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Segredo Mortal
Segredo Mortal
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E-book613 páginas9 horas

Segredo Mortal

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Sobre este e-book

Na véspera de Natal, cheias massivas submergem o centro de Lisboa, causando danos incalculáveis e centenas de mortes. Designada por Desastre de Lisboa, a catástrofe é atribuída ao aquecimento global. Mas terá resultado realmente das alterações climáticas?
Um cenário aterrador é descoberto numa praia. Chamados a intervir, Leonardo Rosa e Marta Mateus, inspetores da Polícia Judiciária, deparam-se com a mais tortuosa perversidade: Um puzzle humano.
Iniciando uma caça ao homem, descobrem o perfil de um assassino, perigoso e inteligente, que desafia as capacidades dos inspetores. Assombrado pelos seus próprios fantasmas, Leonardo Rosa terá de ultrapassar barreiras para conseguir chegar à verdade: A descoberta de um segredo incrível.
Entretanto, um jovem recém-licenciado é acusado de dois crimes que ele jura não ter cometido. Encurralado, decide fugir e provar a sua inocência, mas logo se envolve numa teia de acontecimentos que o leva a uma conclusão terrível: Matar é a única forma de sobreviver. Em busca de justiça e da verdade, vários acontecimentos sangrentos levam os inspetores e o jovem a embrenharem-se na maior conspiração de todas. Conseguirão sair dela vivos?

IdiomaPortuguês
EditoraCultura
Data de lançamento25 de mar. de 2021
ISBN9789898979568
Segredo Mortal

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    Que thriller! Do início ao fim foi ação, suspense, adrenalina e surpresas! O Brun está de parabéns ??

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Segredo Mortal - Bruno M. Franco

filho.

PRÓLOGO

A capital de Portugal resplandecia de felicidade e amor.

A época natalícia era celebrada de forma entusiástica. Imensas luzes pontuavam as noites, enquanto a animação era o pano de fundo durante o dia. Não faltavam atividades lúdicas para toda a família. Por todo o lado, viam-se sorrisos sinceros, sorrisos de quem estava prestes a estar com a família no Natal. Havia muita bondade no ar, muitos abraços, muitos beijos, muita alegria.

Não era por acaso que, para muitos, o Natal era a época mais maravilhosa do ano.

Na véspera de Natal, o dia nascera radioso, apenas pintado com algumas nuvens. As ruas da Baixa, do centro e das marginais de Lisboa estavam repletas de pessoas que por ali decidiram passar a tarde em família. O comércio estava em alvoroço com o aumento do turismo. Era um frenesim único. Havia uma eletricidade especial no ar.

Estava a correr tudo bem. Até que deixou de estar.

Quando a noite chegou e todos se preparavam para jantar algo quente para aquecer o corpo e o espírito, as nuvens começaram a engrossar e a escurecer, encobrindo as estrelas e a Lua. Fora uma mudança súbita.

Com a chuva iminente, as pessoas foram-se abrigando. As mais corajosas deixaram-se estar. Talvez não chovesse. Muitas vezes acontecia haver ameaça de mau tempo e ela não se concretizar.

Mas choveu. Muito. Torrencialmente.

E não parou de chover.

A chuva miudinha inicial deu lugar a uma precipitação mais intensa, pesada e grossa.

Parecia que alguém despejara um balde gigante sobre a região.

Mas esse balde não tinha fundo.

O vento levantou-se com brusquidão e ultrapassou os 90 km/h.

A população lisboeta fora apanhada completamente desprevenida.

O Instituto Português do Mar e da Atmosfera lançou um alerta vermelho a todo o distrito de Lisboa. O resto do país, ao que parecia, estava seguro. Os funcionários de serviço no IPMA estavam estupefactos. Ninguém percebia como, em tão pouco tempo, se formara uma tempestade assim na capital.

O que não sabiam, ninguém sabia, era que se tratava do início de uma nova guerra. Uma guerra para a qual ninguém se alistara, mas que a todos dizia respeito.

Os Bombeiros Sapadores de Lisboa assinalaram, nas primeiras horas, mais de duzentas inundações.

