O Algoritmo do Gosto: Tecnologias de Controle, Contágio e Curadoria de SI; Volume 2
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O Algoritmo do Gosto - Rose Marie Santini
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO ARQUIVOLOGIA, DOCUMENTAÇÃO E CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO
Para meus dois grandes amores: Felipe e Luca.
Sumário
6
A CULTURA DO ALGORTIMO E O ALGORTIMO DA CULTURA 9
6.1 O significado social dos sistemas de classificação 11
6.2 Organização social, tecnologia e mediação 18
6.3 Social Tags como tecnologias de classificação 21
6.4 O problema da classificação da música popular 33
6.5 A classificação colaborativa e suas consequências sociais 51
6.6 Porque os sistemas de classificação comercial e não comercial variam 75
7
CONTÁGIO, CONTROLE E CONSUMO CULTURAL 91
7.1 A origem filosófica do conceito moderno de estética e gosto 93
7.2 Os limites da teoria da legitimidade cultural na Era digital 97
7.3 O consumo cultural nas redes sociais: segmentação ou ecletismo? 110
7.4 Micro-segmentação: a produção de estatísticas infinitesimais sobre os usuários 119
8
A CURADORIA ALGORÍTMICA DE SI: A NOVA LÓGICA SOCIAL DE PRODUÇÃO DO GOSTO 149
8.1 Da pirâmide cultural ao rizoma 153
8.2 Raridade, popularidade e ecletismo: diferenciação, imitação e adaptação como curadoria de si 161
8.3 Heterogeneidade e incoerência como práxis 174
9
OS ALGORTIMOS E A DESORGANIZAÇÃO DA CULTURA 215
REFERÊNCIAS 229
Índice remissivo 245
6
A CULTURA DO ALGORTIMO E O ALGORTIMO DA CULTURA
Neste capítulo, enfrentamos a hipótese principal desta obra: verificar se é possível estabelecer uma relação entre a construção colaborativa de um sistema de classificação de produtos culturais (no caso, da música) com padrões de organização social que fazem emergir novos usos sociais da cultura – diferente daqueles anunciados e orientados pelas Indústrias Culturais até então.
O problema conceitual que permeia essa hipótese é a existência de um duplo movimento. Por um lado, a construção, a estabilização e a orientação dos usos sociais da música por meio da sua classificação. Por outro e ao mesmo tempo, os rituais de classificação colaborativa como reveladores de novos usos e valores que a música adquire de forma dinâmica e mutável no campo social.
No caso da Last.fm, a classificação e organização da informação é produzida e reproduzida de forma ativa pelos usuários mediante a construção de uma folksonomia. E as categorias nas quais as obras são organizadas lhes conferem visibilidade diante dos próprios usuários. Portanto a classificação atua como um processo de mediação entre a oferta e demanda musical em torno do sistema. Do mesmo modo, o sistema de classificação criado pela Indústria Musical sempre funcionou como uma estratégia de mediação que orienta o consumo dos produtos culturais de acordo com as possibilidades de produção e distribuição comerciais.
Portanto, neste capítulo, objetivamos comparar os critérios de classificação da Indústria, que operam no nível comercial, com os princípios de categorização coletivos baseados nos usos sociais. A partir do estudo de caso da classificação da música pelos ouvintes da Last.fm, queremos identificar o lugar que efetivamente podem ocupar os usos e usuários diante da dialética entre os processos de classificação e os usos da música na Internet.
A investigação sobre as consequências sociais dos processos de classificação colaborativa é realizada em quatro partes. Este capítulo começa com uma revisão de literatura que posiciona e justifica a importância do estudo dos sistemas de classificação, especialmente no âmbito da cultura, para o entendimento das forças em jogo na esfera dos usos sociais.
Para desenvolver esse argumento, que é retomado no final do capítulo, partimos da ideia de autores como Durkheim¹, Weber², Schwartz³, DiMaggio⁴ entre outros, que defendem a existência de uma relação estreita entre as formas de organização social e os sistemas de classificação vigentes.
