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Mulher, Maternidade e Misoginia
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E-book250 páginas2 horas

Mulher, Maternidade e Misoginia

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Sobre este e-book

Coletânea de artigos publicados no jornal O TEMPO (Belo Horizonte), entre 1996 e 2019, sobre construção da identidade feminina, maternidade, relações de gênero e regulação da natalidade. O Prof. Antônio Greco, mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília, é coautor em seis artigos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de out. de 2020
ISBN9786587403533
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    Mulher, Maternidade e Misoginia - Gilda de Castro

    2020

    Seção I

    A construção da identidade feminina

    Há muitas variações sobre a percepção da mulher, quando analisamos os dados etnográficos de diferentes sociedades. Algumas não a consideram um ser inferior, embora a força masculina seja maior pela própria constituição orgânica entre os dois sexos. Além disso, os fenômenos orgânicos - menstruação, gestação, parto e amamentação - implicam transformação física e recolhimento para dar à luz, interferindo nos papéis sociais e, consequentemente, no cotidiano de sua comunidade. Mesmo assim, os homens de muitas sociedades simples não maltratam a companheira, pois vivem em ambiente alheio à desigualdade social, admitindo sempre o diálogo, respeito e equilíbrio na divisão sexual do trabalho. Enquanto isso, prevalece, nas sociedades complexas, a opressão masculina, com as mais severas medidas para impor a vontade de pais, companheiros, sacerdotes e patrões, punindo as transgressoras ao código de conduta, sem chance para livrar as mulheres da submissão em todos os contextos. Acreditam, sobretudo, que a beleza feminina é um perigo à ordem estabelecida.

    Constam dessa seção artigos que evidenciam as representações sociais sobre as mulheres com as suas peculiaridades físicas que registram sua beleza e, ao mesmo tempo, sua capacidade para a reprodução da vida, garantindo a preservação da espécie humana e da sociedade. Essa ascendência é, então, observada com suspeição pelos riscos que isso implica à hegemonia masculina, exigindo severas medidas para controlar o processo reprodutivo vinculado aos direitos de herança e sucessão do patrimônio material e simbólico dos homens para as novas gerações.

    As mulheres e os fundamentos para a misoginia

    Mulheres sauditas precisam cobrir todo o corpo com pesadas roupas pretas para que os homens não se sintam perturbados diante delas. Não podem entrar em mesquitas e são apedrejadas até a morte se violam rígidas normas de comportamento sexual, existentes naquela sociedade poligínica.

    Segundo os talmudistas, Lilith foi a primeira mulher. Ela não quis se submeter à autoridade do marido e deixou o paraíso, indo para as regiões ignotas e compactuando com Satanás para confrontar Deus. Desde então, tornou-se um risco para o grupo masculino. É representada por uma figura de mulher nua, cujo corpo termina em cauda de serpente. O seu nome significa Monstro Noturno. Ela aparece ainda hoje nos sonhos dos homens para seduzi-los e desgraçá-los.

    Algumas tribos contemporâneas isolam as mulheres, durante a menstruação, porque as consideram especialmente perigosas nesse período. Os judeus distanciam-se de suas esposas e elas precisam tomar um banho de imersão ritualizado (Mikvah), depois de sete dias, para purificar-se, antes de retomar o relacionamento conjugal.

    Caboclos da Amazônia não permitem que gestantes, puérperas e mulheres menstruadas aproximem-se de seus instrumentos de caça, porque elas podem contaminá-los, provocando panema que impede o sucesso do caçador.

    Populações rurais de diversos pontos deste país acreditam que uma gestante mata uma cobra com seu olhar, tal a força maligna contida nele. Afirmam que isso teria acontecido, em várias ocasiões, com suas parentes ou conhecidas.

    Homens brasileiros definem-se como sexo forte; por isso, têm direito de controlar o ambiente familiar e todas as esferas da sociedade. Argumentam, entretanto, que são vulneráveis à sedução feminina. Juízes repreendem mulheres que teriam provocado estupradores, ao usar roupas insinuantes e vasta cabeleira, enquanto absolvem os agressores, a partir da premissa de que não puderam se conter diante de tanta exposição de sensualidade.