A Praça de Espanha, em poucas horas, parecia um lago. A Baixa parecia Veneza. No cruzamento da Avenida dos Estados Unidos com a Gago Coutinho bem que se poderia treinar a modalidade de remo. A Avenida da Liberdade assemelhava-se a um gigantesco escorrega aquático, que desaguava no súbito alargamento do Tejo. O rio submergira parcialmente as zonas dos Restauradores, Chiado, Terreiro do Paço e Parque das Nações. Todos os espaços comerciais tinham sido invadidos por água, com danos materiais a ultrapassar vários milhões de euros. Os hospitais, o metropolitano, as linhas ferroviárias. Estava tudo inundado. Tudo parado.

O caos era generalizado. Estava tudo a ser destruído pelas cheias.

A Proteção Civil não tinha mãos a medir. Receberam milhares de pedidos de ajuda. Foram mobilizados os bombeiros sapadores dos distritos mais próximos e trabalharam todos incansavelmente para resgatar pessoas presas em casa, em telhados ou até em copas de árvores; tudo servia para escapar à força da água que corria com ferocidade.

No Aeroporto de Lisboa, cancelaram todos os voos e ficaram a aguardar desenvolvimentos, arruinando o Natal a muita gente.

A meio da madrugada, uma meteorologista do IPMA dirigiu-se à comunicação social para informar que toda esta situação, que designou de «catástrofe natural», tinha proporções piores do que a que se registara na Madeira, em 2010, e na própria Lisboa, em 1967. Confessou, também, que estavam a tentar perceber como surgira a tempestade e por que razão apenas afetava a área desde Carcavelos ao Parque das Nações e do Cais do Sodré a Rio de Mouro e Loures. Do outro lado do rio Tejo, em Almada, as condições meteorológicas eram surpreendentemente magníficas. O mesmo se verificava nos arredores de Lisboa. Estava tudo normalíssimo. Sem nuvens. Ninguém compreendia o que se passava.

Nas redes sociais foram publicadas imagens inacreditáveis de ruas completamente desaparecidas. Em alguns sítios via-se apenas o topo das habitações. Vários vídeos mostravam carros, árvores, mobília, animais ou pessoas a serem arrastadas pelas ruas.

Inicialmente, os civis atribuíram a culpa ao mau saneamento e aos esgotos sempre entupidos, fruto do claro descuido das Câmaras Municipais. No entanto, umas horas depois, perceberam que era impossível até à melhor canalização do mundo aguentar tanta água de uma só vez, pelo que se focaram em sublinhar a vontade da Mãe Natureza de vingar-se dos humanos. A hashtag #PrayForLisbon, «Rezem Por Lisboa», começou a ser disseminada no Twitter, Facebook e Instagram, por todo mundo, assim que as imagens horripilantes do sucedido começaram a circular.

O presidente da República Portuguesa e o primeiro-ministro fizeram breves declarações à comunicação social, assegurando que a Proteção Civil estava a reunir esforços no sentido de ajudar a população numa situação tão difícil. Afirmaram que iriam auxiliar as pessoas a recomporem a sua vida e os negócios, mas que precisariam da ajuda europeia. Por isso, iriam ativar o Mecanismo de Proteção Civil da União Europeia para fazer face aos prejuízos que estas cheias estavam a provocar.

No final da madrugada, o mau tempo já obrigara os bombeiros a responderem a 674 ocorrências. Para resolver todas as situações, estiveram envolvidos nos trabalhos cerca de 2600 operacionais com o apoio de mais de 600 viaturas.

Os números disponibilizados no início da manhã seguinte eram terríveis.

Número de mortes: 856 pessoas.

Habitações destruídas: mais de 100 mil.

O volume de chuva medido rebentou a escala. Caíram milhares de toneladas de água ao longo da noite exclusivamente naquela região de Lisboa. Nunca tinha sido visto algo assim.

Por todos estes motivos, era já considerada a catástrofe natural mais arrasadora desde o grande sismo de 1755 e seria apelidada de Desastre de Lisboa no dia seguinte.

Longe do epicentro das terríveis cheias que devastavam Lisboa, uma mulher assistia às notícias através do seu televisor de 55 polegadas com Ultra HD. Com esta definição tão elevada, o horror parecia ainda mais real, mais palpável. Nestas alturas, preferia que a tecnologia não tivesse avançado ao ponto de ela se sentir dentro do horror daquela catástrofe.

