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Fulmicotone - Versão portuguesa
Fulmicotone - Versão portuguesa
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E-book272 páginas3 horas

Fulmicotone - Versão portuguesa

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Sobre este e-book

Tudo o que aqui é contado acontece mesmo. As aventuras são reais, como as da vida de cada um de nós. Trata-se de um livro autobiográfico febril e impetuoso, como um rio; às vezes devastador, mas cheio de sagacidade, de estímulos, mordaz.
Lê-se num folgo.
Nada do que é dito é invenção. Não há exageros estéticos, nem pretensões literárias; nada é romanceado. Este é o grande poder envolvente de Fulmicotone: uma autenticidade irredutível.
Um livro que muitas vezes sacrifica a coerência formal à autenticidade; talvez um tratamento mais racional da narrativa; um certo pudor que sistematicamente é rasgado com uma pungência cirúrgica de um entomologista que exuma os tumultos mais profundos: a fúria cega; o rigor cru da linguagem obscena.
Um livro que não teme a ingenuidade, o jorro, as mudanças repentinas de velocidade, de ritmo, de atmosfera, de estilo, de perspectiva. Um livro que poderia ser confuso, desigual, obstinadamente falhado, é também precisamente de tudo isso que lhe advém a sua beleza vulcânica.
O valor da experiência Bettinelli está precisamente na absoluta liberdade estilística, de se estar nas tintas para convenções, estilismos, "piscadelas", oportunismos.
Pode ser uma ótima sessão de autoterapia, marcada pelos riffs obsessivos dos Led Zeppelin e guiada pela voz quente de Mark Lanegan.
Um livro que, na cara do leitor, rejeita toda a miséria ácida da existência, deixando-o, ao virar a última página, com uma inebriante vontade de viver. E com uma deliciosa, incontrolável, comoção gratificante.

A tradução para português de Fulmicotone foi concluída graças à colaboração de Fernando de Jesus Ferreira.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de set. de 2020
ISBN9788835896036
Fulmicotone - Versão portuguesa

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    Fulmicotone - Versão portuguesa - Virginia Bettinelli

    Virginia Bettinelli

    FULMICOTONE

    UUID: 8a92f015-90cd-49bd-acd7-d54e447b9914

    This ebook was created with StreetLib Write

    http://write.streetlib.com

    toc

    Olhos borrados de maquilhagem

    ANTES DE NASCER

    Johnny Chopper

    Malcricca

    O círculo

    A Milão para beber

    Polícias e ladrões

    O Rei e a Rainha

    Shekda

    MENINA

    O Pombal

    Bucolic time

    O Alambique

    Rolex

    O skitchGoldrake

    Orgias de yuppies

    Solidariedade Automobilística

    O Chignon Inocente

    Shake it like a tamburine

    Os aposentos

    RAPARIGA

    O helicóptero de Penélope

    O Cogumelo Atómico

    Os bares perturbantes

    Colhões à tangerina

    Ramas

    Vento! Há vento!

    Fúria cega

    Total distruction

    O oboé apaixonado

    O machado

    Oito ensaios para uma amnésia

    MULHER

    Crónica de sangue

    Joy and misery

    Fuck the system

    A Black Mamba

    Mar adentro

    O Advogado

    Agradecimentos

    Só mais uma

    Para Virginia Bettinelli, a nossa carriça.

    Na capa Vittorio Bettinelli em queda livre, de skate , do Flathorse (1979).

    Capa: composição gráfica realizada por Studiofabbro, Maniago (PN), Itália.

    TRADUÇÃO E NOTAS DE: Sig. Fernado De Jesus Ferreria. Evora Monte, Portugal.

    Both life and art involve pain and to write honestly is worth whatever conflicts this causes, including estrangement from friends and relatives. P. Donleavy went so far as to say that unless at least three people sue you after the publication of your first novel, you haven’t been honest enough.

    À música

    Even though I was sitting on the top of the world

    I was still looking beyond [1]

    Sir Edmund Hilary (Monte Everest, Nepal)


    [1]

    «Mesmo estando sentado no topo do mundo, continuava a olhar para além.» (N. do T.)

    Olhos borrados de maquilhagem

    Aí está, mais um copo de rum velho, de Cuba, com 23 anos, e a mente voa, sai fora dos carris. Tento simplificar a minha vida; reflito sobre a escrita de Kafka ou do poeta Rimbaud, e penso: «Mestres, perante vós me curvo.» Não sou mais que uma cagadela de mosca ressequida pelo sol e esquecida na borda do parapeito.

    O facto é que tenho uma história encravada, a fustigar-me a mente, mas não consigo libertá-la. Da cabeça à mão, à caneta, ao papel, está a perde-se.

