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Pedagogia histórico-crítica: 40 anos de luta por escola e democracia – Volume 2
Pedagogia histórico-crítica: 40 anos de luta por escola e democracia – Volume 2
Pedagogia histórico-crítica: 40 anos de luta por escola e democracia – Volume 2
E-book377 páginas4 horas

Pedagogia histórico-crítica: 40 anos de luta por escola e democracia – Volume 2

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Sobre este e-book

"Na tragédia grega Prometeu acorrentado, o herói é condenado por Zeus, deus tirano, aos grilhões e à tortura. O crime cometido por Prometeu foi entregar aos humanos o fogo e o conhecimento. No livro do Gênesis, na Bíblia, Deus expulsa Adão e Eva do jardim do Éden por terem comido os frutos proibidos da árvore do conhecimento do bem e do mal. Na atualidade brasileira, o obscurantismo beligerante ataca diariamente professores, escolas, currículos, livros didáticos, cientistas, artistas, jornalistas, intelectuais de modo geral, e busca destruir as conquistas históricas das ciências, da arte e da filosofia. Mais do que nunca, mostra-se atual a tese de Dermeval Saviani de que há uma dimensão política intrínseca à especificidade da educação escolar, que consiste na socialização do saber sistematizado. Os textos reunidos neste volume são um convite à reflexão sobre as relações entre o ensino dos conteúdos escolares e as visões de mundo em choque no Brasil de hoje."
Newton Duarte, professor titular da Unesp.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de dez. de 2021
ISBN9786588717462
Pedagogia histórico-crítica: 40 anos de luta por escola e democracia – Volume 2

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    Pedagogia histórico-crítica - Ana Carolina Galvão

    Capítulo 1

    A APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA:

    CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

    ¹

    Adriana de Fátima Franco

    ²

    Fernando Wolff Mendonça

    ³

    Várias vezes ele me perguntava a meia voz, com cuidado: – Explique-me, irmão, como é que isso pode acontecer. A pessoa olha para esses risquinhos e eles formam palavras e eu as conheço, as palavras vivas, da gente. Como é que eu sei. Ninguém cochichou no meu ouvido. Se elas fossem desenhos, bem aí eu até poderia entender. Mas aqui é como se as próprias ideias estivem impressas… Como é que pode?

    [GÓRKI, 2007, p. 130].

    Como é que pode? Responder a essa questão é o que nos move. Desvelar a realidade objetiva para além da aparência do fenômeno, compreender suas múltiplas determinações. Não há magia, o comportamento humano pode ser explicado com a atividade, com a vida vivida. Mesmo o entendimento de uma função complexa e abstrata como a escrita se faz buscando sua gênese na história do comportamento. Para a criança, pode até parecer magia quando ela nos diz: Nossa, aprendi sozinha! ou Comecei a ler do nada!. A verdade, porém, revela um longo percurso. Diferentemente do ensino da linguagem oral, o ensino da língua escrita baseia-se em uma aprendizagem artificial e exige enorme esforço da criança e do professor. Enquanto a língua falada cria a cada minuto uma nova necessidade de diálogo, pergunta e resposta, a escrita introduz a criança a um plano abstrato mais elevado, e necessita de uma construção mais elaborada dos motivos e fins das ações envolvidas no processo (VIGOTSKI, 2001). Nessa direção, o objetivo desse capítulo é apresentar fundamentos para a compreensão da apropriação da escrita, bem como a necessidade do ensino organizado para que a mesma ocorra.

    As palavras vivas, da gente, expressão da personagem de Górki, remete-nos a pensar nos escritos de Vigotski (2001, p. 486): A palavra consciente é o microcosmo da consciência humana, é a palavra viva da gente, é o trânsito entre ideias. Ao discutir a escrita, Mendonça (2017) indica-nos que a palavra escrita viva torna possível ao homem realizar uma apropriação tal que lhe permite operar nas significações produzidas pelas palavras bem como nas relações que elas têm com a história cultural humana. Na acepção do autor,

    a linguagem escrita torna-se viva porque transforma o leitor em intérprete e produtor de linguagem para a sociedade, conseguindo apropriar-se das diferentes produções humanas e compreender as suas formas de produção [MENDONÇA, 2017, p. 58].