Em seguida, passamos à discussão sobre os fenômenos da folksonomia, social tags e classificação de conteúdos na Internet, a fim de definir as fronteiras epistemológicas e metodológicas dos conceitos implicados nos novos fenômenos de produção colaborativa na Rede, conhecidos como web 2.0.
Na terceira parte, revisamos os problemas de controle de vocabulário no domínio da música popular e seus novos paradigmas no entorno digital. Devido aos desafios implicados na organização da informação no domínio da música popular, a classificação dominante foi operada até então pela Indústria Musical, que categoriza os produtos culturais de acordo com suas lógicas comerciais.
Com o surgimento do fenômeno da folksonomia no entorno colaborativo da Internet, começam a operar condições no nível da organização social que criam possibilidades de escapar das classificações da música produzida e reproduzida tradicionalmente pelas Indústrias Culturais.
Na quarta parte, apresentamos os resultados da observação empírica por meio do estudo de caso do SR da Last.fm. A organização coletiva do conteúdo disponível na Last.fm determina os critérios de recomendações musicais gerados pelo sistema e orienta o comportamento dos usuários. Portanto a análise de suas "social tags" permite identificar a correlação existente entre, por um lado, as novas lógicas de classificação e (re)organização social da cultura, e por outro, os usos sociais que emergem nas redes sociais online.
Seguimos a análise empírica no tópico seguinte com a comparação entre as categorias de classificação colaborativa criada pelos usuários da Last.fm com aquelas utilizadas pela Indústria Musical em seus catálogos comerciais. Pretende-se, com isso, verificar as diferenças existentes entre o vocabulário utilizado pelos usuários e os princípios comerciais de classificação encontrados nos catálogos das gravadoras e dos editores musicais. O objetivo é identificar o significado tanto da produção, da reprodução como das variações entre as categorias nos dois domínios.
A classificação da música na Last.fm define a visibilidade das obras e os critérios de recomendação para cada usuário do sistema, de acordo com seu perfil musical. Também para a Indústria da Música, a classificação por meio dos gêneros pretende promover o encontro entre os produtos e seus públicos, identificando perfis de consumo, nichos, audiências, mercados, contextos comerciais para divulgação e venda de música. Em ambos os casos, os padrões de classificação da oferta musical organizam e orientam a articulação entre a produção artística, a conformação da demanda e a criação de novos usos sociais para os produtos culturais.
Por último, retomamos a proposta inicial do capítulo: conjeturar como as mudanças nos sistemas de classificação da cultura correspondem a transformações no nível da organização social. A partir dos resultados encontrados na investigação empírica, discutimos como a classificação da música popular – tanto aquela utilizada pela Indústria Musical como as novas categorias criadas pelos usuários na Internet – engendra importantes implicações nas práticas culturais que aparecem e desaparecem no campo social. Destacamos a importância específica dos sistemas de classificação da música como ponto de partida para o entendimento da nova organização social da cultura que emerge na Rede.
6.1 O significado social dos sistemas de classificação
Entre os mais destacados pensadores sobre o mundo social no século XX, como Weber, Durkheim, Foucault, Deleuze e Guattari, Gramsci, Williams, Bourdieu, entre outros, encontramos uma posição em comum: o argumento, a propósito do sentido do mundo social, que é o poder dos esquemas classificatórios que se encontram na origem da produção e reprodução das lógicas sociais dominantes no sistema capitalista vigente.
Para Deleuze e Guattari⁵, é a partir da semiotização da cultura
– codificação dos comportamentos, gostos, prazeres e valores – que as dinâmicas socioculturais se subordinam às suas representações sociais. A partir dos processos de codificação e construção de axiomáticas, o sistema capitalista organiza o campo dos investimentos sociais, liquidando o campo social do desejo e das micromultiplicidades.
Segundo Bourdieu⁶, é na luta e por exigência da luta das classificações que funcionam os princípios de divisão social que, ao produzirem conceitos, produzem grupos – e, também, os próprios grupos que os produzem e os grupos contra os quais eles são produzidos.