    Decidi, então, remover essa barreira e fazer deslizar, fluir os pensamentos, as memórias fragmentadas. Lembranças explosivas em breves relatos.

    Lembro-me do primeiro livro que realmente me seduziu e que devorei – pouco mais era que uma criança – que foi Il bar sotto il mare [1] , de Stefano Benni, pequenos contos narrados por muitas personagens bizarras, desfasadas, fora do comum.

    E assim foi, o «23 anos» derrubou o muro de cimento, e a barragem transbordou. Os olhos borrados de maquilhagem não foram causados por lágrimas ou cansaço; não, não, foram o resultado de gargalhadas acompanhadas de lágrimas de alegria: «História, tenho-te na mão, vou agarrar-te pelos tomates e não te vou largar mais.»

    Não há nada de especial, não há nada de surpreendente ou de romântico, há apenas seres humanos que passam pela terra, marcados pelo tique-taque banal da vida cotidiana, únicos e irrepetíveis, sopros de existência.

    Não há cópia que valha o original.

    Escreve-me um livro», dizia eu ao meu pai, «assim, se eu não posso sair e ter a porra das minhas experiências, posso passar a minha vida sentada no sofá a ler as tuas.»

    Mas não é assim. Cada um escreve o seu livro; mas é importante saber que precisamos dos outros para seguir em frente. Um artigo pobre, de uma revista fútil, fez-me pensar: «You need the others to keep you going.»

    «Aqui andava eu a reboque de desconhecidos cuja bagagem aumentava a minha. Como se as pequenas experiências de cada um fossem uma pequena parte, mas fundamental, do conteúdo da minha mala; e quanto mais avançava, mais essa mala se enchia de cacos, estilhaços... e tornava-se mais pesada, inundada por uma infinidade de cores deslumbrantes e singulares. As tonalidades prateadas das escamas de uma truta que ao nadar refletem o brilho intenso e cintilante do sol: «Agora tudo é claro para mim, Senhor, como um lago sem lama, Senhor, como um céu de montanha, sempre azul.» [2]

    Há vidas tão emaranhadas que nos fazem pensar que nunca conseguiram desatar os nós que já estavam formados mesmo antes do cordão umbilical.

    Vidas tristes, um tanto ou quanto enguiçadas, para as quais a roda da fortuna parece nunca ter girado. Vidas iradas, vidas instáveis, vidas curtas, quebradas, que, no entanto, eles próprios, por sua vez, criaram.

    Vou falar sobre o meu pai, ainda que nunca tenha sido muito dada à escrita.

    Um dia, um querido amigo disse-me que escrever sobre ele seria, para mim, uma experiência catártica. Ao dizer-me isto, o que me veio imediatamente à cabeça foi a banda desenhada do Zelig, e desatei a rir, mas, na verdade, eu preciso dessa tentativa. Ao meu pai, eu desprezei, odiei, admirei e amei numa sucessão de sentimentos oximoros, até à dor; com a doçura e a amargura que cobre a vida de todos. Pulp quanto baste para perder a vontade de comer, mas ao mesmo tempo de embebedar e vomitar, e ainda de devorar prazeres. Catártico significa purificador e libertador. O método catártico, em psicanálise, baseia-se na reconstituição de traumas vividos. Não pretendo ter pena de mim mesma ou escrever um romance de aventuras, uma comédia ou um dramalhão, apenas contar uma história como eu a conheço e vivi.

    E com as exalações do rum, chamo a razão com os olhos borrados de maquilhagem.


    [1] O Café Debaixo do Mar, de Stefano Benni, Ulisseia editores, 2010. (N. do T.)

    [2] Em Laranja Mecânica de Stanley Kubrick.

    ANTES DE NASCER

    Think outside the box

    Johnny Chopper

    Johnny Chopper era um rapaz nascido numa família burguesa abastada, com um olhar triste e grandes sonhos, que nunca chegava a realizar, simplesmente porque nunca se esforçava, um autêntico menino da mamã: assim que ficava com o rabinho assado, a mãe corria a esfregar-lhe o buraquinho enrugado com creme. Ao Johnny Chopper agradava-lhe a ideia de se ver como um revolucionário com ideias radicais que luta pelo povo —­ mas não passava de um comunista sem tesão, um picha mole. Para se sentir bem consigo mesmo, vestia-se como um vagabundo, atirava-se para as situações mais díspares e dava-se com marginais, como o meu pai.

