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Jornalismo e Documentário Diálogos Possíveis
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E-book346 páginas12 horas

Jornalismo e Documentário Diálogos Possíveis

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Sobre este e-book

Os caminhos, as mudanças, as adequações, a conjuntura, o futuro do trabalho dos jornalistas. Todas essas são questões que a série Jornalismo em Pauta busca agendar, com a publicação regular de coletâneas voltadas à promoção de diálogos a respeito de um fenômeno em constante metamorfose.

Sua criação deu-se a partir de um projeto conjunto elaborado pela Editora Appris com um grupo de professores do curso de graduação em Jornalismo da ESPM. Embora suscitada mediante essa parceria, seus interesses incorporam a abertura à participação de autores provenientes de outras instituições – especialmente daquelas nas quais se produz conhecimento em nível avançado –, que podem submeter propostas de novos livros aos editores. Os originais recebidos são avaliados pelo comitê científico da coleção Ciências da Comunicação – à qual a série Jornalismo em Pauta está incorporada –, constituído por representantes de diversas partes do País e do exterior, responsáveis por atestar a qualidade do material.

Os volumes, dedicados a temas extraídos do universo jornalístico, são idealizados e estruturados com a finalidade de subsidiar o ensino e a pesquisa na área, podendo ser adotados em diferentes níveis de formação. Objetivam, também, sinalizar problemáticas correntes, que necessitam ser diagnosticadas e pensadas coletivamente.

Pautar o jornalismo é colocar em debate uma atividade profissional que atinge toda a sociedade. E é por isso que o intercâmbio de ideias a seu respeito constitui o modo mais adequado para o avanço e o aprimoramento desse cenário.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de mar. de 2020
ISBN9788547320263
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    Jornalismo e Documentário Diálogos Possíveis - Adriana Schryver Kurtz

    PARTE I

    ESBOÇOS DE DIÁLOGOS

    CAPÍTULO 1

    O elefante na sala: duas ou três coisas sobre documentário e jornalismo

    Julio Bezerra

    A diferença entre documentário e jornalismo

    É uma questão de tempo. A coisa vai se formando, ganhando corpo, argumentos e interessados e, invariavelmente, transforma-se em debates calorosos como poucos. Não há professor – de cinema, jornalismo ou comunicação, não importa – que não tenha passado por essa situação. Não há curso de documentário imune ao desconcerto que essa indagação nos impõe, seja um curso livre ou em uma disciplina de graduação, de especialização, de mestrado ou doutorado. Não há jornalista que jamais tenha se deixado levar pelas portas que essa interrogação abre. Sei bem disso. Não faz muito tempo, estava do lado de lá da sala, em turmas formadas, em sua maioria, de pessoas como eu, jornalistas de formação.

    Afinal, qual a diferença entre documentário e jornalismo? O que eles têm em comum? É possível identificar pontos de contato entre esses campos ao longo de suas respectivas tradições? Jornalistas e documentaristas alimentam compromissos similares? E quanto à recepção desses discursos? Uma reportagem pode ser pensada como um filme documentário? Como documentário e jornalismo acessam e significam a realidade? Como contribuem para o que chamamos de realidade? De que realidade estamos falando?

    Não são perguntas fáceis. Muito pelo contrário. E nos chegam envoltas em uma série de simplificações, ancoradas em termos (realidade, representação, discurso, significação, ética etc.) cuja complexidade é aplainada pelo uso frequente, e em pressuposições mais veladas que assumidas quanto ao que seja o documentário e o jornalismo.

    Ora, nascidos em um contexto industrial e sob a direta interferência da máquina em sua produção, ambos os gêneros constituem boa parte do reino dos discursos sobre o real. Documentário e jornalismo representam e produzem a realidade. Ambos são campos permeáveis e variáveis, modos de ver o mundo e construídos historicamente – por rotinas produtivas, transformações sociais, relações comerciais e interesses políticos, por escolhas estéticas, metodologias e técnicas. Apresentam inúmeros pontos de contato nos processos históricos de significação, de mediação e de legitimação de suas narrativas. Explorar os pontos de aproximação e distanciamento entre esses campos implica falar de muitas coisas: do papel das notícias e do cinema na vida das pessoas; da oposição estrutural de ambos os universos ao mundo ficcional; das realidades – sempre no plural – visadas por práticas, modelos, protótipos e movimentos os mais diversos, que marcaram a história tanto de um quanto do outro; da busca de unidade que perpassa a formação histórica de ambos os domínios; da constituição de certo lugar de fala que os envolve em uma esfera de autoridade para explicar o mundo histórico; do estabelecimento de um pacto narrativo que orienta a recepção de documentários e reportagens na qualidade de índices da realidade.

