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Aquele Lustro Queer (2015-2020)
Aquele Lustro Queer (2015-2020)
Aquele Lustro Queer (2015-2020)
E-book1.059 páginas8 horas

Aquele Lustro Queer (2015-2020)

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Sobre este e-book

Depois de “Uma Década Queer (2015), eis o regresso a um tempo-espaço “queer” em língua portuguesa. “Aquele Lustro Queer” regressa às entrevistas em 2021 (aliás, duas inéditas: Judith Butler e Conchita Wurst) e antologia também reportagens, crónicas e resenhas de 2015 a 2020. Cinco anos de entrevistas, crónicas e reportagens, agora reunidas em livro. Um todo de fragmentos que perscrutam personagens de centro e periferia. Há passagens inéditas, ecos da noite e da rua. Cruzam-se artes, políticas, negócios, teorias, sexualidades. Algumas notas de escândalo ou poesia. Tudo imagens que apontam um mundo queer — seja ou não essa a identidade de quem aparece. O retrato será o que o leitor quiser encontrar.

Bruno Horta é jornalista e vive em Lisboa. Escreve na imprensa sobre cultura e direitos humanos e vê o jornalismo como técnica narrativa.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de set. de 2021
ISBN9781005436292
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    Aquele Lustro Queer (2015-2020) - Bruno Horta

    Aquele Lustro Queer

    (2015-2020)

    Bruno Horta

    Prefácio de João Alves da Costa

    INDEX ebooks

    2021

    Ficha técnica

    Título: Aquele Lustro Queer (2015-2020)

    Autor: Bruno Horta

    Prefácio: Saúde Mentol a Remos Numa Chalupa até Cacilhas, de João Alves da Costa.

    Capa: Helena Soares, a partir da fotografia A não-história de um chofer de Alair Gomes, datada de 1975 e pertencente ao Acervo da Fundação Biblioteca Nacional - Brasil.

    Revisão: João Máximo e Luís Chainho.

    Nesta edição, não se utilizou o Acordo Ortográfico de 1990 por opção do autor.

    Data de publicação: 6 de Setembro de 2021

    Edição 1.02 de 4 de Outubro de 2021

    Copyright © Bruno Horta, João Máximo e Luís Chainho, 2021

    Todos os direitos reservados.

    Esta publicação não poderá ser reproduzida nem transmitida, parcial ou totalmente, de nenhuma forma e por nenhuns meios, electrónicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, digitalização, gravação ou qualquer outro suporte de informação ou sistema de reprodução, sem o consentimento escrito prévio dos editores, excepto no caso de citações breves para inclusão em artigos críticos ou estudos.

    INDEX ebooks

    www.indexebooks.com

    indexebooks.com@gmail.com

    www.facebook.com/indexebooks

    Lisboa, Portugal

    ISBN: 978-1005436292 (ebook)

    A via racionalista não é a única via do conhecimento. Existem outras formas de inteligir, de conhecer e de sentir, como a intuição, a imaginação e a paixão. Os modelos estreitos do conhecimento racionalista levaram-nos a um mundo em que é difícil habitar, um mundo programado, previsto, raciocinado, matematizado. Uma forma de os indivíduos se salvarem é encontrarem em si formas de paixão, de sonho e de libertação da subjectividade.

    Natália Correia, 1983

    Prefácio

    Saúde Mentol a Remos

    Numa Chalupa até Cacilhas

    Um padre, uma costureira e clientes de

    galão com cheirinho — o alvo prioritário

    das vacinas Mega-Bass,

    antes de hospitais em colapso.

    João Alves da Costa

    A odisseia das vacinas em Portugal...

    O Killing-Manjaro dos Hot-Dogs

    Em Pastelarias Imunizadas de Casinos Clandestinos

    Entre resmas de tópicos queer, acidentadas pradarias de estilo de vida diferente, igual, excêntrico e politeísta, em cubos onde correm montanhas e vales, picos killing-manjaros e vertentes voyeur, atoladas de Afrodite nos mamilos, silicone nos vales, ofertas de ancas falsas em desenhos que evidenciam deuses pagãos, monóculos de Vautrin, senhoras de rimmel chinês, gotejando nas Termópilas do Chiado, ex-alfarrabistas de horas sem venda, postigos expostos de rostos corroídos de bacalhau salgado, bâtons efeminados must, insinuam-se um homem, uma mulher, um trans, um chupador, a língua da ostra em Calais, no fetiche do salto alto, em pardas paradas gay coloridas a arco-íris.

    — Quem tem horas, segue-me...

    — Quem não tem relógio (o tempo existe?), não fique em casa...

    — O vírus, a solidão, o abandono, a velhice são todos gay?...

    Tudo bibliografia codificada em escolhas de afectos, cruzadas épicas ditadas pelo verso das correntes, na asa dos pássaros peregrinos. Compostela, Chaucer, Babel, Fátima, Lourdes, estalagmites de seios serenos como romãs na diversidade de potros aprendendo a trotar memórias, o carrocel de Sin-de-rella na vertigem de Ligações Perigosas, Últimos Tangos interpretados por robots, gloryholes, cintos de castidade, mapas de castigos, pedidos timbrados de humilhação e devoção, desejos de escravatura em mapas urbanos e periféricos, lagoas de masturbação e mijo, coados no mesmo cerelac de homens grávidos, mulheres milky, viados anões em cada falsos alugáveis. Madrid, Astúrias, Paris, Provence, Normandia, Milão, Verona, Nápoles sem... Maradona, Zagreb, Corfu, Timisoara, Genéve, Kiev, Moscovo e, para além da pobre Europa, Marrakech, as árabes de chicote, os faraós do Egipto, Lima (Peru), São Paulo, Rio, Amazonas, Nassau, Banguecoque, Filipinas, Maldivas, Nairobi, São Petersburgo, Chile, México, Ho Chi Min e... pelos rios acima... Tejo, Douro, Tamisa, Pó, Guadalquivir, as fragas dos Balcãs, Lagoa dos Patos, Guaíba (Rio Grande do Sul), Los Roques (Venezuela), Niagara (Canadá), Cataratas do Iguaçu.