    Johnny era um rapaz bonito: alto e magro, com cabelos longos, que os pais teriam gostado de cortar, mas que ele caprichosamente ostentava, lisos e macios — por causa do bálsamo —, mas selvagens como os de uma estrela, das que frequentavam o Studio 54 [1] . Casaco de camurça com franjas longas, como o do vocalista dos The Who, muito alternativo, cool.

    Cara elegante, dedos finos e brancos, que pouco tinham trabalhado, o Sr. Chopper — chamavam-lhe assim porque guiava uma Chopper flamejante de cor alaranjada, como a do pôr-do-sol na Patagónia, com garfos muito longos e um guiador altíssimo, de criar formigueiro nas mãos, onde apenas os dedos se apoiavam, lá em cima. Ele era dono de uma mota semelhante à Capitão América em Easy Rider [2] , só para alguns privilegiados. Uma mota sem para-lamas, luzinhas inúteis, com uma estrutura cromada e um assento colocado a poucos centímetros do chão. Os estribos estavam tão à frente e tão em baixo que o calçado tinha de ter saltos de tacão em cunha para que não se desfizessem ao arrastarem no chão. Os testículos tinham de estar muito bem aconchegados, ficavam tão esborrachados que pareciam gotas de Nutella a boiar num pequeno tanque de água. Em suma, uma joia para os aficionados.

    Partia, corria estradas; estudava, mas abandonava logo; trabalhava, mas não aguentava por muito tempo... Acabava sempre por voltar para casa.

    Johnny tinha tentado acabar com tudo, mais para se mostrar despido do seu egoísmo obsceno do que para atingir esse objetivo extremo. Agonizava no seu dolce fare niente e na vacuidade de um cotidiano miserável, com quase nada para fazer, mas com muito tempo para pensar.

    Na primeira vez que se tentou suicidar, pôs-se a cavalo da sua amada chopper e dirigiu-se para a passagem de nível mais próxima. Chegado ao caminho-de-ferro, em vez de o atravessar, virou para a esquerda de repente e avançou sobre o cascalho e barrotes pelo meio dos carris, percorrendo-os horas a fio, com os dentes a bater por causa dos ressaltos que os barrotes de madeira provocavam, ainda mais ampliados pela ausência de amortecedores nos supergarfos, tornando a sua chopper muito fixe. As franjas do casaco balançavam por todos os lados: para cima, para baixo, para trás e para a frente, continuamente — sem que a porra de um comboio aparecesse, nem que fosse para dar o golpe de misericórdia às pobres franjas maltratadas, bem como à sua existência atormentada.

    Desapontado, acabou por chegar a qualquer lado, no cu-de-judas, a outra passagem de nível, por onde saiu, sem mais. Estava amargurado e melancólico, mas, ao mesmo tempo, cheio de novas ideias para o futuro próximo.

    Imaginei-me à saída dessa passagem de nível, à espera dele, brincando com as pedrinhas da estrada, um pouco aborrecida. O silêncio só foi interrompido por um grilo insolente. Quando, do nada, os meus ouvidos são acirrados pelo ronco do escape de uma moto , superaquecida, me fez levar a mão à cara para proteger os olhos do sol, já baixo no horizonte. Então, no, vejo-o a aproximar-se, lentamente: primeiro um pequeno ponto com alguns reflexos provenientes do brilho dos cromados; mais perto, cada vez mais perto, começo por distinguir a forqueta da mota, depois os cabelos a esvoaçarem ao vento e, finalmente, reconheço as franjas; quando fica mais perto, ouço-o a praguejar, num ápice, vira para a direita e sai... Que espectáculo!

    A segunda tentativa foi mais dramática. Johnny, desta vez, teve realmente uma ideia de merda para acabar com a vida: passar semáforos no vermelho a toda velocidade... e foi-o fazendo continuamente, passando vários até se estampar violentamente contra a porta do carro de uma senhora, que viu o enfurecido Sr. Chopper passar por cima dela, com as franjas enraivecidas a esvoaçarem para trás. Ela gritou, e os cabelos, ainda com rolos, caíram-lhe sobre os ombros, como que batidos por uma colossal pancada duma chapa quente. O barulho da forqueta a cravar-se na porta do carro e o Johnny a voar cada vez mais alto, e mais alto, a passar por cima do carro, e a estatelar-se na estrada por onde rebolou ao longo de muitos metros. O facto é que a moto ficou destruída, o carro da senhora ficou partido ao meio e ela não ficou lá muito bem, mas ao Johnny não aconteceu nada, apenas algumas franjas caídas no asfalto, nada mais!

    Johnny decidiu que era hora de acabar com a ideia de se suicidar.