    Durante a Inquisição, que vigorou na Europa por mais de 600 anos, cerca de 500 mil mulheres foram supliciadas em câmaras de tortura, afogadas em lagos ou queimadas na fogueira, sob acusação de imoralidade, aborto, bruxaria e canibalismo em rituais satânicos, enquanto poucos homens tiveram esse destino. Em 1484, Heinrich Kramer e James Sprenger sistematizaram, no livro Malleus Maleficarum, as instruções para identificar e punir esses seres que teriam pacto com o diabo, desconhecendo a fé cristã.

    O Cristianismo prega que a primeira mulher provocou a desgraça da humanidade quando se deixou influenciar pela serpente para comer o fruto proibido e induziu seu companheiro à mesma transgressão. Desde então, elas seriam punidas pelas dores do parto que pode também retirar a vida de quem praticou o ato sexual. Quando os anestésicos surgiram, no século XIX, houve enorme resistência para que fossem usados no processo de dar à luz, porque aquela punição pela falta cometida deixaria de existir. A interdição foi paulatinamente superada após o médico usar clorofórmio na Rainha Vitória da Inglaterra para o nascimento de seu penúltimo filho, Príncipe Leopoldo, em 1853.

    Outras vedações às mulheres ainda são vigentes no Catolicismo, que não aceita sacerdotisas e exige celibato dos padres para que não tenham convivência íntima com o ser responsável pelo pecado original. Os sacerdotes seriam simbolicamente contaminados e haveria também risco para o segredo da confissão dos fiéis.

    Antropólogos observam que interpretamos o universo, estabelecendo um sistema classificatório para enquadrar objetos, vegetais, animais e pessoas, mediante suas peculiaridades. Ao mesmo tempo, sentimos inseguros diante do desconhecido, caótico e ambíguo, temendo os seres que não se encaixam perfeitamente nas categorias, pois eles seriam anômalos e tumultuariam a ordem cósmica.

    O sapo, por exemplo, pode viver na água e na terra. O morcego é um mamífero que voa. A serpente é animal, mas não tem pernas. Essa ambiguidade acarretaria desgraça, doença e morte; por isso, são usados na feitiçaria, ainda hoje, em muitas sociedades tribais e complexas.

    Nessa elaboração das categorias taxonômicas, os bebês pertencem ao mundo da natureza, os homens estão permanentemente no mundo da cultura e as mulheres transitam entre os dois. Ou seja, após a socialização, o grupo masculino integra-se definitivamente à sociedade, podendo assumir todas as responsabilidades, porque é constituído por aqueles que não desequilibram a ordem cósmica; são, portanto, seres perfeitos. Enquanto isso, as mulheres são seres ambíguos: em todo o período reprodutivo, atualizam em seu corpo processos naturais, como a menstruação e a gestação, que comprometem o desempenho de seus papéis sociais, pois transitam entre o mundo da natureza e o da cultura. Isso seria a causa de uma malignidade inerente que pode perturbar a condição humana, a sociedade e a organização cósmica. Precisam, portanto, permanecer sob estreita vigilância e retidas em espaços privados para não disseminar a desordem no mundo da cultura. Sobretudo, não devem lidar com o sagrado, pois somente as criaturas perfeitas podem ter acesso às divindades.

    Brasileiros dizem que as mulheres viram homem após a menopausa. Isso não se refere apenas à perda de beleza com o envelhecimento. Há uma admissão inconsciente de que elas não têm mais a ambiguidade própria das jovens que estão no período reprodutivo; por isso, deixam de ser fonte de perigo e podem lidar com o sagrado. São então admitidas no universo religioso, como benzedeiras ou mães-de-santo, e adquirem credibilidade para assumir cargos importantes nos negócios da família, principalmente se são viúvas.