    Conta-me a minha mulher gaúcha, Adriana, que, em 1500, à chegada dos bandidos portugueses, as nativas tomavam, despidamente, dez banhos por dia, em Porto Seguro, na Baía, embora, nos dias de hoje, em motéis alugados, possam passar esse índice.

    Os loiros latinos, fora das galés, desejam ser enrabados, talvez em idêntica simetria com o que Gil Vicente contava, no Auto da Índia, que as suas ditosas mulheres barregãs os haviam já atraiçoado com novos mareantes, donos de oficinas, ferradores de cavalos e não menos cruéis do que D. Pedro I, ciumento pelo seu escudeiro, antes de esquartejar a bela D. Inês de Castro.

    Que se saiba, Fernão Lopes nunca descreveu o Cerco de Tróia, o perfume de Ulisses perante Helena, a vingança de Messalina, ou o nariz de Cleópatra, com que enfeitiçou Marco António.

    Luís Vaz de Camões nunca referiu no canto X de Os Lusíadas quanto custava a via verde para a Ilha dos Amores. Sabemos, tão somente, que a única mulher sempre fiel a Bonaparte foi a polaca Josefina.

    E, hoje em dia, em plena pandemia, documentos secretos asseguram que o presidente Marcelo votará nele próprio, nas próximas eleições presidenciais, assim como Tino de Rans será supremo na área de Penafiel. E, no Brasil, quando da fuga da Corte Real, temerosa das invasões napoleónicas, costumava ser apelidada Rainha Louca (Carlota Joaquina, de seu nome) ao fugir, rasgando as suas vestes pelas ruas e os escravos atrás dela, para minimizarem os estragos da cenografia não ensaiada.

    No Telejornal da noite de hoje, mais de 50 ambulâncias concentram-se no hospital de Santa Maria, recebendo uma garrafa de água e um pacote de bolachas Maria, compartilhado com os doentes.

    Portugal continua real. Nove séculos de apagada e vil tristeza. Esqueça-se a guerra colonial e os petiscos da Inquisição. Desconheço por que razão o Bruno Horta se inspira em mim. E fico quase envergonhado. Mal de mim se falo no Infante Santo, no padecimento crónico do cristão-novo Fernão Mendes Pinto. E a expulsão de Francisco Manuel de Mello, a tortura de Rodrigues Lobo. Jorge de Sena emigrou para a Califórnia, para comprar pipocas? Rodrigues Miguéis, idem aspas, aspas, mas na Big Apple. A infelicidade de Fernando Pessoa foi a de ter preferido o idioma português? Em inglês, na escola do Cabo da Boa Esperança, pareciam o Bob Dylan e o John Lennon.

    Porca miséria. Va te faire foutre. Go fuck yourself, guy. O escritor inglês D. H. Lawrence (Women in Love) lixou-se por muito menos, o Dostoievsky acabou na Sibéria, por motivos pueris. Eça de Queirós detestava Cuba pelo calor de ananases. Mas na festa de swingers, em Honolulu, quem se despe na cabina de quem? Se me vou casar com quem acordo: um negro com mamas de Gauguin e pirilau hermafrodita. Imaginário, colosso de James Fenimore Cooper, fronteiras de homens-mulher, voz de Demi Moore, propostas indecentes. Com e sem pijama Armani, Versace e Gabbana. Num terraço Cavalli, em Miami.

    — Puta madre...

    Por outro lado, em cada minuto no meu cronógrafo de titânio e oiro suíço, recebo na Inbox do meu gmail cerca de centena e meia de sites, tais como:

    — Sou chinesa e fui posta fora de casa, por não concordar com os negócios de meus pais...

    — Sou ucraniana e jogo boxe no rink. Estou farta de vencer e gostava de o conhecer pessoalmente para o sentir vencer-me...

    — O meu marido foi descoberto pela minha filha com um homem na nossa cama...

    — A minha amiga caliente convida-nos para um jantar a três numa boîte de ritmos africanos. Pena que o marido dela se tenha atirado da janela... O kuduro e a kizomba fizeram dele um pedaço de sangue no capot do automóvel do vizinho...

    — Sou da Guiné, mas procuro homem branco para matrimónio, mesmo com dote mais pequeno, eu finjo dormir e, assim que o apanhar no oitavo céu, saio de casa e só volto de manhã. O meu filho, não o dele, fica nos lençóis refinados e aquecidos do meu amante... e bico calado, porque sem tempo extra, o meu corno não se aguenta com uma, se a minha melhor amiga mantiver o cinto de castidade dele on e a respectiva chave no artelho... Ele apaga-se enquanto nós nos enrolamos como serpentes do Nilo...

    Mas morrem como? Sim, os que não se apagam nos hospitais, nas aldeias desertas, nos montes alentejanos povoados pela velhice, solidão abandonada das tavernas, já sem aguardente. Mortos pela pobreza e abandono dos filhos emigrados para abastança da pandemia, festejando a ceia de Natal com vírus e saudades sem prendas e laçarotes.

    — Como não há camas nos hospitais, há quem morra em casa...

    E entram os aviões militares para doentes sedados. Alguns acordam em Timor e querem fugir sem apoio do Xanana...

    Acontecem cenas de sexo grupal no Norte, de Valongo até aos futebolistas do Moreirense, em Albufeira, que jantam em grupo, a horas proibidas. E acontece cá e lá. A mulher de Cristiano Ronaldo festejou os seus anos no Vale de Aosta, na neve italiana, a 130 km de Turim, aliás, interdita.

    E eu como faço? Confinado, muito, talvez, pouco ou faz de conta? A TV somente dá números de óbitos, cuidados intensivos em Óbidos, enfermarias que alastram do Douro ao Guadiana. Publicidade de tampões menstruais, a inspiração de Aquele Lustro Queer, de Bruno Horta, em home teletrabalho, lutando contra a esperança da Cultura lusitana.

    A minha mulher aquece-me a água para o saco. E, para além da Mariana Águas, na CMTV, há novelas, o Eixo do Mal, o Expresso da Meia-Noite, o comentário económico de José Gomes Ferreira e O Governo Sombra.

    De resto, o confinado provou o queque de farinheira, da pizza, e acabou com os seus sintomas de isolamento. Pegou numa arma, pensou e disparou contra o ecrã da televisão.

    Portugal continua dentro de momentos.