    O pai do Johnny tinha muito dinheiro e, como tal, tinha um ótimo carro desportivo, que era a obsessão do meu pai. O meu pai era piloto de competição frustrado, era imprudente, sim, mas sabia conduzir. Motos, carros — para ele tinham de ser bólides — não tinham quaisquer segredos. De um motor avariado, era capaz de fazer o diagnóstico apenas de ouvido. As suas mãos eram milagrosas: faziam reavivar o ronco de um motor, qualquer que fosse.

    A primeira Kawasaki, de que me lembro, era amarela, mais ou menos como as de agora, mas mais despida, com menos carroçaria, mais rudimentar; com carenagem à frente onde nos baixávamos, com cabeça mesmo junto ao para-brisas, para ir na mecha. Uma vez, nessa moto, o meu pai levou minha mãe a Amsterdão; que viagem!

    O meu pai dizia que a verdadeira emoção acontece quando a velocidade é tão alta que as margens da estrada se cruzam à nossa frente cada vez mais perto, formando um triângulo...

    Uma vez, quando estava de volta do lago com o grupo de amigos reunidos à última hora, escureceu de repente e começou a chover. Toda a gente se embrulhou rapidamente nas toalhas. Fomos a correr até ao parque de estacionamento. Depois metemo-nos nos carros — o meu pai ia de mota —, que eram de várias marcas: dois cavalos, Renault 5 e também talvez houvesse pelo meio um Opel, uma sucata que ainda trabalhava. O meu pai decidiu levar-me. Eu gostava muito de andar de mota, desde muito pequena — a inconsciência era um estado de espírito —, eu confiava nele: eu iria com ele para todo o lado... A minha mãe opôs-se, mas já era tarde demais, eu já estava montada na mota com um capacete grande demais para minha cabecinha e, por isso, balançava de um lado para o outro. Antes de partirmos, ele disse-me que com chuva seria uma experiência única; eu só me preocupava com o frio. Nós usávamos calções curtos e t-shirts, um dos amigos emprestou-me um blusão de ganga demasiadamente grande, mas o meu pai disse-me, enlevado: «Vais sentir a chuva na tua pele, as gotas serão como picadinhas.» Começava a anoitecer, forte e feio. Os carros eram, agora, faróis microscópicos refletidos nos espelhos retrovisores, e eu estava prisioneira deste psicopata, como o tenente «Daaan», em Forrest Gump, quando no meio da tempestade, em cima do mastro partido, altercava com Deus. A chuva, no começo, foi muito fixe, mas depois começou a incomodar-me a sério. As gotas pareciam milhares e milhares de pequenos alfinetes a espetarem-se na pele de uma menina, mas era tarde demais, eu estava sozinha nas mãos de um louco de cabeça perdida. Penso que, em certa altura, ele abrandou apenas porque a minha mãe assomou à janela do carro para o descompor, acenou para ele parar para que eu fosse para o carro, mas ele não quis saber e seguiu a toda a velocidade, rasgando o asfalto e levantando uma grande poeirada... Cheguei em casa sã e salva, um pouco em estado de choque e com medo: esta foi a única vez na vida que senti as alfinetadas da chuva na pele.

    Num fim de tarde, depois das várias tentativas fracassadas de suicídio, Johnny renasceu das cinzas, apareceu na praceta com o novíssimo carro desportivo do pai. O meu pai ficou eufórico e rogou-lhe, com um sorriso forçado de bom rapaz e com os olhos a brilhar, que o deixasse guiar.

    — Não, não, não!

    — Vá lá, deixa-me experimentar!

    — Não, não, não!

    — Vá lá, só cinco minutos!

    — Não, não, o meu pai vai-nos matar!

    — Mas como é que ele vai saber?

    — Hummm, vá, está bem, mas só uma voltinha!

    O meu pai sentou-se ao volante. Estava possesso. Primeiro começou a fazer acelerações, os pneus chiaram brutalmente, as pessoas viraram-se para ver o que se passava, umas insultavam, outras aplaudiam; Johnny, que ficara dentro do carro, já não podia sair, como quando eu fiquei presa no assento da moto, sequestrada por um doido varrido. O meu pai ria perdidamente, parou no parque de estacionamento, engatou a primeira, meteu o pedal a fundo e fez um pião. A tração traseira é incomparável, em termos de diversão, acelerações bruscas e travão de mão...

    — Não, não, não, não, mais devagar senão matamo-nos... o meu pai vai-me matar!

    — Melhor! Assim, desta vez, talvez o faça!