    As representações negativas sobre as especificidades da condição feminina predominam em sociedades androcêntricas, pois os homens privilegiaram o papel masculino no processo reprodutivo pela criação de normas sociais para atribuir direitos de herança e sucessão aos filhos gerados pela sua esposa.

    Como maternidade se comprova e paternidade se presume, exigem exclusividade sexual de sua companheira para não eleger filhos de outro homem como seus herdeiros. Isso é possível somente quando estabelecem estratégias para controlar a sexualidade feminina, atribuindo às mulheres responsabilidade por perigosa sedução e desqualificando seu papel reprodutivo.

    A celebração do Dia Internacional da Mulher

    A Organização das Nações Unidas (ONU) definiu, em 1971, que 8 de março seria o Dia Internacional da Mulher. Estava acatando uma decisão tomada, em 1910, pela II Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, realizada em Copenhagen, que selecionou aquela data para denunciar maus-tratos, assédio sexual, salário inferior ao dos homens e obstáculos para ascensão social em homenagem às 129 operárias queimadas vivas, em 1857. Elas estavam protestando contra a jornada de trabalho de dezesseis horas diárias numa indústria têxtil de Nova York.

    A definição de um dia especial para algumas categorias sociais constitui uma estratégia dos segmentos hegemônicos para cativar grupos oprimidos enquanto não criam soluções para superar o preconceito e eliminar a discriminação contra a minoria social. Não cabe, portanto, às mulheres regozijar-se por essa data, pois ela é apenas um momento para reflexão de como elas ainda não conseguiram cidadania plena, embora estejam apresentando expressiva produtividade em diversos setores econômicos, a despeito dos obstáculos criados pela família, pelos segmentos patronais e pelo Estado para que não alcancem os postos de direção no setor privado e na administração pública.

    A família não se constrange quando opera esquemas para privilegiar os filhos em detrimento das filhas e ignora que os casos de violência contra as mulheres ocorrem predominantemente no espaço doméstico. Isso é mais desolador quando se trata de relação incestuosa entre pai e filha, numa violação ao princípio básico da organização social de todos os povos. Esse problema torna-se gigantesco diante da timidez da legislação brasileira para coibir esse crime, principalmente quando a menina tem mais de quatorze anos. Nossos legisladores e juristas não se inquietam, portanto, com a infâmia, como se a vítima pudesse escapar de quem detém o patria potestas e continuar vivendo num ambiente desagregador de sua saúde e seu futuro.

    As mulheres têm, portanto, inúmeros problemas, apesar do formidável desenvolvimento tecnológico nos últimos anos e de seu esforço para romper o clima de opressão e obter autonomia econômica e emocional. Sofrem considerações desabonadoras, recebem salários menores e não têm reconhecimento de seus méritos, mesmo pelos seus próprios pais e companheiros.

    Existe, portanto, um longo caminho para percorrer e ele encerra obstáculos que demandam mudanças radicais, principalmente na esfera do Estado. Ele deve ser mais justo na distribuição dos espaços entre homens e mulheres para demonstrar que prima pelo respeito aos princípios de equidade de gênero, conforme preceito constitucional. Somente assim, ela não será letra morta no ordenamento jurídico da sociedade brasileira.

    O ponto crucial deve ser apoio efetivo à maternidade que é inerente ao organismo feminino e constitui o processo indispensável para a preservação da sociedade e espécie humana. Não cabe mais uma percepção de que a reprodução é onerosa nem tem valor econômico. Nada é mais complexo do que gerar uma vida e transformar um bebê em ser social, plenamente ajustado ao seu ambiente. Ignorar essas nuanças, será o fracasso da própria sociedade, com consequências dramáticas para seu próprio futuro.

    Quando os brasileiros obtiverem esse entendimento, não será necessário celebrar o Dia Internacional da Mulher, porque haverá perfeito equilíbrio nas relações de gênero, construído na distribuição equânime das responsabilidades sociais, apesar das peculiaridades físicas com interferência temporária nas atividades profissionais.