    Ao tratar da importância da palavra na obra de Vigotski, Martins (2013, p. 67) ressalta que o autor identifica na palavra o ‘signo dos signos’, isto é, a unidade de análise nuclear no estudo do comportamento complexo. Sendo assim, o caminho para entender o desenvolvimento do psiquismo humano deve passar, necessariamente, pelo estudo do pensamento e da linguagem. A esse respeito, Vigotski (2001, p. 398, grifo nosso) enuncia que

    Encontramos no significado da palavra essa unidade que reflete de forma mais simples a unidade do pensamento e da linguagem. O significado da palavra… é a unidade indecomponível de ambos os processos e não podemos dizer que ele seja um fenômeno da linguagem ou do pensamento. A palavra desprovida de significado é um som vazio. Logo, o significado é um traço constitutivo indispensável da palavra. É a própria palavra vista no seu aspecto interior. Deste modo, parece que temos todo fundamento para considerá-la como um fenômeno de discurso. Mas, como nos convencemos reiteradas vezes, ao longo de toda nossa investigação, do ponto de vista psicológico o significado da palavra não é senão uma generalização ou conceito. Generalização e significado da palavra são sinônimos. Toda generalização, toda formação de conceitos é o ato mais específico, mais autêntico e mais indiscutível de pensamento. Consequentemente, estamos autorizados a considerar o significado da palavra como fenômeno do pensamento.

    Em outro momento do texto, o autor afirma que:

    O significado da palavra só é um fenômeno de pensamento na medida em que pensamento está relacionado à palavra e nela se materializado, e vice-versa: é um fenômeno de discurso apenas na medida em que o discurso está vinculado ao pensamento e focalizado por sua luz. É um fenômeno do pensamento discursivo ou da palavra consciente, é a unidade da palavra com o pensamento [VIGOTSKI, 2001, p. 398, grifo nosso].

    Destacamos que, ao estudar o processo de significação pelo método de análise por unidade, Vigotski assinala que a palavra é a unidade do pensamento e da linguagem. Isso porque, segundo o autor, a palavra aponta a pré-história da linguagem e do pensamento; dito de outra forma, revela-se fundante das relações internas desse processo. Assim, considera o significado da palavra não só como unidade da generalização e da comunicação, mas também da comunicação e do pensamento. Vigotski (2001, p. 313, grifo nosso) sublinha que

    Até essa idade [escolar], através de uma linguagem de sons, a criança já atingiu um estágio bastante elevado de abstração em relação ao mundo material. Agora ela tem pela frente uma nova tarefa: deve abstrair o aspecto sensorial da sua própria fala, passar a uma linguagem abstrata, que não usa palavras mas representações de palavras.

    Salientamos que a escrita não reproduz o caminho da linguagem falada, entretanto será por meio da apropriação da palavra/conceito que surgirá a possibilidade de representação e, portanto, do desenvolvimento de ideia de algo. Martins (2013) assevera que pensar é movimentar ideias. Assim, a personagem de Górki (2007, p. 130) estava certa, é como se as próprias ideias estivem impressas. A compreensão dessa função psíquica passa pela necessidade de atentarmos para a escrita como uma dança de palavras coordenada pelo pensamento, sendo essencial para o professor o entendimento dessas funções ao longo da ontogênese.

    Voltemos aos primórdios da escrita. A escrita se inicia quando? Apenas quando a criança pega o lápis? Vigotski (1995) responde que a escrita inicia-se quando aparecem os primeiros signos visuais e sustenta-se na mesma história natural do nascimento dos signos. O autor acrescenta que "o gesto, precisamente, é o primeiro signo visual, que contém a futura escrita da criança como a semente contém o futuro carvalho. O gesto é a escrita no ar e a escrita é, frequentemente, um gesto que se fixou" (VYGOTSKI, 1995, p. 128, grifo nosso).

    Ainda corroborando Vigotski (1995), o domínio da linguagem escrita é o resultado de um longo processo de desenvolvimento das funções superiores. Em sua visão, apenas se abordarmos a escrita de um ponto de vista histórico, com a intenção de compreendê-la ao longo de todo o desenvolvimento histórico-cultural da criança, poderemos avançar para além das compreensões que limitam a trazê-la como ato motor específico, ensinando à criança apenas o traçado de letras e a escrita de palavras. O autor complementa que é preciso ensinar à criança a linguagem escrita e não a escrita das letras (VYGOTSKI, 1995, p. 203). Destacamos que essa tarefa deve estar presente ao longo de toda a educação infantil.