    No silêncio da noite, soltou-se uma gargalhada que ressoou para fora das janelas do carro. Na escuridão, em frente, havia uma pequena reta entre duas fileiras de casas, meio burguesas, construídas nos anos 70, com jardins bem cuidados com arbustos baixos em frente das vedações... Uma derrapagem, por causa da velocidade, fez o carro ziguezaguear, primeiro para a direita, depois para a esquerda... O meu pai, com um golpe de volante, tentou segurá-lo, «aguenta, aguenta, aguenta, ah, caralho, não, não, não o aguentas, não o aguentas, filho da puta!», gritava o Johnny agarrando-se com força à pega de segurança sobre a porta. Começou a imaginar o pai a correr atrás dele com uma pá do quintal, para o esmagar e partir-lhe as pernas. Quanta dor já sentia, só de pensar. O carro guinou uma vez mais e foi embater na vedação duma das casas. Pumba, catrapumba, pumba, pumba, três ou quatro estacas pelos ares. O carro capotou e foi de rastos até ao meio da estrada. Ficaram de pernas para o ar... A louca corrida tinha terminado. O estrondo, a travagem, a destruição da vedação acordaram as mulheres, que ensonadas e vestidas com camisas de noite rançosas, sempre com aquela tralha na cabeça, meteram o nariz fora do buraco para enxergarem o que se tinha passado àquela hora. Então, ao verem o carro naquela posição incrível, começaram a gritar, todas em coro, como numa missa de gospel: «Mataram-se, ó Senhor abençoado, mataram-se!» Algumas sentiram-se mal... Punham as mãos na cara, gritando, como no quadro de Munch, O Grito... O meu pai, duplo de profissão, dum só golpe, saiu pela janela aberta, e, de pé sobre o muro destruído, para mostrar quem mandava ali, levantou a mão e gritou: «Senhoras, voltem todas para dentro, fora daqui, vão dormir!» E repetiu o mesmo várias vezes num tom perentório. Ninguém respondeu. Todas as camisas de noite desbotadas se viraram e desapareceram, engolidas pela escuridão das suas casas.

    Uma vez resolvido o problema das camisas de noite, agora ainda havia o problema da pá... O meu pai olhava para o Johnny, que estava colado ao banco, não reagia, estava paralisado. O meu pai tentou acalmá-lo, aliciando-o:

    — Desculpa, c'um caralho, eu não sei o que se passou, olha, lamento, mas eu nunca poderia pensar que isto fosse acontecer!

    Johnny, pregado no assento, não reagia. Ele respirava, não estava ferido, mas o pensamento do pai com a pá não lhe saía da cabeça.

    — Ei, Johnny!? Diz-lhe que eras tu que ias a guiar e que um cão se atravessou à frente do carro e que tiveste de te desviar, eh pá, para não o atropelares... O teu pai é rico, vai pô-lo como novo...!

    Johnny devolveu-lhe um olhar vazio, a pupila estava tão grande que parecia esconder a íris e a esclerótica, e disse:

    — Está bem, faremos assim, porque se lhe digo que eras tu que ias a conduzir, será muito pior!

    Saiu do carro a dizer variados palavrões alternados com animadas imprecações, mãos para o ar, mãos nos bolsos e foi-se embora a falar sozinho. Johnny a pé até casa... o meu papá a pé até à praceta. Consciente da asneirada, triste e pensativo.

    Mas logo se veio a perceber que os tomates do Johnny tinham ficado esborrachados como as gotas de Nutella a boiar no tanque. Em vez de dizer o que tinha combinado com o meu pai, roeu a corda, porque se estava a borrar de medo da puta da pá. Deitou as culpas sobre o meu pai, na mais patética choradeira do mundo que fez ao seu pai. Por isto, o meu pai deparou-se com o pagamento, até ao último cêntimo, da dívida contraída, numa infinita série de prestações do conserto do carro do pai do Sr. Chopper...

    Então, para arranjar o dinheiro, teve de se desenrascar: revendia autorrádios emprestados, alugados, em suma, roubados, e também vendia sacos de erva que cultivava em cima de telhados, mas isto é outra história. Na verdade, o que o meu pai queria mesmo ter feito era embrulhar o Johnny no seu belíssimo casaco de franjas e atirá-lo da ponte abaixo. Mas, enfim, ele pagou tudo até ao último cêntimo.

    Com um olhar esgazeado, um cigarro ao canto da boca, em frente à garagem da casa do seu pai, que guardava em segurança o carro cujo conserto já tinha sido totalmente pago, Johnny — obcecado com a ideia de fazer algo de rebelde contra a ditadura do pai — pegou numa garrafa, encheu-a com gasolina, colocou-lhe um rastilho, abriu cuidadosamente o portão da garagem, atirou o cabelo para trás, acendeu o cigarro e

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