    Hijacking da múmia de

    Tutankhamon no Cairo, dos

    pergaminhos de Ramsés II e Nefertiti

    em Abu-simbel pelas

    tripulações da TAP e zelosas bilheteiras da

    CP em Coimbra B

    O milagre da multiplicação de vacinas em Setúbal, Funchal. Hijacking da múmia de Tutankhamon no Cairo, dos manuscritos de Ramsés II e Nefertiti, em Abu-Simbel, por tripulações da TAP e por zelosas bilheteiras da CP em Coimbra B, que geram vacinas em Canaã. Pilotos e hospedeiras, caixas registadoras em Camarate, comensais a fugir pelos canos — tudo é Portugal (no seu melhor-pior).

    Igrejas perigosas, cultos satanistas, o pai pornógrafo que mostrava imagens das filhas a noivo casamenteiro, a falta do Cabaret da Coxa e da equipa do Herman, Monchique e Ana Bola, nos estilhaços da sala da televisão. A linguagem off-line, as festas privé das pets da Penthouse.com, na Ásia, Filipinas, as hookers texanas que vendem ice cream nas palmeiras da troca de casais.

    — A minha mulher de Denver procura homem, de pénis enorme, enquanto o meu marido filma...

    — Quem fala mal de trios com dois homens e duas mulheres... e cheerleaders...

    Fetlife.com, no Canadá (mensagem) — as bailarinas de Hong Kong e Las Vegas — bdsm em Alt.com — relações adultas em AdultFriendFinder.com — centenas de sites, com realce para o Brasil, França, Inglaterra, Alemanha, Itália e Oriente (Tailândia, China, Singapura, Hong Kong, Macau, Bali, Indonésia e passeios de barco pelas Filipinas). As alegres primas de Manila, Cebu; os tesouros dos barcos afundados no Mar Vermelho, as caçadas em Mombaça, as rameiras de Mumbai e Deli, Goa; Camberra e Auckland, Java e Saigão, Ho Chi Min. Festas ilícitas com mordomo, mais de vinte pessoas, em Vilamoura.

    E os homens que amam homens? As mulheres que seduzem senhoras? Os grupos de sissies, switchers, os casais-fantasia tornados realidade, mediante a ficção, não-ficção.

    — Não te esqueças do bronzeador, nem das palavras-cruzadas...

    Hamburgo, Porto, Amesterdão, Cannes, Basileia. O novo jogo sexual vai principiar. E o show das lady-boys? Em alta nas apostas e na Bolsa.

    Mer-ci = mère = si

    Pastelaria legal no Porto recebe vacinas entre brioches. PAN publicita tauromaquia, em Albufeira, a meio de largada de bois com estirpe britânica (covid-19), a meio de um breakfast de bacon e eggs em pubs onde se ouve Cliff Richard e Twist and Shout, Cilla Black e Tom Jones, Manfred Mann e Herman's Hermits. The Rolling Stones e The Who.

    Também, em Fortaleza (Ceará) incautos turistas de Portugal, atraídos pela ginga das coxas, corriam para os bares atrás de mulheres que metiam nos copos uma mistura de droga da violação — misturada na bebida, igualmente chamada Boa Noite Cinderela, um processo iniciado nos Estados Unidos e, depois, Inglaterra, praias, raves, etc., estoirando nos anos 90 do século XX e alastrando pelo mundo, pelas danceterias, com jovens bonitas e vulneráveis.

    Em Portugal havia voos fretados, recepções à espera, navios, também, onde os empresários nem chegavam a ir ao hotel, o engodo pelas mulheres fez com que muitos tenham desaparecido, e alguns sendo encontrados, enterrados vivos, em praias. Alguns, os mais afortunados, eram submetidos a intervenções cirúrgicas para extracção de órgãos vitais (rins, etc.), e, acaso as meninas desses homens tivessem piedade, no acordar deles, iam à casa de banho, onde estava o número de telefone de emergência, para salvação iminente.

    Quem encomendava esses raptos e tráfico de mulheres árabes? Alemães, japoneses, americanos, turcos, suíços, árabes, japoneses, todos muito endinheirados. Ligações Perigosas de menta e mentol, suaves ou não, mas reais. Na febre mundial, trinta anos antes desta covid-19 e que, também, envolveu meninas das ex-colónias portuguesas (S. Tomé e Príncipe, etc.).

    Foi-me dada a hipótese financeira e temporal de partir um ano para a Amazónia e arrefecer a cabeça em fogo. Depois, voltaria e tudo bem.

    — Não me estou a ver um ano com os insectos da Amazónia... Não, obrigado.

    — Se sobreviveres, se voltares, se escreveres e tiveres experiências novas... voltas e tudo bem!

    — Não, obrigado. Eu até pagaria para nunca ir para Angola, Moçambique e Guiné. Cabo Verde e Macau nunca foram hipótese.

    Recordo o meu pai, no jantar das folgas, durante a refeição:

    — E se eu me calasse, João Manuel...

    A minha mãe, Corina, que poucos conheceram:

    — Não vale de nada seres viajado e culto, honesto e trabalhador como o teu pai. No fundo, é sorrir e andar para a frente no mundo da traição e putaria... Isto é tudo sorriso, traição e putaria...

    O meu pai pediu licença para se ir deitar.

    — Vou ali ler um bocadinho de costas...

    O Festival da Eurovisão seria na noite do próximo sábado.

    — João Manuel, quem são as Doce...?

    A minha mãe ficou sem resposta.

    A CNN nos hospitais portugueses a respeito dos hospitais assoberbados pela pandemia e aflições clínicas, limites humanos. Uma sugestão culinária. Mercearias, pastelarias e pequeno retalho — vacinação massiva entre broculi, tostas e peixe congelado. Os médicos alemães e austríacos já cá estão, a par dos funchalenses, italianos e, até, quem sabe, de russos e chineses.

    O meu pai resmungou:

    — Não te metas com a tua mãe, alguém tem de trabalhar neste país (Portugal)... Além disso, quem não sabe fazer mais nada, faz crónicas de futebol...

    Em São Paulo, a festa do Palmeiras na glória do Abel Ferreira, sucedendo a Jorge Jesus, no Flamengo, era a prova de como o povo brasileiro festeja a pandemia e a restrição pessoal de modo ignorante (pessoal e gregário).