    Falar de documentário e jornalismo significa adentrar um universo saturado de representações do real. A televisão, o cinema, a publicidade, o vídeo, a mídia, em geral, não param de fabricar e nos impor imagens, designando-as como reais. As definições mais consensuais do cinema documentário e do jornalismo costumam reforçar seus vínculos com um mundo real. Cineastas e repórteres agarram-se com mais ou menos força à apuração rigorosa, à observação atenta, à abordagem ética, à necessidade de ultrapassar os limites do acontecimento cotidiano e proporcionar uma visão ampla da realidade. Reportagens e documentários seriam a realidade traduzida ou configurada pelo recorte visual, pelo privilégio da informação e/ou da transmissão/reflexão unidos em uma dimensão ética e, nos melhores exemplos, por uma busca estética para expressá-la. Com mais ou menos paixão, os muitos movimentos que pontuaram as respectivas tradições renovaram o desejo por uma aproximação cada vez mais fiel, ou honesta, ou contestadora, ou imaginativa, da realidade.

    Dispersos e múltiplos, esses campos são o resultado de uma reunião de formulações discursivas e históricas que imputam às obras o valor de documentário e de jornalismo e as levam a um caminho de oposição ao domínio ficcional. A oposição que distingue as obras ficcionais dos documentários e das reportagens está, em geral, baseada – no caso do documentário – no pressuposto de que a imagem documental seria revestida de uma autenticidade que a habilita a significar a realidade e – no caso do jornalismo – na imagem fotográfica e em uma série de convenções institucionalizadas ao longo da história da atividade que concede ao texto esse mesmo valor.

    Fazer dessa suposta maior proximidade em relação à realidade um critério de distinção diante do mundo ficcional trouxe diversos e famosos dilemas aos dois campos. As oposições documentário/ficção e literatura/jornalismo são divisões que, de certa maneira, estruturaram essas tradições desde suas origens e se ordenam em torno de certas questões: o estatuto da realidade (o que é real? o que é ficção?); os problemas da objetividade (é possível reproduzir fielmente a realidade?); a relação com a verdade (seria esse o compromisso maior de documentários e reportagens? Qual verdade?); a ética e os limites de manipulação e de interferência (com que direito documentário e jornalismo mudam a vida das pessoas? A partir de que ponto a alteração da realidade cruza a fronteira com a ficção?). Não são perguntas modestas, diz João Moreira Salles (2005, p. 59): A filosofia as discute há pelo menos 25 séculos. Quanto a nós, documentaristas, só estamos aqui há oitenta anos. Nossas respostas ainda são medíocres, e muitas vezes nem isso.

    As novidades e as aventuras, as notícias e os filmes

    Toda a produção do documentário e do jornalismo pode muito bem ser pensada como elaboração continuada da ânsia de responder a perguntas tão cabulosas. Falar desses campos é tratar daquilo que Bill Kovach e Tom Rosenstiel (2004, p. 35) chamam de instinto de percepção. O jornalismo preencheria, segundo os autores, algo como um instinto humano básico: precisamos de informação. Precisamos saber o que acontece do outro lado do País e do mundo. Precisamos estar minimamente a par dos fatos para além de nossas experiências individuais. Kovach e Rosenstiel encontram um aliado no historiador Mitchell Stephens (1988, p. 34, tradução nossa), que, ao investigar como as notícias funcionam na vida das pessoas ao longo dos séculos, esbarrou em uma curiosa consistência: Os padrões básicos do valor da informação parecem ter variado muito pouco através da história. Da Grécia Antiga e sua curiosa forma de jornalismo oral, em que tudo que fosse de interesse público teria de ser ao ar livre para o acesso de todos, aos relatos diários dos romanos, que registravam o dia a dia do Senado e da vida social e política das cidades e expunham essas informações em papiro, em locais públicos, Stephens nos leva às origens do jornalismo moderno, que ganhou corpo na forma de música e relatos, nas baladas cantadas pelos jograis ambulantes. A notícia, como a entendemos hoje, emerge literalmente das conversas em pubs – ou casas públicas, como eram chamados nos Estados Unidos. No século XVII, os donos dos bares, chamados publicans, estimulavam os viajantes que passassem por lá a contar novidades e aventuras que haviam vivido. Grande parte desse material era transcrito e disposto em bares e cafés ingleses. É o que James W. Carey (apud MUNSON; WARREN, 1997, p. 235, tradução nossa) tão bem resume: Talvez no final das contas o jornalismo simplesmente signifique ampliar e levar adiante as conversas das pessoas.