Foucault em As palavras e as coisas
⁷ e ao desenvolver o conceito de biopolítica
⁸, coloca para as ciências sociais a questão de saber como as categorias de classificação, que surgem ou desaparecem em determinado momento histórico, podem aumentar ou diminuir as possibilidades de ação humana. Ou seja, como as classificações afetam as pessoas; como os indivíduos mudam seus comportamentos em virtude de serem classificados ou de classificar, e como os comportamentos modificados afetam os próprios sistemas de classificação em questão.
Porém cabe perguntar sobre a importância específica dos sistemas de classificação da arte (no caso da música) para o entendimento da organização social vigente e suas dinâmicas. No âmbito da sociologia clássica, Durkheim⁹ considera que os sistemas simbólicos são externalizações das maneiras pelas quais as comunidades são organizadas em grupos. Marx Weber¹⁰ argumenta que a arte é um espelho cosmológico da sociedade, e que as mudanças no campo cultural – especialmente da música – refletem transformações nas formas de organização social.
Pensadores da cultura oriundos da escola marxista contrastam os sistemas hegemônicos culturais – em que uma cultura dominante exerce um controle simbólico nas classes subordinadas, realidade que reflete uma ordem social estabelecida – a um modelo oposto, em que o pluralismo cultural exerce uma função emancipatória. Porém esse pluralismo só é possível, segundo autores como Gramsci¹¹, Williams¹² e Garnham¹³, a partir de uma reorganização do campo social e cultural.
Ainda no âmbito marxista, teóricos da sociedade de massa como Adorno e Horkheimer¹⁴, Kornhauser¹⁵, MacDonald¹⁶, classificam a cultura entre a) cultura popular, criada e consumida por membros de uma comunidade solidária; b) cultura erudita ou de classe, em que a produção e o consumo são estratificados e c) cultura de massa, em que o gosto é homogeneizado pela centralização da produção artística nas mãos de poucas corporações¹⁷.
Esse modelo de classificação da cultura foi amplamente utilizado e discutido no âmbito das ciências sociais, porém a unidade de classificação da cultura utilizada para enquadrar a arte nessas três grandes categorias – os gêneros artísticos – permaneceu fora do debate.
O grande mérito dos teóricos da cultura de massa foi chamar a atenção para a relação entre os padrões de consumo cultural e a estrutura das relações sociais, inspirados na noção marxista de alienação, de uma sociedade divida em classes e no desprezo elitista pela cultura classificada como popular.
Entretanto, em meados dos anos 1970, a posição ideológica da escola marxista sobre a teoria de massa começa a ser refutada, tanto no nível empírico como teórico. Sociólogos da cultura como Lowenthal¹⁸, Gans¹⁹ e DiMaggio²⁰ demonstram que os padrões de consumo cultural baseados nas categorias de gêneros/classe não podem ser considerados a partir de teorias preditivas. E que há mais diversidade entre os gêneros artísticos no nível da produção e da oferta (e consequentemente do consumo) do que as teorias podem conceber²¹.
A crítica da teoria da cultura de massa abriu o caminho para muitos progressos no estudo da produção e consumo artísticos, especialmente de música, porém na maioria dos casos foram realizados separadamente. Por um lado, estudos no nível do consumo consideram que as categorias dos gêneros musicais utilizadas nas pesquisas refletem uma divisão natural
, como se as classificações das formas e das atividades culturais fossem baseadas em um senso comum
estabelecido.
Por contraste, pesquisas no nível da produção cultural assumem uma perspectiva em que os indivíduos são forçados a escolher entre os gêneros que os produtores oferecem. Nem os estudos sobre a produção nem os estudos sobre o consumo avançaram em uma teoria sistemática sobre o desenvolvimento e diferenciação dos gêneros e sua relação com os usos sociais²².
Muitas experiências acadêmicas de integração dos dois conceitos – de produção e consumo – fracassaram nas respostas a essas questões. Alguns pesquisadores, na tentativa de cruzar os conceitos de produção e consumo de bens culturais, passaram a desenvolver descrições históricas e etnográficas. Essa perspectiva acabou reforçando o discurso das Indústrias Culturais, isto é, a noção de que os bens culturais comercializados refletem passivamente as mudanças sociais e o gosto do público.