    Entretanto, o Luxemburgo e a Galiza, igualmente, ofereceram ajuda clínica. E de Telavive, Israel, chegou-me uma mensagem de uma bela mulher, mãe de dois filhos, e sexo masculino, evocando o seu endereço de e-mail. Mulheres-homem não faltam na internet global. Comovente a sua bio:

    — Nem quero saber se o homem e/ou mulher que procuro são casados; ignoro o dinheiro que terão no banco, desejo uma vida estável.

    Vacinas ilegais em Famalicão, fronteiras e aeroportos fechados, festas públicas em Lisboa, com música aos berros, álcool e meninas, manequins em lingerie. Ça va jolie.

    Um engano no cemitério, um morto é enterrado que acaba vivo. E outro (alguém) que faleceu, mas nem o sabe. As trocas (e baldrocas) do normal ilegal. Desde as filas para a Expo-1998 que nunca se viu tanta mulher de barriga e macho doentinho. O português cultiva no seu ADN a burla e a ausência de estruturas. A golpada, o desejo do ilícito na trova habitual de inimigos que se amam e desprezam. Como irmãos gémeos, ateus descrentes que lavram a ignorância, o improviso secular do savoir faire. Um país dominado por acomodados arrivistas conformados com o destino. À espera de um Godot que teima em colocar o letreiro Volto Dentro de Momentos. Entretanto, a espera é incessante como um casulo permanente de abelhas. Burlões e traficantes analfabetos digitais = os novos Vencidos da Vida, a corja do Eça, no 202 de Paris, em A Cidade e as Serras.

    Lisboa, 29 de Fevereiro de 2021

    Aquele Lustro Queer

    Valentim de Barros, o bailarino a quem roubaram a vida

    O bailarino português Valentim de Barros morreu a 3 de Fevereiro de 1986. Tinha 69 anos e passou quase quatro décadas encarcerado no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa. Teve aulas de dança no Teatro Nacional D. Maria II, foi estrela cadente em palcos de Barcelona, Berlim e Estugarda, assistiu à ascensão dos nazis na Alemanha e chegou a ser preso pela polícia política em Portugal. Um dia, apagaram-no da sociedade. A vida diletante, o incerto fetiche pelo travestismo, a homossexualidade e os excessos da sua personalidade podem ter sido os motivos. Foi internado, operado ao cérebro, depois transferido para uma ala de segurança. Alimentou-se das memórias dos breves anos em que dançou. Mais tarde, a única afeição que conheceu foi a de médicos e enfermeiros. Chegou a ser entrevistado pelo Diário de Lisboa e pelo Expresso. Vem a morrer doente e abandonado num quarto de hospital. Maior que a vida, a história de Valentim é aqui reconstituída pela primeira vez na íntegra, com base em documentos inéditos.

    Mãe

    Lavra a I Guerra Mundial há dois anos quando Ana da Encarnação dá à luz o oitavo e último filho. É a 11 de Novembro de 1916, tem ela 29 anos. O bebé recebe o nome do avô materno, Valentim, e marca a renovação da vida numa casa que a morte visitou três vezes. Ana da Encarnação, de apelido Monteiro Figueiredo, perdeu três filhos. Joaquim não resistiu a ataques epilépticos. Amélia sucumbiu à febre tifóide, provavelmente durante o surto que atingiu Lisboa em Outubro de 1916. António foi arrasado por uma bronquite capilar.

    Agora nasce Valentim, saudável e encantador. Não está sozinho, há outros irmãos: Maria, António, Ester e José, nascidos por esta ordem. A família habita o número 96 da Rua da Boavista, em Lisboa. É a época em que os homens não saem à rua sem fato, gravata, chapéu e bigode; as mulheres, sem longos vestidos; uns e outros de cores fechadas. As tropas portuguesas estão prestes a entrar na I Guerra e a cidade assiste a fúnebres paradas militares na Baixa e na Avenida da República. Na Rua da Boavista, o pequeno Valentim eclipsa atenções.

    Era o rapaz mais bonito que tenho visto, fisicamente era um Adónis, descreverá a mãe a um médico, anos mais tarde, quando o filho é internado no Hospital Miguel Bombarda. Era uma verdadeira estampa. As raparigas beijavam-no por prazer. Havia famílias amigas que o levavam para casa às semanas inteiras só para terem o prazer de o admirar. Ana da Encarnação tem um carinho extremoso pelo rapaz, amamenta-o, cuida-o, narcisa-o. À medida que cresce, o que ele faça será bem feito. Até ao dia em que é ela a entregá-lo a um hospital psiquiátrico, talvez vencida ou iludida. Mas isso será apenas em 1939.

    Para os arranjos da casa e trabalhos femininos, não há ninguém como ele, contará Ana da Encarnação. "É capaz de fazer os desenhos para o mobiliário e decoração de qualquer casa. Sabe fazer rendas, toalhas de mesa, guardanapos, naperons, colchas de filet e bordados." Cedo, também, descobre Valentim o prazer da dança. Organiza demonstrações em casa para os amigos da sua idade. Um bailarino de nome desconhecido, homem feito, será visita assídua de casa a pretexto de ensinar o miúdo a dançar, tem este 14 anos. Terá sido um erro.

    É aquele bailarino quem lhe mete o vício no corpo, acredita a mãe. Os dois fechavam-se numa sala durante horas e lá dentro faziam o que lhes apetecia, lamentará, anos depois, e enquanto o faz reúne evidências do que sempre soube e não quis ver: As minhas filhas não gostavam dele, ele às vezes roubava-lhes os namorados. De Ana da Encarnação nada mais se sabe, apenas que se separa do marido em data incerta.

    Pai

    Joaquim José de Barros nasce numa família pobre a 18 de Setembro de 1882. A infância em Paço de Arcos perdeu-se no tempo. O que se sabe com segurança é da vida profissional de sucesso, timidamente iniciada com um curso técnico na Escola Prática de Telegrafia, em 1901, e um posto na Administração-Geral dos Correios e Telégrafos. Nunca parou de estudar. Fez um curso no Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, em Lisboa, e em 1923, aos 41 anos, concluiu uma licenciatura em Ciências Histórico-Naturais, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Estagiou no Museu Botânico da Universidade de Berlim. Apresentou a tese de doutoramento em 1934, sob o título Sociologia Botânica: Métodos de Investigação Florística. Vem a morrer subitamente, de causa incerta, a 15 de Junho de 1938. É então um respeitado professor-assistente de biologia na Faculdade de Ciências. Os meios académicos portugueses reconhecem-lhe méritos e disso faz prova o extenso obituário que o livro da Sociedade Broteriana de Coimbra, de que Joaquim José de Barros fazia parte, lhe dedica no ano seguinte à morte.