Eram quase cinco da manhã, já a chuva abrandara para o fluxo normal de um dia de inverno, quando o seu telemóvel tocou. Privada de sono, não ouviu inicialmente a chamada. Não conseguia descolar os olhos das toneladas de água que invadiram as ruas. Ao fim de 20 segundos, captou o som que lhe chamava a atenção. Consultou quem lhe ligava àquela hora. Só podia. Pegou no telemóvel com a mão a tremer. Atendeu e colocou o aparelho ao ouvido. Sem dizer nada. O seu marido dormia tranquilamente no quarto, alheio ao sofrimento da esposa que estava de rastos na sala. As lágrimas corriam-lhe livremente pelo rosto.

Engoliu em seco e falou pela primeira vez.

– Eu sei! Isto é tudo culpa nossa. É tal e qual como em Lynmouth. – Abanou a cabeça de arrependimento. – Como é que deixámos que isto acontecesse? Como é que deixámos que chegasse a este ponto? A culpa é toda nossa… Estas 856 pessoas morreram por nossa causa. E o chefe deve estar todo contente. – Enxugou as lágrimas e focou a sua mente no que interessava. – Chega. Temos de agir. Temos de fazer alguma coisa ou voltará a acontecer outra catástrofe deste género. – Inspirou fundo lentamente, preparando-se para os tempos que se avizinhavam. – Tenho uma ideia que estive a considerar e a amadurecer nos últimos dias. Pode sair-nos cara, mas é o planeta Terra que está em risco. Temos de lutar por ele. Custe o que custar. As pessoas que perderam hoje a vida merecem que lutemos até ao fim. Nem que isso signifique a nossa morte.

CINCO MESES E MEIO DEPOIS

CAPÍTULO 1

LÚCIO

O crime perfeito.

Era certo e sabido que não existia. No entanto, era o Santo Graal de todos os criminosos, fossem eles meros ladrões de lojas ou assassinos profissionais.

Eram vários os fatores que o tornavam inalcançável, como a renovação celular constante do corpo humano, que poderia deixar vestígios incriminatórios, a presença de testemunhas, muito frequente em zonas com elevada densidade populacional, os sistemas de videovigilância cada vez mais sofisticados, a evolução tecnológica ao nível das ciências forenses e, ainda, os clássicos, como o móbil do crime e a importância da vítima.

Por todos estes motivos, Lúcio governava a sua vida através de um código de conduta criado pelo seu mentor, também ele um assassino profissional. Objetivo principal: não ser apanhado. Uma das proibições mais importantes da conduta era nunca matar pessoas com as quais tivesse algum tipo de relacionamento. As pessoas mais próximas da vítima eram sempre as primeiras a serem consideradas suspeitas.

Para cumprir com a sua conduta, Lúcio vivia sozinho, dedicando a sua vida e as suas energias às missões de que era incumbido. Os únicos relacionamentos que tivera no passado haviam sido estritamente profissionais e de poucos minutos. Nada que deixasse saudades ou que desse sequer para criar um vislumbre de uma amizade.

O seu telemóvel não tinha guardadas quaisquer mensagens ou fotografias. Existia apenas um número na lista de contactos. O do seu mentor.

A sua casa não tinha fotografias suas. Apenas algumas paisagens coloridas, que a maioria das pessoas acharia relaxantes. Viver como um lobo solitário era a única forma de manter a sua vida profissional sem criar suspeitas.

Lúcio considerava-se um assassino contratado metódico e implacável na hora de pôr fim a uma vida humana e existia uma frase que era dita frequentemente pelos jogadores de futebol e que achava que se ajustava perfeitamente a si.

Faço aquilo que adoro e sou pago para isso.

Lúcio levantou-se cedo numa certa manhã a meio de junho, com os primeiros raios solares a varrer a zona antiga de Lisboa. Levantou-se e espreguiçou-se, sentindo cada músculo esticar-se e desentorpecer-se após cinco horas de sono. Fez a cama em 20 segundos e colocou as três almofadas decorativas nos locais exatos onde permaneciam desde que começara a viver naquele pequeno apartamento. Encaminhou-se para a janela, passando o indicador pela cómoda. Sorriu ao vê-lo sem vestígios de pó. Mantendo o olhar no horizonte, esticou o braço esquerdo para o lado e agarrou numa caneca de café frio. Bebeu calmamente, enquanto sentia a adrenalina invadir-lhe o sangue perante a perspetiva de capturar a sua presa.