Em oposição a essas duas visões, DiMaggio²³ defende que o estudo dos sistemas de classificação da cultura pode tornar compreensível a lógica existente entre o sistema de produção e de consumo dos produtos artísticos. Partimos dessa premissa de DiMaggio para levantar a hipótese de que fortes fronteiras entre as categorias de classificação da música são caracterizadas pela estratificação dos gostos em grupos sociais bem delimitados e por barreiras que dificultam tanto os usuários como os artistas de circularem livremente entre os gêneros. Da mesma forma, a existência de fronteiras mais flexíveis nos sistemas de classificação corresponde a misturas e ecletismos tanto no nível da produção, como da formação dos gostos e dos usos sociais da música.
Para testar essa hipótese – e na tentativa de evitar os riscos que implicam a observação dos padrões de produção, distribuição e consumo separadamente –, optamos por iniciar o estudo dos usos sociais da música com a análise dos sistemas de organização e classificação dos gêneros musicais. A justificativa para a escolha desta abordagem se divide em três argumentos principais, inspirados em DiMaggio²⁴.
Primeiramente, ao investigar os padrões de consumo isoladamente, não conseguimos explicar por que os usuários fazem determinadas escolhas dentro de um amplo repertório e uma ampla variedade da oferta musical. Exceto para os cientistas sociais que utilizam teorias econômicas para compreender lógicas sociais, não cabe considerar as categorias artísticas como dadas, ou tratar o gosto como algo exógeno aos indivíduos.
Segundo, ao estudar os sistemas de produção sem articular conjuntamente uma teoria sobre a demanda corre-se o risco de sugerir que a produção e a distribuição dos bens culturais podem ser compreendidas simplesmente como uma imposição aos consumidores. E os produtos que escapam dessa lógica – por exemplo, os fracassos da Indústria – permanecem sem explicação.
Por último, o foco na dinâmica da classificação da música pode ajudar a entender questões como a criação de novos usos sociais, o grau em que os produtos artísticos refletem
seu ambiente social e a relação entre os usos, a emergência de gêneros ou de novas categorias de classificação musical, na medida em que a classificação é um processo de mediação entre produtores, distribuidores e usuários que dota os bens artísticos de sentido social.
Essa perspectiva de pesquisa sugere um novo olhar para o clássico problema no âmbito das ciências sociais de considerar os sistemas culturais como totalidades. A abordagem assumida nesta obra é coerente com o foco de Douglas²⁵, Schwartz²⁶ e DiMaggio²⁷ sobre a relação entre organização social e sistemas de classificação da cultura.
Diferentemente de autores da escola marxista e teóricos da cultura de massa que consideram os sistemas culturais como classificáveis em categorias estáticas de classe e seus gêneros correspondentes, partimos do ponto de vista de que os sistemas de classificação variam sob várias dimensões analiticamente distintas, relacionadas com os padrões de organização social que trataremos ao longo deste capítulo.
A ambígua noção de gênero musical é central para a discussão. Literalmente, um gênero é uma forma
ou um tipo
de arte musical. A noção de gênero presume alguns princípios agregados que permitem que os observadores classifiquem os produtos culturais em categorias. Formalistas tratam o gênero como aglutinador de obras que compartilham determinadas formas ou conteúdos convencionados como tal²⁸.
Historiadores da arte definem os gêneros em termos de convenções compartilhadas, mas destacam também a importância das relações sociais entre os produtores na identificação de escolas
ou movimentos artísticos
para a constituição dos gêneros, conforme argumenta Rosenberg²⁹.
Sociólogos da cultura e estudiosos da arte popular – como Fish³⁰, Tompkins³¹ e Rosmarin³² – consideram igualmente a existência das similaridades formais, entretanto admitem que os gêneros são parcialmente constituídos pelas audiências que os sustentam. Para Williams³³, os esforços dos teóricos humanistas para definir o gênero em termos de formas ou similaridades de conteúdo representam uma tentativa de impor uma ordem normativa aos sistemas de classificação. Porém os sistemas de classificação em gêneros correspondem a uma combinação prática e variável de processos socialmente construídos.