    São enormes as semelhanças físicas entre Joaquim e o filho Valentim: em ambos o olhar firme, a testa saliente, o nariz grego, os lábios desenhados. No mais, uma distância. Joaquim é um intelectual, Valentim mal acaba o primeiro ano no Liceu Passos Manuel, em Lisboa. Na vida do filho, Joaquim é a figura mais presente de tão ausente.

    Sexo

    A sexualidade de Valentim de Barros vai ser a questão mais importante da sua vida, causa da perseguição que lhe vão mover e possível origem da personagem pícara que por vezes assumirá — cabotino, temerário, excessivo. Cedo inicia a vida sexual, logo aos 14, com um homem mais velho que aqui se identifica como G.P. Conheci-o em Paço de Arcos. Ensinava-lhe natação e ele ensinava-me boxe e cultura física. Era empregado no Ministério do Interior e gostava muito de andar comigo, dizia que eu tinha um corpo muito elegante. A esposa dele tinha muitos ciúmes meus, mas ele só gostava de andar comigo. Fui amante dele. Nunca tive ninguém de quem gostasse tanto como do [G.P.], nunca tive dedicação Maior. Durou até aos 20, quando fui para a Espanha como bailarino, contará Valentim em 1939, durante o exame psiquiátrico no Hospital Miguel Bombarda.

    A relação começara em 1930, ano em que o falsário Alves dos Reis é condenado a duas décadas de prisão, ano em que Marlene Dietrich brilha em O Anjo Azul, ano em que o quarto aniversário do 28 de Maio é celebrado na Avenida da Liberdade. Em Lisboa, Valentim tem o papel principal no filme da sua vida. Nos próximos nove anos, vai conhecer o triunfo e a capitulação. Mas por enquanto estamos só em 1930.

    O [G.P.] era muito meu amigo, tinha-me por conta num quarto e sustentava-me. No entanto, eu também trabalhava. Pintava quadros a óleo, fazia reclames para os panos de boca dos teatros e cinema, dava lições de ginástica a alunos particulares. Uma vez tive um esquentamento no ânus. Suponho que foi ele que me contagiou. Andei imenso tempo a tratar-me no Hospital do Desterro. Quando voltei da Alemanha soube que ele tinha morrido, fiquei inconsolável.

    Na anamnese de 1939 o médico pergunta-lhe se não voltou a ter outra afeição e Valentim discorre longamente sobre o assunto. Tive logo a seguir o A., de quem ainda gostei mais. Era mais inteligente e tinha um membro mais avantajado que o [G.P.]. Quando ele se servia de mim, agarrava-me ao colo e atirava-me para cima da cama como quem atira com um boneco. Depois saltava para cima de mim como se fosse de uma mulher. O A. tinha um barão muito rico, que foi quem lhe arranjou o lugar no banco Fonsecas, Santos & Viana. O barão tem grandes haveres em Vila Franca de Xira e arredores e é um empregado superior do banco. Eu tinha outros amantes, avulso ou permanentes. O J.H., desenhador, tinha por mim uma paixão abrasadora. Ficávamos ambos nus, eu tinha uma cinturinha muito elegante, ele levantava-me no ar pela cintura, cheio de desejos, e então, loucos de prazer, começava a luxuriante cena. O C., empregado na [loja de frigoríficos] Frigidaire da Avenida da Liberdade, era muito bem formado de corpo, alto, elegante. Amantes avulso tive poucos, os habituais absorviam-me todo o tempo. No meio teatral era muito perseguido tanto por homens como por mulheres, mas eu não cedia. Uma vez, no Porto, por ocasião da Exposição Colonial, o R.C. entrou no meu camarim, começou a palpar-me as coxas e as nádegas e a fazer-me propostas libidinosas, mas eu não cedi.

    Dança

    Nas primeiras décadas do século XX, Lisboa é ponto de passagem das mais importantes companhias de dança. O Coliseu dos Recreios recebe os Ballets Russes de Diaghilev em 1917. A Companhia de Ana Pavlova apresenta-se em São Carlos em 1919. O teatro Éden acolhe a Troupe de Bailados Russos Eltzoff em 1925. E o célebre bailarino português Francis (Francisco Florêncio da Graça) estreia-se no Salão Tivoli em 1925 e mais tarde, em 1932, é aclamado no Politeama. Tê-lo-á Valentim visto dançar?

    Sempre teve tendências artísticas e principalmente para bailarino, dirá Ana da Encarnação. Aos 16 anos, torna-se aluno de Ruth Aswin, professora alemã de dança clássica que vivia em Lisboa. As aulas decorrem no Teatro Nacional D. Maria II, mas a família do jovem não está ao corrente. Ao descobrir, o pai pressiona-o para que largue a dança e outras práticas. Valentim não consente. Magica um lugar de liberdade. Um dia foge para Espanha, alegadamente contratado por uma companhia de dança. Tem 20 anos, corre o ano de 1936. Em Madrid, dança em boîtes sem nome, depois bate à porta do cabaret Barcelona de Noche e do Teatro-Circo Barcelonês. Faz danças de fantasia.

    A história, aqui, confunde-se, falhos os registos e incerto o curso dos acontecimentos à distância de oitenta anos. Muito mais tarde, a figura de Valentim vai fascinar dois jovens jornalistas que decidem entrevistá-lo: Luís d’Oliveira Nunes, do Diário de Lisboa, em 6 de Abril de 1968; e Maria João Avillez, do Expresso, em 10 de Maio de 1980. É com estes documentos que sabemos hoje mais pormenores da aventura do bailarino.