Lúcio adorava aquele pequeno frenesim que sentia quando acordava num dia de caça. Era uma excitação prazenteira que o tornava perigoso e ávido de sucesso. Terminou a caneca de café e dirigiu-se a uma das paredes do quarto, onde se encontrava um quadro de cortiça. Passou a mão pelas fotografias das suas vítimas. Sorriu morbidamente perante o rosto delas, inocentes e despreocupados. Os seus dedos deslizaram, até tocarem na fotografia da vítima seguinte. Revirou os olhos de prazer e imaginou como tudo iria acontecer.

Não poderia desejar mais que o tempo avançasse depressa.

Releu os pormenores da captura, anotados em post-its colocados ao lado da fotografia. Confirmou que sabia tudo. Sentia-se preparado. Foi para a casa de banho e lavou a cara. Queria estar apresentável para ela. O segredo em caças como aquela era estar o mais atraente possível. Não era novidade que entre um vagabundo e um engravatado, o segundo parecerá sempre de maior confiança e, por isso, terá maior probabilidade de sucesso.

Usou a máquina para aparar a barba, de forma a estilizá-la para que ficasse com o look de barba de três dias. As raparigas costumavam apreciar bastante esse visual, e Lúcio sabia disso. Na verdade, estava sempre a par de todas as tendências. Um predador que se prezasse tinha de conhecer a fundo a sua vítima e saber os seus gostos, as suas rotinas.

Quando ficou satisfeito com a imagem refletida no espelho, guardou os materiais com cuidado. A única imperfeição residia no seu queixo, onde tinha uma pequena marca de um corte, mas muitas mulheres já haviam dito que achavam excitante um homem com marcas do passado, principalmente quando esse passado era rebelde.

Pena estarem todas mortas.

Vestiu umas calças de ganga claras, uma camisa informal para lhe conferir simultaneamente um ar sofisticado e jovem. Não precisava de se preocupar com o penteado. Tinha o cabelo rapado com máquina três. Conferia-lhe um ar mais limpo e prático.

Caminhou até à cozinha e abriu um dos frigoríficos.

Desviou o olhar para um alimento e retirou-o. Trincou a maçã e deliciou-se com o seu sumo fresco e revigorante. Lúcio sabia aproveitar as pequenas delícias da vida. Principalmente em dias importantes como aquele. Terminou o seu pequeno-almoço e dirigiu-se para a porta do apartamento. Ao lado, encontravam-se as chaves de casa e do carro. Saiu celeremente, trancando a porta atrás de si e testando a sua resistência com um empurrão seco.

Saiu do prédio e enfiou-se no carro estacionado numa rua ao lado. Apreciou a comodidade do seu Renault Clio, companheiro em muitas caçadas. Não tinha dedos suficientes para contar o número de vítimas que se sentaram no lugar ao lado dele.

O lugar do morto. Neste caso, literalmente.

Abanou a cabeça, divertido, e rodou a chave na ignição, levando o motor a rugir e começar a trabalhar. Devido à hora vespertina a que conduzia pelas ruas de Lisboa, deslocou-se lentamente. As ruas estavam entupidas com o tráfego habitual. Milhares de pessoas rumavam ao seu escritório, ao seu consultório, ao seu gabinete, ao seu posto de trabalho. Lúcio não encaixava em nenhuma categoria. A menos que caça fosse uma delas.

Atravessou a Ponte 25 de Abril com uma ansiedade crescente. Lúcio gostava da Margem Sul. Menos câmaras de segurança, menos patrulhas policiais nas ruas, menos vigilância.

Passou calmamente por Almada e seguiu no sentido da Amora. Consultou novamente o relógio. Passava pouco das sete e meia da manhã. Segundo a sua pesquisa, a sua presa iria tomar o pequeno-almoço com o pai a um estabelecimento próximo da sua escola secundária, vinte minutos antes do toque de entrada para a primeira aula do dia. Tinha bastante tempo.

Acelerou durante nove quilómetros pela A2 até lhe aparecer a saída que o deixou na cidade que pretendia. Em seu redor existiam prédios altos, pintados com cores claras e sarapintados com roupas estendidas, que se remexiam ao sabor do vento.