O problema da definição dos gêneros é um tema fundamental nos complexos conflitos modernos entre os diferentes tipos de teoria e os diferentes tipos de empirismo. Ou seja, é a oposição existente entre uma teoria dos gêneros fixos (a definição de regras
para cada gênero
) – como era a forma neoclássica das mais complexas classificações do pensamento grego e do renascimento – e de um empirismo oposto, que demonstra a impossibilidade ou a ineficácia de reduzir todas as obras reais e possíveis a esses gêneros³⁴.
Usamos a palavra gênero musical nessa pesquisa para referir-nos a um conjunto de obras musicais classificadas conjuntamente com base nas similaridades percebidas: tanto pelos usuários como pelo mercado da música. O conceito de gênero musical permite a comparação e identificação das diferenças entre os princípios de classificação dos ouvintes com os da Indústria Musical, que refletem respectivamente tanto a estrutura dos gostos dos usuários como a estrutura da produção e distribuição de bens culturais.
O desafio para as ciências sociais é entender os processos nos quais as similaridades são percebidas e como os gêneros são decretados. Sugerimos que os gêneros representam princípios construídos de organização social que impregnam as obras de significância a partir de seu conteúdo temático, mas também por suas utilidades e usos contextuais. Em contrapartida, os gêneros também respondem à geração de uma demanda estruturada por informação cultural e afiliação a grupos sociais, segundo DiMaggio³⁵.
Ou seja, os processos pelos quais as distinções entre os gêneros são criadas, ritualizadas e erodidas, e os processos nos quais os gostos são produzidos, fazem parte da construção coletiva dos sentidos das obras e da delimitação de fronteiras entre os grupos sociais. Em um movimento circular, os gêneros musicais referem-se a uma lógica que se estabelece socialmente entre produtos classificados e classificantes
.
Essa perspectiva é especialmente importante quando consideramos o objeto de estudo e o contexto de análise: o Sistema de Recomendação Last.fm e os processos de classificação colaborativa realizados pelos usuários. Conectado por meio da Internet, esse coletivo de ouvintes constitui uma rede social com um alto nível de interação entre os membros, em que a participação, a classificação e os usos dos conteúdos são organizados de forma descentralizada e não hierarquizada.
A partir desse novo contexto de colaboração em rede entre uma comunidade global e heterogênea de usuários queremos identificar as consequências da criação coletiva de um sistema de classificação da música na conformação de novos usos, gostos e padrões de consumo cultural.
Se os sistemas de classificação da arte refletem mudanças na organização social e vice-versa, o ambiente descentralizado e compartilhado da Internet como fator sócio estrutural e organizacional pode revelar um deslocamento na demanda por informação cultural, afetar a forma como essa demanda é organizada, como as preferências são constituídas e refletir nos padrões de classificação das obras.
6.2 Organização social, tecnologia e mediação
Uma série de mudanças na tecnologia, na economia e nas práticas sociais caracteriza a emergência de novas formas de organização social na chamada sociedade da informação. Os padrões de organização social emergentes nas economias mais avançadas caracterizam-se pela produção, mediação, distribuição e uso da informação em um ambiente de redes colaborativas, principalmente por meio da Internet. Nesse entorno digital, novas oportunidades surgem e modificam as formas de uso da informação, do conhecimento e da cultura.
Nas economias mais avançadas assistimos a deslocamentos paralelos que paradoxalmente tornam possíveis a atenuação das limitações que o mercado industrial impõe à participação social na produção, mediação e organização da cultura. Um desses movimentos segue em direção a um ambiente comunicacional construído por processos tecnológicos barateados, com alta capacidade computacional, interconectados em uma rede distribuída – fenômeno que Benkler³⁶ associa com a Internet.