    Estala a Guerra Civil de Espanha. As embaixadas diziam para a gente largar aquele flagelo, só havia tiroteios, falta de alimentos, grupos de gente a zaragatearem-se por todos os lados, recordará no Expresso. Foi feito prisioneiro pelos republicanos. Conseguiu-se evadir deste cativeiro duma forma rocambolesca. Aproveitando a sua beleza e jeito para o travesti, refugiou-se num convento e conseguiu fugir, disfarçado de freira, conjuntamente com um grupo de membros da colectividade a que se recolhera, relata o Diário de Lisboa. Génova e Marselha são as cidades que se seguem. Por fim, chega à Alemanha. No ano anterior, Hitler recusara cumprimentar o recordista negro Jesse Owens nos Jogos Olímpicos de Berlim.

    Alemanha

    Berlim terá sido o primeiro destino alemão de Valentim de Barros. Estamos em 1937. Fui ao Teatro da Ópera de Berlim e falei com a coreógrafa. Ela viu-me dançar, gostou da minha técnica e da minha expressão. Ali fica por pouco tempo. Não tinha a técnica dos outros, justificará. Os arquivos da instituição foram destruídos em 1943 por bombardeamentos dos Aliados, pelo que a estância de Valentim permanece indocumentada. Dirá ao Expresso que durante essa fase conheceu Marlene Dietrich. "Era uma mulher muito vaporosa, usava lenços transparentes nas mãos, bebia champanhe na Friedrichstrasse, uma rua muito animada, com cabarets, luzes, muita alegria. São memórias feéricas que ele desfia com prazer. Diz também que chegou a dançar em castelos e palácios alemães. As senhoras estavam todas num luxo. Era tudo aristocratas, gente muito fina e muitas entidades. Às vezes o Hitler também ia. Nos jardins havia sempre um lago e quando nós dançávamos em cima de estrados os bailados que fazíamos espelhavam-se em cima da água. Era tão lindo."

    Em fins de 1937, registará o médico do Miguel Bombarda, passa três meses preso em Berlim (data que não deve corresponder à verdade, pois existem documentos oficiais sobre a presença dele em Estugarda entre Agosto de 1937 e Maio de 1938). Um bailarino agrediu-me e fui fazer queixa dele à polícia, aí retiveram-me durante três meses, dizendo-me que era para averiguações, e roubaram-me todos os meus haveres. Passa-se isto na prisão de Lichtenberg, na capital alemã. Davam-me uma comida que nem para porcos servia. Quando de lá saí parecia um cadáver, afirma Valentim, rematando com uma informação de monta: Isso alterou muito a minha saúde e os meus nervos.

    Dirá ao médico que depois é enviado para uma outra cadeia, em Hamburgo, e daí deportado para Portugal. O fio dos acontecimentos não deve ter sido este. Dirige-se, sim, para Estugarda e bate à porta do Teatro da Ópera. Torna-se ali bailarino do corpo de baile (não é solista) e sabe-se com segurança que chega a dançar As Criaturas de Prometeu, de Beethoven, e Petrushka, de Michel Fokine. Os homens do regime enchiam-lhe o camarim de flores e na sua mesa havia sempre champanhe, detalha o Diário de Lisboa. Data dessa altura a condecoração alemã que Göring, em nome de Hitler, lhe atribuiu. No ardor dos seus 18 belos anos Valentim haveria de ter em Göring, fundador da Gestapo e ministro do regime nazi, um ardoroso amigo, sustenta aquele jornal.

    Rescisão

    Os arquivos do Teatro da Ópera de Estugarda, intactos e legíveis, incluem o processo pessoal de Valentim, num total de 63 páginas. Não fica demonstrada a alegada proximidade a Göring, antes uma estada truculenta e breve do bailarino a quem chamavam Valentino de Barros. Entra a 1 de Agosto de 1937 e sai a 10 de Maio de 1938. São os anos da consolidação nazi — a Áustria vai ser anexada, a II Guerra é um caminho sem retorno. Valentim passa incólume, está num sétimo céu.

    A data de nascimento que figura em pelo menos quatro folhas do processo pessoal, 11 de Outubro de 1915, é diferente da data oficial de nascimento de Valentim, 11 de Novembro de 1916. Mas é dele que se trata. Um teste de ascendência ariana a que o bailarino é sujeito — condição indispensável para se ser admitido num teatro do III Reich — leva-o a preencher uma ficha com dados pessoais e aí se reúnem detalhes sobre os seus antepassados: José de Barros, comerciante de Paço de Arcos, e Maria Florinda eram os avós paternos; Valentim de Monteiro de Figueiredo, natural de Viseu, e Mariana Augusta Monteiro, os avós maternos.

    Mais tarde, ao médico que o observará no Miguel Bombarda, e a pedido deste, Valentim vai falar sobre as relações sexuais que manteve na Alemanha: Em Estugarda tive o R.W., professor de ginástica, era um rapaz bem desenvolvido, tipo atleta. Tive também o H., era dono de um estabelecimento de arte antiga, era fino, calado, delicado.

    O regresso de Valentim à capital portuguesa e o fim da ligação à Ópera de Estugarda aparecem justificados no Diário de Lisboa com o início da II Guerra e a turbulência política de então, mas o processo pessoal indicia que o seu comportamento disciplinar terá sido o verdadeiro fundamento. Os últimos meses de trabalho em Estugarda são um crescendo de problemas. A 21 de Abril de 1938 é avisado por carta de que será despedido se faltar outra vez a um show. Em Abril e Maio chega por três vezes atrasado, sem avisar. A 6 de Maio de 1938 a mestre de dança Lina Gerzer, figura de relevo na dança clássica alemã, queixa-se por carta de que Valentim recusa receber ordens de alemães e pretende Maior protagonismo em As Criaturas de Prometeu, pois acha que é um bailarino importante, que o público quer ver. A carta termina com a saudação Heil Hitler!, como era de uso, e alguma correspondência apensa assinada por Valentim utiliza a mesma fórmula.

    A 9 de Maio de 1938 é visto quase nu no quarto do chefe de orquestra do Teatro da Ópera de Estugarda, lê-se no processo. É despedido a 10 de Maio: Rescisão pelo empregador devido a negligência ao serviço. Acaba expulso da Alemanha por razões desconhecidas e vai ser repatriado a partir de Hamburgo, em Dezembro de 1939. A II Guerra tinha rebentado em Setembro, com a invasão da Polónia.