O seu coração começou a bombear com mais intensidade quando, cinco minutos depois, avistou o gradeamento que delimitava os limites físicos da Escola Secundária Manuel Cargaleiro. Circundou-a até às traseiras. Estacionou o carro assim que avistou um sinal que lhe injetou adrenalina na corrente sanguínea: «Café O Castiço».

Abandonou o habitáculo do veículo, fechando a porta atrás de si e ligando o alarme remotamente, sem tirar os olhos da montra envidraçada que permitia observar o interior do estabelecimento.

Entrou e foi recebido por uma torrente de cheiros saborosos, que caraterizavam os cafés no corrupio da manhã. Sentou-se numa mesa que estava livre, próxima da entrada. Pediu um sumo de laranja e uma torrada. Tinha tempo. A sua presa só saía do café precisamente cinco minutos antes do toque da campainha da escola. Era percetível pelo seu rosto alegre que faltavam poucas semanas para terminar o ano letivo.

Lúcio pegou num jornal, mas não eram as notícias que os seus olhos viam. Era a sua presa. Vestia uma saia curta, mas não eram as suas pernas tonificadas e jovens que lhe interessavam. Era o seu pescoço, delicado e sedoso, que o fazia arder de desejo. Queria sentir-lhe a pulsação acelerada pelo medo. Também não era o sabor a laranja que sentia enquanto ingeria o sumo que pedira à empregada.

Era o sabor do sangue da sua presa, quente e metálico. Jovem.

A sua mente começou a ficar ofuscada pelo desejo cada vez mais intenso. Lúcio sorriu.

Iria ser uma grande manhã.

CAPÍTULO 2

LEONARDO

O banco estava cercado por vários veículos policiais. Cada veículo, com as portas dianteiras escancaradas, protegia dois agentes, cujas armas se encontravam prontas a disparar.

– Onde está o meu dinheiro e o meu veículo? Têm só mais cinco minutos. Por cada minuto de atraso, um refém sofre as consequências da vossa incompetência.

Desligou a chamada.

O inspetor Leonardo Rosa cerrou os olhos. Sentia-se frustrado. Apetecia-lhe mandar aquele assalto às favas e ir beber uma caneca no Nunes. Quando uma negociação com um assaltante que possuía vários reféns em seu poder se prolongava por toda a tarde, era precisa muita fibra e coragem para não cometer erros que custassem a vida de pessoas inocentes. Quando essa negociação era feita com um assassino procurado há vários meses, a importância aumentava exponencialmente.

– Inspetor Rosa, avançamos com o dinheiro e a viatura?

A pergunta surgiu atrás de si. Leonardo encontrava-se protegido pela porta do veículo mais próximo da entrada do banco. O homem da PSP mantinha o intercomunicador próximo da sua boca, aguardando a resposta do inspetor encarregue daquela negociação.

Leonardo sabia empiricamente que não valia a pena ligar novamente para tentar convencê-lo de que, se se entregasse, poderiam chegar a um acordo e, assim, reduzir-lhe a pena. Não quando os seus atos mereciam seis ou sete penas de prisão perpétua consecutivas.

O assaltante era Alberto Ribeiro, um homem com muita experiência nos seus quase setenta anos de existência. Conhecido como o Monstro de Lagos, Alberto assassinara brutalmente uma jovem de 11 anos, após a abordar enquanto conduzia um Toyota vermelho, facto que fora determinante para a sua captura na altura, nos anos 90. No seu currículo existiam diversas acusações de atentado ao pudor e de violações, que lhe valeram vários anos de prisão em duas ocasiões diferentes. Fora condenado a vinte e quatro anos de prisão pelo assassínio em Lagos, mas só cumprira treze. Desde então, nunca mais se soubera do seu paradeiro.

Até três meses antes, quando jovens começaram a ser assassinadas da mesma forma que no caso de Lagos. Mas, desta vez, Alberto relocalizara-se em Lisboa. A sua sede devia ser imensa, para ceder aos impulsos tantos anos depois de sair em liberdade.

Conseguir a captura de Alberto seria algo gigantesco. Uns dias antes, Leonardo tivera uma pequena conversa com o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, o qual apareceu na Brigada de Homicídios da Diretoria de Lisboa e Vale do Tejo da Polícia Judiciária para lhe pedir ajuda.