    Robert Flaherty teria sido um desses viajantes que alimentavam o instinto de percepção dos ingleses de séculos atrás. Filho de um explorador de minas no norte do Canadá, ele assumiu a mesma profissão do pai e trabalhou ainda como cartógrafo, geólogo e guia especializado a serviço de Sir William Mackenzie, o construtor do caminho de ferro transcontinental Canadian Northern Railway. Em suas primeiras viagens, por volta de 1910, faria contato com os esquimós inuítes, ao norte da Baía de Hudson. Em 1916,¹ quando decidiu filmá-los pela primeira vez, Flaherty já tinha pelo menos quatro anos de convívio com os seus personagens. Nanook, o esquimó (Nanook of the North, 1922), o primeiro documentário da história, é a história de um homem que foi para longe. Essa distância era importante para Flaherty, que jamais soube filmar o mundo mais próximo e que fez do documentário o lugar de gente excêntrica, exótica, extraordinária, diferente. Para a grande tradição do documentário, o documentarista é justamente aquele que sai do seu próprio mundo atrás de notícias.

    Esse retorno às origens de ambos os campos nos traz insights curiosos. Talvez a definição do jornalismo com a qual convivemos hoje tenha sido excessivamente marcada pela sua popularização por meio da tecnologia. Quer dizer: quando nos voltamos para trás, observamos que a finalidade do jornalismo jamais foi definida pela tecnologia, pelos jornalistas ou pelas técnicas utilizadas no cotidiano. Os princípios e a finalidade do jornalismo são definidos por alguma coisa mais elementar – a função exercida pelas notícias na vida das pessoas (KOVACH; ROSENSTIEL, 2004, p. 30). Não importa o quanto o jornalismo mudou. Sua finalidade, embora nem sempre bem servida, segue intacta desde que a noção de imprensa surgiu, há mais de 300 anos.

    Finalidade, contudo já não é um termo assim tão unívoco quando aplicado ao documentário. Nanook, certamente o marco zero desse gênero cinematográfico, e os princípios e as estratégias de Flaherty criariam raízes. Mas os diversos movimentos, modelos e cineastas que fizeram a história do gênero alimentaram finalidades e compromissos muito diversos. O documentário, ao contrário do jornalismo, jamais contou com a força de uma indústria, capaz de estabilizar certas metodologias e impor convenções estilísticas e narrativas mais homogêneas – que dirão missões, finalidades ou objetivos. A vítima e a denúncia talvez possam ser consideradas como o personagem e a intenção mais comuns aos documentários, mas de maneira nenhuma impediram o polimorfismo desconcertante que marca a sua história.

    A absoluta variedade do documentário é, sem dúvida, um de seus traços definidores. A natureza da não ficção e do filme de não ficção provou ser absolutamente desorientadora para gerações de cineastas e acadêmicos, nos diz Carl Plantinga (1997, p. 2, tradução nossa). Essa tensão não é tão presente para os jornalistas, por mais variadas que sejam as notícias – dos jornais diários aos correspondentes de guerra, das biografias ao jornalismo comunitário, do novo jornalismo ao jornalismo gonzo.² Os documentaristas contudo, bem como os pesquisadores da área, convivem constantemente com a indagação a respeito de um possível denominador comum aos documentários. Sendo assim, diante dessa desconcertante variedade, poderíamos falar de algo que perpassa Nanook, Eduardo Coutinho, Jean Rouch, Dziga Vertov e o cinema direto americano? Sim e não, responde Salles (2005, p. 58):

    Sim, porque dizem respeito a fatos que ocorreram no mundo. Diante desses filmes, realizador e espectador estabelecem um contrato pelo qual concordam que tais pessoas existiram, que disseram tais e tais coisas, que fizeram isso e aquilo. São declarações sobre o mundo histórico, e não sobre o mundo da imaginação. Para que o documentário exista é fundamental que o espectador não perca a fé nesse contrato.