    Martins (2013) aclara-nos que o domínio da linguagem escrita representa o domínio de um sistema simbólico altamente complexo. Conforme a autora, a escrita edifica-se com base em processos de percepção, atenção, memória, linguagem oral, pensamento e sentimento. Para Vigotski (1995, p. 185, grifo nosso)

    O desenvolvimento da linguagem escrita pertence à primeira e mais evidente linha do desenvolvimento cultural, já que está relacionado com o domínio do sistema externo de meios elaborados e estruturados no processo de desenvolvimento da humanidade. Sem dúvida, para que o sistema externo de meios se converta em função psíquica da própria criança, em uma forma especial de seu comportamento, para que a linguagem escrita da humanidade se converta em linguagem escrita da criança, são necessários complexos processos de desenvolvimento.

    Quando a criança faz uso da palavra/conceito, tem-se a possibilidade da representação de algo. Esse momento marca o início de um longo processo que traz em seu bojo a possibilidade do desenvolvimento da escrita como ferramenta psíquica. O ponto de partida para a compreensão desse processo é a palavra – que é o signo dos signos –, mas será preciso explicitar como a palavra/conceito se edifica, como ocorrem as relações internas entre as ideias. Nesse âmbito, será necessário um ensino devidamente organizado, com vistas à proposição de atividades que promovam o desenvolvimento de formas complexas de comportamento. De acordo com Martins (2013), a seleção e organização do conteúdo escolar e sua forma estão relacionados ao destinatário que determina o grau de complexidade do conteúdo e condiciona a forma de realização do trabalho didático. Se prescindirmos da materialidade, cairemos em um verbalismo vazio. Essa afirmativa leva-nos a retomar as questões da periodização do desenvolvimento, destacando as ações e as operações do período escolar que corroboram o desenvolvimento da linguagem escrita.

    1. A PERIODIZAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO

    Ao tratar da periodização do desenvolvimento, Vigotski (1996) ressalta a importância de se considerar a situação social de desenvolvimento. Em outras palavras, é na vida que esse desenvolvimento ocorre. Leontiev (1978) expõe a categoria atividade para a compreensão desse psiquismo. De acordo com esse autor, pela sua atividade, os homens não fazem senão adaptar-se à natureza. Eles modificam-na em função do desenvolvimento das suas necessidades (LEONTIEV, 1978, p. 265). A criança inicia sua vida em um mundo cultural criado pelas gerações precedentes. Dessa forma, necessitamos considerar que, na atualidade, essa realidade se faz com base no capitalismo, por conseguinte, o psiquismo é um psiquismo de classe.

    Ao levarmos em conta que a criança não nasce com as funções psíquicas complexas ou tipicamente humanas desenvolvidas, são necessárias atividades que requeiram tal desenvolvimento, como defende Leontiev (1978). Nesse contexto, a forma como organizamos a vida trará impactos diretos na construção desse psiquismo. Vigotski apresenta-nos a lei geral do desenvolvimento das funções psíquicas superiores, em que a direção do desenvolvimento é do interpsíquico para o intrapsíquico.

    Quando Vigotski apresenta o conceito de internalização, assevera tratar-se de um processo complexo, que não ocorre da noite para o dia. Tornar-se intra significa tornar-se ferramenta do psiquismo e essa tarefa leva tempo e necessita de mediações. Desse modo, para compreender cada criança, precisamos analisar sua atividade nas mais diversas relações nas quais está inserida. No decurso do desenvolvimento, sob as circunstâncias concretas de sua vida, o lugar que a criança ocupa objetivamente no sistema de relações humanas altera-se. Não será qualquer atividade que promoverá o desenvolvimento, algumas atividades assumem um papel essencial, que guiam o desenvolvimento do psiquismo em um dado período, e são chamadas de atividade dominante ou atividade principal. Aqui as denominamos atividades guia. Pasqualini (2013) sublinha que a atividade em questão é aquela que guia o desenvolvimento em determinado período. Pensamos ser essa uma boa elucidação acerca do referido conceito.