    O mito de Adão e Eva: a legitimidade da dominação masculina

    As sociedades produzem mitos para transmitir suas interpretações sobre o mundo. Eles são narrativas de situações extraordinárias que expressam crenças, valores e ideais de um grupo. Transformam-se em discursos políticos, formalizando modelos de conduta percebidos como corretos e neutralizando, com enredo cativante, rejeição ao seu conteúdo moral.

    A Bíblia Sagrada é, na perspectiva de antropólogos, um conjunto de mitos, porque suas narrativas constituem uma história sagrada para considerável parcela da humanidade. Apresenta situações exemplares que normatizam o comportamento, exigindo demonstração de fé pela supressão da dúvida crítica.

    Seu texto mais conhecido é o primeiro capítulo do Gênesis: Deus criou um mundo perfeito, onde havia um ser superior, o homem, que era sua imagem e semelhança. Houve, entretanto, o pecado original, desencadeando a desorganização no Universo representada pela fome, doença e morte.

    A história da criação mostra pontos essenciais da sociedade hebraica que enfatizava a dominação masculina. A descrição de Jeová (Deus) é uma reconstrução do Patriarca: bondoso, sábio e generoso com seus filhos, controlava todos os membros da família.

    Quando o Cristianismo se difundiu pela Europa, houve a fusão da tradição hebraica com as tradições germânica, grega e romana que também privilegiavam o poder masculino, pois os homens assumiam as atividades relevantes para a sociedade, e as mulheres dependiam deles. Houve aceitação plena da Bíblia Sagrada.

    Ela descreve a criação do mundo, apresentando uma ordem mestra que definia o lugar das coisas, a sucessão dos fatos e a hierarquia dos elementos. Tudo era perfeito com encadeamento adequado que finalizava no homem como criatura máxima, pois esse ser era constituído por uma parte material e outra espiritual, representando a síntese das coisas criadas e, por conseguinte, o poder divino. Isso lhe permitia sobressair-se como filho de Deus.

    A perfeição da criatura humana adequava-se ao local onde vivia: o Paraíso. Tal proeminência, entretanto, isolava-o, porque as outras criaturas estariam aquém das suas qualidades; por isso, Deus providenciou-lhe uma companheira, mas ela seria apenas um complemento ou uma ligação da criatura-síntese da matéria com o espírito, porque surgiu a partir da costela do homem. Haveria assim uma dependência intrínseca da segunda criatura ao legítimo representante do poder divino. Ou seja, ela não teria existência própria e seu corpo seria uma extensão do corpo do companheiro.

    Isso marcou nossa cosmologia e o homem assumiu autoridade absoluta diante da mulher. Ele pode usar o corpo da esposa como lhe convém, enquanto preserva sua autonomia para buscar outras parceiras. Por outro lado, se ela copula com outro homem, o corpo do marido é violado; logo, ele pode matá-la para eliminar a parte maldita que o incomoda.

    Outro ponto importante refere-se à serpente que induz a mulher à desobediência da determinação divina. Trata-se de um ser ambíguo, porque não apresenta as características básicas de sua classe, confundindo os sistemas de classificação: é um animal que não tem pernas. Muitos povos acreditam que as mulheres também não se ajustam às categorias taxonômicas dos seres humanos e tumultuam a ordem cósmica ao atualizar em seu corpo processos naturais como menstruação, gestação, parto e amamentação, saindo do mundo da cultura e retornando ao mundo da natureza.

    Destacando essa proximidade entre os dois seres ambíguos, o mito retrata a crença de que mulheres e serpentes são seres perigosos; podem, portanto, provocar um mal intenso à sociedade que é um universo masculino. Isso se transformou em mensagem que norteou as relações de gênero no Ocidente: a mulher foi a fonte de desgraça do homem, provocando sua expulsão do Paraíso. Logo, deve permanecer sob vigilância permanente, para que não tome decisões que venham comprometer novamente o bem-estar social. E

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