    Ora, a norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o leitor precisa aceitar tacitamente um acordo, um pacto ficcional, que o poeta e teórico inglês Samuel Taylor Coleridge (1982) chamou de suspensão da descrença. O leitor tem de saber que está sendo narrada uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está contando mentiras. O autor finge dizer a verdade. E nós aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu. Não é muito diferente o que se passa com documentários e reportagens, embora os termos usados e as consequências obtidas sejam diversas. Tendemos a achar que o documentário e o jornalismo descrevem não um mundo que temos de aceitar tal como ele nos é sugerido pelo autor (como na ficção), mas o mundo que temos diante dos olhos. Quando esse contrato é quebrado, não se trata apenas da conscientização indesejada de uma quarta e ilusória parede,³ mas do esvaziamento de autoridade e sentido do discurso documental.

    Consideremos o caso Nanook. O espectador não faz ideia de que muitas das imagens desse filme foram encenadas para a câmera de Flaherty. Ele não sabe que a mulher que vemos ao lado do protagonista não é a sua esposa de verdade,⁴ nem que os esquimós já não caçavam mais morsas com arpões. Se soubesse desses pecados originais do documentário, o espectador talvez tivesse desistido do filme. Da mesma forma, o leitor de uma reportagem desconfia sempre que uma passagem específica de uma notícia lhe parece fabulada, e isso o leva a repensar a autenticidade do relato de outras partes.

    Na verdade, documentário e jornalismo não se distinguem da ficção por carregarem relações de essencialidade com categorias como real ou verdade, mas por provocarem respostas diferenciadas em seus receptores. Diante de um filme documentário ou de uma reportagem, o espectador/leitor é conduzido ao lugar de testemunha do mundo, do devir da história ou, ainda, do acontecimento que expressa a interação entre realizador/repórter e a realidade. As obras filiadas a esses domínios constituem, para o espectador/leitor, um dizer explicativo da realidade.

    Filmes, notícias e a história de seus usos

    Diante da pergunta sobre o que é documentário e jornalismo, somos sempre levados a responder que são discursos que mostram/representam/produzem a realidade. O que alguém como João Moreira Salles vem nos alertar é que essa afirmação no entanto está longe de ser o final da conversa. Muito pelo contrário, é apenas o começo da história. Falar de documentário e de jornalismo é investigar a constituição de uma curiosa espécie de autoridade discursiva e de um consequente pacto narrativo com o espectador/leitor. É, portanto, pensar sobre as diferenças sociais que os termos documentário e jornalismo sugerem em suas relações com a historicidade e com a experiência do espectador/leitor.

    Esse debate foi levado adiante por Bill Nichols (2005) e Nelson Traquina (2005). A reflexão desses autores parece muito inspirada na metodologia analítica de Michel Foucault (1995), procurando restituir, para seus respectivos campos, um lugar na teoria do cinema (documentário) e na teoria da comunicação (jornalismo), sem, no entanto, precisar retomar a oposições rígidas do tipo verdade e mentira. Em outras palavras, Nichols e Traquina trabalham a discursividade de documentários e reportagens. Nichols, por exemplo, é lembrado por sua formulação de quatro modelos de representação (expositivo, observativo, interativo, reflexivo), enquanto Traquina investe em uma catalogação das diversas maneiras de se pensar a notícia.

    É nesse sentido que os dois autores trabalham os modelos canônicos de seus domínios. Mas esses modelos apenas indicam a projeção imaginária de um senso comum que vai reconhecer no documentário e na reportagem as marcas estéticas do que deveria ser um documentário ou uma reportagem. Em cada contexto social e histórico, regras e formulações influenciam de modo importante a definição do que deve ser um documentário ou uma reportagem, e orientam fortemente a expectativa da audiência. Assim, a questão da representação da realidade está sempre se renovando em ambos os campos. Ela não deve mais ser encarada como a questão primordial desses domínios ou o critério de delineamento da essência definidora de filmes documentários e reportagens.

    O foco é deslocado para dar destaque ao jogo de expectativas que se estabelece sempre que um filme é classificado socialmente como documentário ou quando o relato de um acontecimento recebe a alcunha de notícia. Essa perspectiva mais pragmática de abordagem é certamente abrangente e tem como referência a prática recorrente, não os casos pontuais ou as exceções. A ideia é que, quando vemos um documentário ou uma reportagem, temos, em geral, um saber social prévio sobre o modelo de narrativa a que estamos expostos. Assistir a um documentário ou ler uma reportagem são atos sociais, que praticamos orientados por uma série de definições e de organizações, internas e externas às narrativas.