    Precisamos ter claro que não será a idade da criança em si que determinará o conteúdo do estágio de desenvolvimento; mas, ao contrário, a idade depende do conteúdo a ser determinado pelas condições sócio-históricas. A mudança de uma atividade guia para outra marca a transição a um novo período. Por isso, ao tratar da estrutura e dinâmica da idade, Vigotski (1996) explicita duas teses: a primeira é a de que cada período de idade é único e possui uma estrutura determinada; a segunda diz respeito à dinâmica das transformações existentes ao longo do desenvolvimento ou à relação móvel entre as partes e o todo do psiquismo. O resultado é que o todo e as leis que regulam esse todo determina a dinâmica de cada uma de suas partes (VYGOTSKI, 1996, p. 262).

    Essa reconfiguração das funções psíquicas, tendo como diretriz uma que qualitativamente desenvolveu-se em dada etapa, é compreendida como a nova formação ou neoformação central daquele período. Podemos entender a neoformação como síntese complexa das funções psíquicas que se modificam ao longo do desenvolvimento. A dinâmica do desenvolvimento alterna fases estáveis e fases de crise. Nas crises, essa criança torna-se mais difícil de educar e isso se faz justamente pelas conquistas ao longo do período vivido. De maneira geral, o lugar ocupado pela criança nas relações sociais não a satisfaz, não corresponde mais às suas possibilidades e daí decorre a necessidade de mudanças. De acordo com Leontiev (1978, p. 295), surge uma contradição aberta entre o modo de vida da criança e as suas possibilidades que já superaram este modo de vida. É por isso que a atividade se reorganiza. Esses momentos de reorganização são marcados, inevitavelmente, por rupturas e saltos qualitativos no desenvolvimento do psiquismo. As crises estão diretamente relacionadas à organização e à condução do processo educacional. Há a passagem de uma atividade guia para outra e ambas respondem a uma necessidade interior e estão ligadas às novas tarefas postas à criança pela educação (LEONTIEV, 1978).

    Martins (2016, p. 22, grifo do autor) enuncia que o ensino é crucial nesse processo:

    Sem ensino sólido o pensamento não alça seus patamares mais complexos e abstratos, deixando de corroborar a formação de uma ampla consciência, posto que seu desenvolvimento é cultural, histórico e socialmente condicionado. A consciência supera, por incorporação, as bases elementares e estruturais do psiquismo – inclusive as orgânicas, e o núcleo dessa superação radica na formação de conceitos, que sintetiza em suas diferentes formas o movimento evolutivo do pensamento. A formação de conceitos, por sua vez, atravessa todos os períodos do desenvolvimento, e isso evidencia, mais uma vez, o papel da educação escolar junto aos bebês, às crianças, aos jovens e aos adultos.

    Destacamos dessa citação a necessidade de um bom ensino que promova o desenvolvimento do pensamento abstrato mediado pelos conceitos científicos. Como destacado no início deste texto, trataremos especificamente do período da idade escolar e sua atividade guia: atividade de estudo.

    2. A APROPRIAÇÃO DA ESCRITA: ESPECIFICIDADES DA IDADE ESCOLAR

    Na educação infantil, a fala interna está em desenvolvimento e somente com sua construção é possível o desenvolvimento da escrita. As investigações realizadas por Vigotski (2001, p. 312, grifo nosso) ajudam-nos a compreender a evolução da escrita:

    A escrita é uma função especifica de linguagem, que difere da fala não menos como a linguagem interior difere da linguagem exterior pela estrutura e modo de funcionamento. Como mostra a nossa investigação, a linguagem escrita requer para o seu transcurso pelo menos um desenvolvimento mínimo de um alto grau de abstração. Trata-se de uma linguagem sem seu aspecto musical, entonacional, expressivo, em suma, sonoro. É uma linguagem de pensamento, de representação, mas uma linguagem desprovida do traço mais substancial da fala – o som material.

    Salientamos que a possibilidade de abstração, no nível da citação referida, apenas será possível se a criança possuir um conjunto de condições psicológicas já trilhado, ou seja, se ela for capaz de abstrair, por meio da linguagem de sons, o mundo material. Para tanto, o trabalho do professor precisa centrar-se no processo de representação e possibilidades de desenvolvimento de conceitos, buscando gerar na criança, ao final desse processo, a necessidade de representar graficamente sua ideia. Só assim o processo de alfabetização terá sucesso. Lembrando que grafar ideias implica ser capaz de abstrair o aspecto sensorial da fala e avançar na construção de uma "linguagem abstrata, que não usa palavras mas representações de palavras" (VIGOTSKI, 2001, p. 313, grifo nosso).