O fator catalizador dessa mudança é a transformação dos modelos de fabricação de aparatos computacionais e o efeito da disseminação social das tecnologias de comunicação e armazenamento de informação. O declínio dos preços das tecnologias de informação, comunicação e armazenamento de dados adquire um novo significado material para a produção, mediação, distribuição e uso da informação e da cultura, especialmente porque essas tecnologias estão nas mãos de uma fração significativa da população global – na ordem de bilhões de pessoas ao redor do mundo³⁷.
Esse deslocamento permite o crescimento do papel da produção e mediação não comercial nos setores de produção da informação e cultura, organizados em um padrão radicalmente mais descentralizado do que aquele encontrado nos mesmos setores baseados no modelo industrial do século XX. Esse fenômeno promete reforçar a relevância social da produção e compartilhamento coletivo de informação paralelamente à existência da propriedade, da produção e mediação baseada no mercado, segundo Benkler³⁸.
Essas transformações ocorrem a partir dos esforços individuais e coletivos em uma ampla variedade de tipos de colaboração, desde as mais sutis às mais firmemente tecidas. A emergência dessas práticas sociais apresenta sucessos notáveis em diversas áreas, destacando-se entre outras o desenvolvimento de softwares livres, a criação das folksonomias
e filtragens colaborativas de informação.
Juntas, essas práticas baseadas em uma organização social em rede
sugerem que a emergência das ações individuais descentralizadas passa a ter um papel muito maior do que tinham e poderiam ter na economia industrial da informação
. Isso ocorre especificamente mediante a cooperação e ação social coordenada, movidas por meio de mecanismos distribuídos. Mesmo quando inseridos dentro de entornos comerciais, a colaboração dos usuários-voluntários possui motivações não mercadológicas que independem das estratégias proprietárias.
Esse novo modelo de colaboração em rede – que pode ocorrer dentro de umbrais comerciais ou não – é baseado em novos dispositivos técnicos, os Sistemas de Recomendação. Tais dispositivos, por possibilitarem a elaboração de recomendações de informação para diferentes perfis de usuários, também têm se mostrado valiosos para a formação de redes digitais de voluntários na classificação dos bens culturais. Indicações desse tipo são capazes de aproximar pessoas com interesses semelhantes e distribuir oportunidades de atuação voluntária de forma direcionada, fomentando assim a conformação do voluntariado
³⁹.
Com a função de prever, os SR exercem um grau de vigilância eletrônica
quando coleta, registra e cruza informações sobre a participação e os usos, a fim de traçar perfis que antecipem ações e possam gerar estratégias, de acordo com o fim que se quer atingir. Misturados com o próprio ciberespaço, o que interessa aos detentores dos dispositivos de vigilância eletrônicos é prever potenciais atitudes ou incitá-las, como no caso do consumo, da publicidade e do marketing cuja função social é organizar e orientar a demanda de acordo com as possibilidades da oferta.
Por outro lado, o objetivo comum envolvido na ação colaborativa do voluntariado
em torno dos sistemas de recomendação é aumentar a relevância e a credibilidade nos processos de busca de informação para cada usuário. Para tal, segundo o próprio site da Last.fm⁴⁰, a filtragem e a classificação colaborativa da informação oferecem a possibilidade escapar dos princípios comerciais para alcançar uma organização da informação e da cultura baseada nos usos, interesses, valores e desejos dos usuários.
Portanto o que caracteriza essa nova forma de organização social em rede
são os esforços efetivos de colaboração em larga escala – processo radicalmente novo, porém difícil para os observadores de acreditar. O surgimento e popularização dos Sistemas de Recomendação demonstram a expansão desse modelo não somente no centro das plataformas dos softwares livres, mas entre todos os domínios da produção e mediação da informação e da cultura.
Esses esforços de colaboração são encontrados no SR da Last.fm tanto por meio de sua API aberta – em que os usuários podem inovar e construir novas ferramentas e aplicativos para o sistema – como da filtragem colaborativa dos conteúdos e produção de uma folksonomia para a classificação do catálogo de música disponível.
Inseridos no processo de produção e mediação colaborativa da informação, milhares de voluntários se juntam na Last.fm para criar e compartilhar