem, senão a razão de Estado?

    Quanto esse princípio tradicional, na crise dos maiores perigos, deve ter desculpado Luís XVI a seus próprios olhos dos falsos juramentos, da mentira habitual, do apelo ao estran-geiro?

    Todavia, tendo o mesmo princípio voltado-se contra seu senhor, retomaram impiedosamente os argumentos monárquicos para provar que a razão de Estado pedia a morte do monarca.

    A Revolução, tornada rainha, entrando nas Tulherias, lá encontrou esse velho móvel real, e, de início, fez dele uso, quebrando-o sobre a cabeça dos reis que dele se serviram.

    O rei, a bem da verdade, era menos culpado do que a realeza. Esta, fazendo dos soberanos uma classe de seres à parte, que só se aliavam entre si, constituía uma única família de todos os reis da Europa. Haviam-se tornado parentes, e acha-vam demasiado natu-ral ajudar-se como bons parentes, a favor ou contra seus povos. O rei da França, por exemplo, parente mais próximo do rei da Espa-nha do que de qualquer francês (incluindo os Orléans, os Condé), teria, sem escrúpulo, apelado para seus primos, os espanhóis, contra a França.

    À medida que a ideia das nacionalidades fortificava-se, precisava-se, tornava-se sagrada entre os homens, os reis, sendo um mesmo sangue e formando uma raça à parte, fora da hu-mani-dade, perdiam inteiramente de vista a noção de pátria. Iam, assim, contra a corrente da espécie humana; pode-se citar sem paixão a expressão apaixonada de Grégoire; sim, literalmente falando, sem acusação pessoal, qualificando os mais honestos bem como os mais desleais, os reis tornavam-se monstros.

    A originalidade do mundo moderno é que, conservando, aumentando a solidariedade dos povos, ele fortalece, entre-tanto, o caráter de cada povo, precisa sua nacionalidade. Até que cada um deles obtenha sua unidade completa, apareça como uma pessoa, uma alma, consagrada perante Deus.

    A ideia da pátria francesa, obscura no século XVII e como que perdida na generalidade católica, vai-se clarificando; eclode nas guerras contra os ingleses, transfigura-se na Donzela. Obscurece-se de novo nas guerras de religião no século XVI; há católicos, protestantes; ainda há franceses?... Sim, a névoa dissipa-se, há, haverá uma França; a nacionalidade fixa-se com uma força incomparável; a nação não é mais uma coleção de seres diversos, é um ser organizado; bem mais, uma pessoa moral. Eclode um mistério admirável: a grande alma da França.

    A pessoa é algo santo. À medida que uma nação assume o caráter de uma pessoa e torna-se uma alma, sua inviolabilidade aumenta em proporção. O crime de violar a personalidade nacional torna-se o maior dos crimes.

    Foi o que nunca compreenderam os príncipes, nem os grandes senhores, aliados, assim como os reis, às famílias estrangeiras; eles não conheceram nenhum estrangeiro. Sabemos com que leviandade os Nemours, os Bourbons, os Guise e os Condé, os Biron, os Montmorency, os Turenne, trouxeram o inimigo à França. As mais severas lições não podiam fazer com que compreendessem o direito. Luís XI trabalhou para isso, Richelieu trabalhou; e a história, dócil escrava dos senhores que a pagavam, maltratou a memória desses rudes preceptores da aristocracia... E, sem eles, no entanto, como teríeis compreendido o que todo o povo sentia, como vos teríeis tornado súditos e franceses, grandes cabeças-duras feudais?

    Já havia transcorrido duzentos anos desde que a Donzela declarara: Sangra-me o coração ao ver correr o sangue de um francês. E esse sentimento nacional desenvolvera-se tão pouco na aristocracia francesa que, quando Richelieu pôs à morte um Montmorency, aliado dos espanhóis, apanhado de armas em punho e vertendo sem escrúpulo o sangue da guerra civil, isso foi para toda a nobreza um motivo de escândalo e espanto.

    As nações também não têm sua inviolabilidade? A França também não é uma pessoa, e uma pessoa viva, uma vida consagrada a garantir pelas penalidades do direito? Ou, então, seria uma coisa em relação à qual tudo é permitido?

    Matar um homem é crime. Mas o que é matar uma nação? Como qualificar esse crime hediondo? Pois bem, há algo de mais forte do que a matar, é aviltá-la, entregá-la ao ultraje do estrangeiro, fazê-la ser violada e retirar-lhe a honra.

    Há para uma nação, assim como para uma mulher, algo que ela deve defender, ou, então, morrer.

    Não são os eruditos que devem ser aqui consultados, nem os livros de direito público. O livro, são nossas províncias devastadas pelo estrangeiro. Tal província nunca mais se restabeleceu. A Provença, em várias partes, é hoje esse deserto criado, há trezentos anos, pela traição de Bourbon. Nossos campos do leste também sabem muito bem, desde 1815, o que é o crime de trazer o estrangeiro. Se o egoísta das cidades pôde esquecê-lo, o camponês não esquece o dia em que, retornando a sua casa, encontrou seus animais mortos, seu celeiro queimado... Desgraça àqueles que nos fizeram ver tais coisas, àqueles que abriram a porta ao cossaco, que, na casa do francês desarmado, entre a mulher que chora e a garota que treme, instalaram o senhor bárbaro!

    Aqueles que, de perto ou de longe, provocaram esses acontecimentos, são para sempre responsáveis. Esse crime é o único para o qual não há prescrição.

    Vários realistas leais, aqueles que, em 1813, seguiram às cegas sua legítima impaciência de romper o jugo imperial, tornado insuportável, foram duramente punidos; em meio a seu triste sucesso, eles próprios não puderam perdoar-se de ter (ao menos indiretamente) aberto o caminho ao estrangeiro. Tive uma prova muito direta disso que devo apresentar aqui. Ela fez-me sentir que, se a irritação, a ilusão, o instinto mesmo da liberdade, conduziram os homens, às vezes, a violar a pátria, é também imenso o remorso, a inquietude que lhes resta dos julgamentos do porvir.

    No momento em que eu publicava o começo da História da França, vi dirigir-se a mim um homem venerável pela idade, de caráter respeitado, um dos melhores realistas, o ex-ministro, sr. Lainé. Veio para uma pesquisa que queria fazer nos Arquivos, no interesse de uma comuna que tinha a intenção de despojar não sei que personagem; uma espécie de processo infelizmente demasiado ordinário, durante e depois. Essa questão aproximou-nos, e, malgrado a dissidência de nossas opiniões gerais, o sr. Lainé falou-me de minha História iniciada, e encorajou-me. Retornais a 1815, disse-me ele; pois bem, nunca esqueçais que, se nós nos decidimos a fincar a bandeira branca em Bordeaux, foi porque muitos falavam de fazer ocupar a cidade pelos ingleses, e exibir a bandeira vermelha. O sr. Lainé, enfermo, próximo de seu fim, fraco de fôlego, alto, magro, um fantasma (ainda o vejo), falou, com respeito a esse triste assunto, com uma força, um

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