    Ao tratar da transição entre os períodos pré-escolar e a atividade de estudo, Pasqualini (2013) sublinha que não há uma ruptura entre estes, ambos estão ligados pelo objetivo de penetrar no mundo adulto. O que marca a transição à idade escolar é o movimento entre o desejo de fazer o que o adulto faz para saber o que o adulto sabe. Essa possibilidade está diretamente relacionada ao desenvolvimento alcançado. A atividade que guia o desenvolvimento da criança em idade escolar é denominada atividade de estudo e a neoformação será a possibilidade de formação do pensamento teórico. Cabe destacar que a atividade de estudo não se forma de maneira natural. Davidov (1988) distingue a aprendizagem da atividade de estudo. Na acepção do autor, a aprendizagem está presente em todas as atividades humanas e a atividade de estudo tem conteúdo e estrutura própria. E acrescenta:

    Além disso, na idade escolar inicial, as crianças realizam os tipos enumerados e outros tipos de atividade, mas a principal e que governa o desenvolvimento é a de estudo: ela determina o surgimento das principais neoformações psicológicas da idade dada, define o desenvolvimento psíquico geral dos escolares de menor idade, a formação de sua personalidade em conjunto [DAVIDOV, 1988, p. 159].

    Diante de tais questões, levantamos as seguintes perguntas: Como pensa a criança de 7 anos? Quais suas conquistas? Quais suas necessidades? Ao abordar as características presentes na criança de 7 anos, Vigotski (1996) expressa que ela vai perdendo a espontaneidade presente no período anterior.

    A perda da espontaneidade está diretamente relacionada à consciência que a criança tem de si e do outro. Essa consciência traz mudanças na forma de a criança se relacionar. Segundo Vigotski (1996), a criança torna-se caprichosa, muda a maneira de andar, comporta-se de um modo artificial, faz palhaçada. Nesse período, a criança pode tornar-se mais difícil de educar, mas a crise manifesta-se de maneira mais aguda em crianças cujas vivências infantis foram mais difíceis.

    A principal característica dessa fase é a diferenciação da faceta interior e exterior da personalidade. A boniteza do processo está aí posta, ao longo do desenvolvimento a criança vai tornando-se outra para ela mesma. Tal questão, portanto, está diretamente relacionada à capacidade intelectual da criança. De acordo com Vigotski (1996, p. 378, grifo nosso)

    A perda da espontaneidade significa que incorporamos a nossa conduta o fator intelectual que se insere entre a vivência e o ato direto, o que vem a ser o polo oposto da ação ingênua e direta própria da criança.

    Aos 7 anos, forma-se na criança uma estrutura de vivências que lhe permite compreender o que significa estou alegre, estou desgostoso, estou enfadado, sou bom, sou mau. Isso quer dizer que surge a orientação consciente de suas próprias vivências. A experiência adquire sentido – a criança enfadada é consciente do seu enfado. Vigotski (1996, p. 380) aponta que a partir de então existe uma lógica dos sentimentos:

    A criança de idade escolar generaliza os sentimentos, quer dizer, quando uma situação se repete muitas vezes nasce uma formação afetiva que tem a mesma reação com a experiência isolada ou o afeto, que o conceito com a percepção isolada ou com a recordação. Por exemplo, a criança pré-escolar carece de auto-estimulação, de amor próprio. Justamente na crise de sete anos é quando surge a própria valoração: a criança julga seus êxitos, sua própria posição.

    Essa lógica está diretamente relacionada ao desenvolvimento da linguagem e do pensamento que transformaram/reequipararam as outras funções, ou seja, para além de denominar os objetos, a linguagem possibilita a construção de seus significados. Por exemplo, a percepção não está mais presa ao campo perceptual. Com a apropriação da linguagem e o desenvolvimento do pensamento verbal surge a possibilidade de uma percepção que abstrai os traços dos objetos, realizando a generalização.

    Ao tratar do processo de generalização dos sentimentos, o autor enuncia que a linguagem como um meio de comunicação nos obriga a designar e verbalizar nossos estados internos. Vigotski, assim, traz como exemplo o frio: Se dissermos que está frio agora e repetir o mesmo um dia mais tarde, isso significa que toda sensação de frio isolado também é generalizada (VYGOTSKI, 1996, p. 379).