    A história dos usos das imagens documentais e das notícias constituiu um lugar a partir do qual se exerce o papel de registro e de informação do mundo. Falar de documentário e de jornalismo é também explorar o conceito de lugar de fala. Entendemos esse termo como o lugar que o enunciador ocupa em uma cena, a partir do qual estabelece um contrato implícito de troca simbólica de enunciados com os destinatários, que lhe confere a condição de falante autorizado a falar daquilo que fala e do modo como fala. O lugar de fala é uma posição conquistada – por direito juridicamente regulamentado ou espontaneamente aceito – de proferir determinado discurso.

    É na historicidade da constituição desses domínios que se delineia o lugar de fala, essa autoridade de traçar uma explicação do mundo ou de aspectos dele. Ao longo dos tempos, o estatuto social tanto do documentário quanto do jornalismo constituiu-se como o de evidenciar a realidade do mundo, o que os habilita a serem discursos sobre o mundo histórico que compartilhamos. A construção e a aceitação da autoridade dos discursos do documentário e do jornalismo estão no cerne do processo de legitimação e do desenvolvimento de ambos os campos.

    A trajetória de constituição do documentário como gênero cinematográfico leva-nos a refletir sobre a história de sua autoridade discursiva. Uma autoridade que nasceu com o cineasta americano Robert Flaherty, mas foi institucionalizada com as formulações e as práticas da escola inglesa, por nomes como Alberto Cavalcanti, Paul Rotha e John Grierson.⁵ A história do jornalismo também passa necessariamente pela legitimação do lugar de fala que justifica sua razão de ser e orienta sua leitura. A concepção hegemônica de jornalismo institucionaliza-se concomitantemente com o próprio movimento civilizatório nascido e desenvolvido na Europa desde o século XVII. Como vimos, por mais diversas que tenham sido as experiências no campo do jornalismo ao longo dos anos, não se perde de vista que a atividade jornalística busca colocar os indivíduos em contato com o seu mundo, a partir da abordagem de seus aspectos reais.

    O jornalismo constitui-se como atividade baseada em um contrato de mediação cognitiva entre a realidade e os indivíduos. Isso está claramente relacionado com a resposta a uma demanda que o jornalismo assumiu historicamente. O mundo alcançou tal complexidade que não é mais possível vivenciar as mudanças pessoalmente. Faz parte do jogo discursivo do jornalismo hegemônico fazer crer que ele interpõe-se entre os fatos e o leitor de forma a retratar fielmente a realidade.

    Seguindo esse raciocínio, podemos dizer que o documentário e o jornalismo vão, em suas trajetórias históricas, constituir para si mesmos uma formação discursiva, uma rede de práticas, premissas e valores intimamente vinculados a essa autoridade.⁶ Algo que envolve também, claro, o que chamamos de pacto de leitura. Em um nível mais geral, as obras definem seu próprio modo de leitura pela sua inscrição em um gênero – o que, por sua vez, remete a convenções tácitas que orientam a expectativa do público. O pacto de leitura está determinado pela submissão da obra a certo número de normas, mais ou menos evidentes, que vão codificar a recepção. Orientado por esse pacto, o espectador/leitor constrói sua recepção, apoiando-se nos espaços de certeza oferecidos pelo texto. Esses pontos de ancoragem delimitam a leitura e a impedem de se perder em qualquer direção.

    Leitores, espectadores e o acordo de cavalheiros

    A situação de recepção nos domínios do jornalismo e do documentário determina instruções de leitura que levam o espectador/leitor a adotar uma atitude mais documentarizante do que ficcionalizante. Não é à toa que nos sentimos ludibriados quando flagramos ou tomamos o posterior conhecimento de que um documentário ou uma reportagem fez uso de invenções sem nenhuma correspondência com o mundo exterior às narrativas. Nesse sentido, pode-se observar que os pactos de leitura firmados por jornalistas, documentaristas e seus respectivos interlocutores possuem muitas cláusulas em comum. Espectadores e leitores precisam confiar em documentários e reportagens como fontes seguras do real, apesar de essa credibilidade estar sempre ameaçada pela própria natureza das obras. É esse pacto que torna possível e eficiente a comunicação jornalística. Adriano Duarte Rodrigues (1999, p. 32) explica:

    Quando vemos o telejornal ou folheamos as páginas de um quotidiano partimos habitualmente do pressuposto de que o jornalista é digno de confiança e nos relata aquilo que efetivamente aconteceu, fazemos fé na credibilidade da sua palavra, confiamos na fiabilidade das imagens do acontecimento. Raramente nos encontramos na situação de podermos verificar in loco a veracidade dos fatos relatados.