    PVDE

    Altura: 1,70 m. Cor: natural. Sinais particulares: tem duas pequenas cicatrizes debaixo do queixo. Assim aparece descrito Valentim de Barros na ficha número 10.988 lavrada em 1939 pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), força secreta criada em 1933 por Salazar, com âmbito internacional e funções de controlo das fronteiras. Na ficha constam três fotografias tiradas pela polícia a Valentim. São os três retratos típicos dos presos políticos do Estado Novo: a preto e branco, tipo passe, com a cara de perfil, de frente e a três quartos. Valentim tem 22 anos, está de semblante fechado e manifesta uma beleza discreta.

    A biografia prisional inclusa: Preso por esta polícia no Porto em 2 de Janeiro de 1939 em bordo do vapor São Miguel, vindo expulso da Alemanha. Restituído à liberdade em 25 de Março de 1939. Quase três meses de cárcere em Portugal. O processo 12/39, aberto na sequência destes factos, ostenta a acusação: Expulso da Alemanha e falsa identidade. Correspondência interna, apensa ao processo, oferece informações caricatas.

    Valentim fica na cela 5 da delegação do Porto da PDVE, no Largo Soares dos Reis. Tenta fugir a 8 de Janeiro, seis dias depois de ali ter entrado. Pede ao guarda Joaquim Matos para ir à casa de banho e ao ser-lhe aberta pelo guarda a porta do referido WC, já para sair, empurrou com tanta violência a porta que este não pôde evitar a fuga já premeditada, regista o tenente Manuel Magro Romão, director-delegado da PVDE. "Dado imediato conhecimento ao agente, ambos, bem como o chauffeur de serviço, correram sobre ele, tendo-o conseguido recapturar junto ao quiosque do Largo Soares dos Reis."

    Mais escreve o director-delegado que o Barros pretende fazer-se passar por alienado, levando dias e noites consecutivamente aos pontapés e socos à porta da cela, recusa toda a comida que lhe é levada, chegando por vezes a atirá-la para o chão. A 11 de Janeiro, o tenente Romão muda de opinião e deixa cair a ideia de loucura dissimulada. Envia um ofício ao secretário-geral da PVDE, em Lisboa, perguntando, a bem da Nação, o que fazer com Valentim, pois este nas suas atitudes vem dando sinais de demência.

    No dia anterior, 10 de Janeiro, o encarregado dos serviços de investigação, António Ródo, escreve num relatório: Apesar das várias tentativas feitas no sentido de averiguar dos motivos por que foi expulso da Alemanha o nacional Valentim de Barros nada de concreto se conseguiu apurar, em virtude de o mesmo dar indícios de alienação mental e não responder com suficiente clareza às perguntas que lhe são formuladas. Despacho: Seja presente ao Ex.º clínico da polícia. A 23 de Março, o tenente Romão escreve novamente ao secretário-geral da PVDE e deixa subentendido que Valentim foi considerado doente mental, logo, inimputável: Verificando-se do relatório médico-legal passado no Hospital Conde Ferreira que ao preso não cabe responsabilidade criminal, tenho a honra de o fazer apresentar a V. Ex.ª, a fim de ser entregue às pessoas de família que o mesmo possui nessa cidade.

    Vim para o Governo Civil de Lisboa, acompanhado por um agente da PVDE. Daí trouxeram-me para este manicómio Bombarda, recordará Valentim ao médico do hospital.

    Doença

    Cerca de 300 doentes dão entrada em 1939 e Valentim é um deles. O hospital é então conhecido como Manicómio Bombarda ou Hospital de Rilhafoles, do nome do convento que ali tinha funcionado até 1834. Há 92 enfermeiros e sete médicos. Um deles faz o exame psiquiátrico a Valentim. E deixa gravado: Cumprimenta-me à entrada, senta-se quando lhe ordeno. Modos afeminados, melífluos, dengosos, denunciantes da sua inversão sexual. Perfeitamente calmo, humor natural. Respostas adaptadas, longas, circunstanciadas, voz afeminada.

    A palavra homossexual tinha sido cunhada em 1848, ano por coincidência em que o Miguel Bombarda é instituído por iniciativa do presidente do conselho de ministros Duque de Saldanha. O impulso homossexual cria de antemão uma aversão ao sexo oposto, estabelecera o austro-húngaro Károly Mária Benkert nesse ano de 1848. A inversão sexual é uma doença tão digna de ser tratada como qualquer outra, escreve Egas Moniz na sua tese de doutoramento em 1901 — poucos anos antes de arrancar o ensino da psiquiatria em Portugal.

    Valentim dizia ter sido internado em Julho de 1938, aos 22 anos, mas não é de crer. Não só o regresso a Portugal está registado pela PVDE em 1939, como os seus primeiros assentos no Miguel Bombarda só a 18 de Maio de 1939 têm início. Nessa altura vive com a mãe, ou na Avenida de Berna ou ainda na Rua da Boavista.

    Antes de ser internado, terá tido alegados acessos de loucura. Um dia, agride a mãe e parte tudo em casa, lê-se no Diário de Lisboa. "Sonhava, em delírio, com a dança. Era o começo da loucura. Sonhava que era Nijinski e acomodava-se mal às realidades locais. A primeira cena com a mãe leva-o ao manicómio."

    Internado a 18 de Junho de 1939, tem alta a 25 de Setembro. Volta a ser admitido a 10 de Janeiro de 1940 e só sai a 9 de Junho de 1948 para ser sujeito a uma operação ao cérebro. Regressa logo a 24 de Junho, mas tem alta a 30 de Novembro. Toda a sua actividade está dirigida no sentido sexual, anota o médico do hospital, para quem a intensa vida sexual de Valentim seria patológica. Diagnóstico: Psicopatia homossexual e pederastia passiva. Adiante, uma nota: em criança teve um desenvolvimento somático e psíquico normal.

    Eu não sei… Trouxeram-me para o hospital por enfraquecimento, doença, falta de recursos. O meu pai deixou a minha mãe e foi viver com uma alemã, deixou-nos sem nada. Com a perda das minhas coisas, a morte do meu paizinho, comecei a sentir-me mal e a minha mãezinha pôs-me aqui, sustenta Valentim na entrevista a Maria João Avillez.