    Vigotski (1996) segue o seu raciocínio acerca do desenvolvimento da consciência e expõe que, se a criança de 3 anos descobre suas relações com outras pessoas, uma importante conquista da criança de 7 anos é a possibilidade de descobrir o feito de suas vivências. Nos termos do autor,

    O bebê carece de percepção atribuída de sentido: Ele está feliz, ele está com raiva, mas não sabe que ele está contente, assim como o bebê não sabe que está com fome quando está com fome. Há uma grande diferença entre sentir fome e do conhecimento estar com fome. Na idade precoce a criança não sabe de suas próprias experiências [VYGOTSKI, 1996, p. 379].

    Por volta dos 7 anos, forma-se na criança uma estrutura de experiências que lhe permite entender eu estou feliz, estou enojado, eu estou com raiva, ou seja, surge a direção consciente de suas próprias experiências. As experiências fazem sentido e a criança irritada está ciente de sua ira. Pela primeira vez ocorre a possibilidade de generalização de afetos e vivências. Dissuadir a criança não será uma tarefa tão fácil, será necessário apresentar-lhes motivos, pois todo ato consciente é necessariamente consciência de algo. Segundo Vigotski (1996, p. 385-386),

    O que era antes essencial para a criança, valioso, desejoso, se torna relativo e pouco importante na etapa seguinte. A reestruturação de necessidades e motivos, a revisão dos valores é o momento essencial de passagem de uma unidade a outra. Ao mesmo tempo se modifica também o meio, quer dizer, a atitude da criança ante o meio. Começam a interessar-lhes coisas novas, surgem novas atividades e sua consciência se reestrutura, se entendemos a consciência como a relação da criança com o meio.

    Destacamos dessa citação a importância de entendermos como necessidades e motivos estão postos em relação à escrita nesse momento do desenvolvimento. Aqui, cabe um aparte para compreendermos um pouco mais a relação entre a linguagem falada, a língua escrita e a linguagem interior. Vigotski (2001), ao estabelecer um paralelo entre essas três linguagens, aponta que:

    Ali [linguagem escrita], em proporções bem maiores que na linguagem falada o pensamento emitido se expressa nos significados formais das palavras que empregamos. O discurso escrito é um discurso feito na ausência de interlocutor. Por isso é um discurso desenvolvido ao máximo, nele a decomposição sintática atinge o apogeu. Ali, graças à divisão dos interlocutores, raramente são possíveis a compreensão a meias palavras e os juízos predicativos. Na linguagem escrita, os interlocutores estão em diferentes situações, o que exclui a possibilidade de existência de um sujeito comum em seus pensamentos. Por isso, comparado ao discurso falado, o escrito é, neste sentido, maximamente desenvolvido e uma forma de discurso sintaticamente complexa, na qual para enunciar cada pensamento isolado, precisamos empregar muito mais palavras do que se faz com a linguagem falada [VIGOTSKI, 2001, p. 452, grifo nosso].

    Ao apresentar as diferenças entre a linguagem escrita e a falada, o autor lança mão dos resultados da pesquisa realizada por ele e seus colaboradores e destaca que, além de ser uma linguagem com um interlocutor ausente, a linguagem escrita é produzida em uma situação não usual para a criança, é uma linguagem-monólogo, uma conversa com a folha de papel em branco, com um interlocutor imaginário ou apenas representado (VIGOTSKI, 2001, p. 313). Por outro lado, nas situações em que faz uso da linguagem falada, a criança não necessita realizar nenhum esforço para a compreensão dos motivos que envolvem a situação de conversação. Sendo assim, conclui, a escrita é uma situação que requer da criança uma dupla abstração: do aspecto sonoro da linguagem e do interlocutor (VIGOTSKI, 2001, p. 314).

    Outro destaque importante dos resultados da pesquisa referida diz respeito aos motivos envolvidos na tarefa de escrever algo. Enquanto as situações que envolvem a fala criam a todo tempo a motivação de nova flexão da fala, a linguagem escrita é mais arbitrária e em sua construção necessitamos criar a situação, representá-la no pensamento; na escrita, a criança deve agir voluntariamente.

    Ainda discutindo a relação entre linguagem interior, linguagem falada e linguagem escrita, Vigotski (2001) ressalta que a linguagem interior e a escrita são entendidas como linguagens monológicas, ao passo que a linguagem falada é dialógica. No diálogo, é pressuposto que os interlocutores estejam a par do assunto falado,

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