    Assim, a pretensão referencial da narrativa jornalística está mais voltada para a conquista da credibilidade do que exatamente para a objetividade dos fatos. Poderíamos falar em uma espécie de acordo de cavalheiros entre jornalista e leitores pelo respeito a certa fronteira que torna possível a leitura das notícias como índices do real. Para alimentar suas relações objetivas com a realidade, o jornalismo estabelece um acordo com o indivíduo e as coletividades, acordo esse que sustenta em grande parte a aceitação do jornalismo nas sociedades contemporâneas. A estratégia textual do jornalista de relatar a verdade é validada pela comunidade de leitores, telespectadores e ouvintes que acreditam estar lendo, vendo ou ouvindo a verdade dos fatos. A parte dos jornalistas no trato não é somente produzir notícias sem distorções ou mentiras em relação aos fatos concretos, mas também assegurar a autenticidade dos relatos por meio de uma série de técnicas, além de controlar o olhar de seu interlocutor.

    As notícias são fragmentos parciais de histórias, dramas e tragédias humanas, contados e recontados diariamente, pontuados de hiatos e lacunas de sentido que precisam ser permanentemente negociados pelo receptor no ato de leitura. Para transmitir jornalisticamente a realidade, o repórter tem de operar sempre na segurança desse pacto. Assim, as reportagens são produzidas segundo técnicas específicas, que foram adotadas, tiveram sua eficácia – para a sustentação do pacto – testada e foram socialmente aceitas. Essas técnicas dizem respeito à apuração, à seleção dos fatos, à escolha do vocabulário, à ordenação das informações, ao tratamento das fontes, entre outros fatores.

    Nos anos 1980 e 1990, os teóricos do cinema também passaram a demonstrar mais interesse pelas formas socialmente diferenciadas de espectatorialidade. A história do cinema, nesse sentido, é não apenas a história dos filmes e cineastas, mas também a história dos sucessivos sentidos que os públicos têm atribuído ao cinema. Mais recentemente, alguns autores levaram essa abordagem para o documentário, no qual a questão de um pacto narrativo que concede um estatuto de realidade aos filmes do gênero é posta desde o início.

    Em A questão do público: uma abordagem semiopragmática, Roger Odin (2005) centra o foco sobre a recepção do documentário e desloca sua definição para a dimensão pragmática do discurso, percebendo que há, em princípio, uma oposição entre a leitura de obras classificadas como documentários e as entendidas como ficcionais. O autor admite a existência de filmes que efetivamente se exibem como documentário e acena para a necessidade de estudarmos como se efetua essa exibição. Fornece-nos, então, uma visão do que denomina modo documentarizante. Pela sua perspectiva, uma obra cinematográfica sempre dá, em complexas articulações, indicações sobre os modos que deseja ser entendida. Um filme pertence ao conjunto documentário quando integra explicitamente, em sua estrutura, a instrução orientada para uma leitura documentarizante. Essa instrução pode estar nos créditos ou no próprio texto fílmico. Assim sendo, a oposição entre leitura ficcionalizante e a leitura documentarizante é um efeito do posicionamento do leitor ante o texto.

    Voltemos a Nanook. Antes do longa-metragem de Robert Flaherty, não havia distinção entre filmes de ficção e documentários (até então, ninguém tivera a ideia de contar uma história com começo, meio e fim utilizando-se de pessoas reais em situações reais). Sua mulher, Frances Hubbard Flaherty (1960, p. 17, tradução nossa), também colaboradora em alguns de seus filmes, sublinhou que a novidade de Nanook era o fato de ser o primeiro filme sem atores, sem estúdio, sem roteiro, com pessoas normais vivendo normalmente. Essa noção é muito mais complexa do que supõe Frances, mas o fato é que Nanook apresentava-se como algo entre as ficções e as chamadas atualidades ou os filmes de viagem. O cineasta precisava convencer o espectador de que aquilo a que ele iria assistir era real, existia em algum lugar do mundo.

    É o que fazem as cartelas iniciais do filme. Esse lugar existe, fica no norte do Canadá, e lá vivem pessoais reais, dentre as quais Nanook, o esquimó, diz a primeira delas. No entanto elas não são o suficiente. A estratégia armada por Flaherty é muito mais elaborada. Primeiro, revela-se o artifício cinematográfico. Os personagens olham, então, para a câmera. Em seguida, o aparato de filmagem é elidido, em nome de uma ilusão de realidade. Ou seja, logo depois de denunciar a sua presença na primeira cena do filme, o cineasta passa a esconder a câmera

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