    Num texto de 2013, saído no catálogo de uma exposição dedicada a Valentim de Barros, Luís d’Oliveira Nunes, o jornalista que o entrevistou em 1968, não tem dúvidas em afirmar que o bailarino esteve em cativeiro forçado apenas por ser homossexual e imprudente ao manifestá-lo, dando largas ao fenómeno de travestismo.

    Leucotomia

    A 10 de Junho de 1948 — dois meses antes de se realizar no Miguel Bombarda o Congresso Internacional de Psicocirurgia, durante o qual Egas Moniz recolhe apoios para chegar a Prémio Nobel da Fisiologia e da Medicina, que receberá em 1949 com base na descoberta, em 1935, do método de leucotomia pré-frontal — Valentim de Barros é leucotomizado. Abrem-lhe orifícios no crânio com o fim de lesionar fibras nervosas do cérebro e assim reduzir a sua alegada agitação constante.

    A leucotomia tem valor terapêutico em certas psicoses, justifica o Comité Nobel em 1949, a três anos de distância dos primeiros medicamentos neurolépticos, ou antipsicóticos. Quanto se sabe e ficou escrito, o único diagnóstico que até 1948 lhe tinham atribuído era o de homossexual e a homossexualidade não era considerada uma psicose.

    O registo de entradas e saídas do hospital dá a entender que a trepanação (trépano é o outro nome da broca de perfuração) não acontece no Miguel Bombarda. Valentim sai a 9 de Junho e só regressa a 24. Poderá ter sido leucotomizado no Hospital Júlio de Matos, mas não é seguro. O médico que o acompanha desde 1938 deixa inscrita uma observação perturbante que contesta a necessidade da operação: Será o doente portador de qualquer psicose? Examinei-o cuidadosamente nesse sentido e cheguei a resultados negativos. Fiz-lhe um interrogatório apertado, mandei-o resolver vários problemas, submeti-o a vários testes e conclui que não tem psicose. Eu, que tenho acompanhado o doente desde a sua primeira admissão até agora, acho que não houve qualquer alteração da sua personalidade depois da leucotomia.

    O enfermeiro Silvino, assim identificado pelo médico, faz notar que o doente conserva a mesma actividade sexual antes e depois da leucotomia. Se dantes convidava os outros doentes para práticas homossexuais e se metia na cama com eles, depois da leucotomia faz precisamente a mesma coisa. Em contrapartida, já não agride o pessoal de enfermagem, é mais obediente e respeita mais as leis da casa.

    A 30 de Novembro de 1948, Valentim tem alta: Estado: melhorado. Regressará ao hospital em Janeiro do ano seguinte. Nos intervalos dos internamentos, terá trabalhado como bailarino do teatro Éden, mas, relata o Diário de Lisboa, as coisas voltam a complicar-se após uma cena violenta. Entrou travestido na casa de banho das senhoras e foi descoberto por uma das utentes que exuberantemente manifestou o seu pânico ao perceber que estava perante um homem. Acabou por ser agredida e Valentim deu definitivamente entrada no Miguel Bombarda. É a 21 de Janeiro de 1949.

    O psiquiatra Sobral Cid, director do Miguel Bombarda entre 1922 e 1941, fora um dos Maiores adversários das leucotomias. A história oficial do hospital destaca ter sido ali que se escolheram os primeiros doentes sujeitos a trepanações, mas Egas Moniz, sabe-se hoje através de cartas que enviou para o amigo e psiquiatra Walter Freeman (que em 1936 leva a leucotomia para os EUA e a transforma em lobotomia), teve a resistência de Sobral Cid.

    Carta

    Em data incerta da década de 1960, Valentim de Barros escreve uma carta cujo destinatário não se conhece. Apesar das passagens ilegíveis, da grafia antiga e da confusão de ideias, a mensagem parece ser apenas uma: ao falar dos pertences que lhe tiraram, Valentim grita contra a expropriação da sua identidade.

    «Lisboa, dia 2 de Novembro de 196[?]

    Havendo entrado para o Hospital Miguel Bombarda no ano de 1938 mês de Julho e depois de vários anos de internado havêr obtido alta médica definitiva para eu podêr conservar-me trabalhando na minha profição de bailarino de ópera (balet) e havendo-me ido a minha casa a polícia buscar-me de novo para êste hospital onde obedecendo ao rigoroso tratamento e electro-choques na 6ª enfª me mandaram para a 8ª enfª donde escrevo esta carta a V.ças Ex.as. Anotaram a roupa boa que eu trazia no corpo mas não (segundo me diceram na secretaria do hospital M.B.) um porta-moedas [?] cor creme com 430$000 dinheiro que me faz bastante [falta] para a minha vida aqui […]

    A polícia foi-me a casa buscar mandada pelo Dr. Fernando Ilharco ao hospital Júlio de Matos [?] de me haverem no Júlio de Matos operado a cabeça […] havendo eu ficado com dois côncavos [marcados] para toda a minha [vida].

    O Dr. Ilharco escreveu uma [?] para eu e minha irmã [?] (que foi quem me acompanhou na jornada) para entregar ao Dr. Amaral (director do hospital Miguel Bombarda nessa ocasião havendo falecido pouco tempo depois) e que nesse momento não estava de serviço no hospital, então o sr. Chefe Ferreira recebeu a carta que estava fechada e disse que o sr. Dr. Amaral não estava e deteve-me de novo para a enfermaria e opus-me mas em vão alegando que estava com alta definitiva passada pelo médico a minha mãe Dr. Sanctos Freitas.

    Fizeram-me entregar tudo que trazia incluso o porta-moedas com o dinheiro, que até hoje nunca mais vi, mais [?] enfermeiro chamado Carlos, [natural] de Mirandela que já não trabalhando cá no Miguel Bombarda vai para hanos. [?] peço a V.ª Exª. o favor de [?] deslindar este assumpto pois [custa-me] muito em cima de tudo [estar] sem aquilo que é meu. [?] Peço desculpa de só agora me queixar a V.ª Exª. disto.

    Se digne aceitar meus respeitosos cumprimentos e desde já agradeço respeitosamente.

    Bailarino,

    Valentim de Barros»

    8.ª Enfermaria

    Valentim passa pela 2.ª, 5.ª e 6.ª enfermarias do Hospital Miguel

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