Leonardo aceitara, não pelo gesto amável do autarca, que de inocente não tinha nada, mas pelo desafio que antevia. Qualquer inspetor lutaria por conseguir uma detenção de tamanha importância. A taxa de homicídios era muito baixa em Portugal, razão pela qual havia poucos inspetores nas Brigadas de Homicídios e motivo mais que suficiente para Leonardo querer agarrar este caso tão fora do comum. Depois de aceitar, tivera bastantes reuniões para ficar ao corrente de todos os aspetos do caso. Sugerira, então, que se tomassem diversas providências: realizar uma busca exaustiva em todos os locais dos crimes, atrás de pistas que até à altura simplesmente não existiam; divulgar a fotografia de Alberto Ribeiro em todas as estações televisivas, bem como a história do assassino; investigar contas bancárias, empréstimos ou bens em seu nome em Lisboa e arredores, bem como da sua família conhecida; observar as gravações de todas as câmaras de vigilância que existiam nos vários locais e nos percursos prováveis por onde ele tivesse passado.

Fora uma entrada vigorosa e que muito incomodara os restantes elementos, mas ninguém levantou qualquer objeção. Leonardo era um inspetor muito respeitado entre os seus pares pela sua enorme experiência e sucesso na resolução de casos de homicídio. Esse estatuto permitiu-lhe conseguir um acordo com o ex-coordenador de investigação criminal da Brigada de Homicídios de Lisboa, que lhe dava prioridade para investigar os casos mais interessantes e desafiantes que surgissem.

Decorridos vários dias, o segurança de um banco no centro de Lisboa alertara a PJ para a presença de Alberto. Agora, aqui estava ele, muito perto do assassino, mas sem conseguir demovê-lo. O agente ainda aguardava a resposta de Leonardo. Começava a questionar-se se ele o teria ouvido, quando a voz do inspetor soou com um tom decidido, mas temperado com uma pequena dose de humor.

– Sim, avançamos. Mas vamos oferecer-lhe uma prenda. Será uma surpresa que ele jamais esquecerá.

A captura do rebatizado Monstro de Lisboa fora a notícia mais vista e comentada nos dias que se seguiram. A atuação de Leonardo fora mantida em segredo para o grande público, mas quem trabalhara no caso sabia da verdade e não podia estar mais abismado com o sucedido.

– Amigo, dê aqui mais uma caneca ao meu colega. Por minha conta. Ele merece.

Estavam, então, numa quarta-feira soalheira, no primeiro dia do sétimo mês do ano. Leonardo abanou a cabeça perante a alegria contagiante da sua parceira na Polícia Judiciária.

– M&M, até parece que queres ver-me bêbado.

Ela sorriu maliciosamente, mostrando a sua língua rosada.

– Não seria a primeira vez.

Marta Mateus era uma mulher que se aproximava dos trinta anos, e que Leonardo previa que seria daquelas quarentonas com quem todos os jovens secretamente desejam fazer sexo. A colega possuía um corpo muito bem definido por constantes idas ao ginásio e tinha um rosto extremamente simpático e cativante, que condizia com a sua maneira de ser. Costumava dar a ideia de se tratar de uma mulher oca e fácil, algo que os homens adoravam por se sentirem uns autênticos garanhões, quando na verdade era ela quem escolhia o parceiro que visitava a sua cama. O cabelo ruivo era de um vermelho vistoso e forte, e as sardas espalhadas pela sua face conferiam-lhe alegria e beleza.

A caneca surgiu à frente de Leonardo. O empregado do Nunes retirou a anterior, vazia, e entreteve-se a limpá-la, enquanto olhava para o televisor LED, que tanta clientela atraía em dias de jogo de futebol. Naquele momento, apresentava uma reportagem mais detalhada da captura realizada uns dias antes por Leonardo, com o inspetor a aparecer em segundo plano, sendo o destaque dado ao inspetor-chefe. Apesar de não gostar de aparecer na televisão, achava que era bastante fotogénico, com os seus olhos castanho-esverdeados bastante perspicazes, as linhas do rosto bem definidas, o corpo magro e firme, e o cabelo aloirado e curto. Vendo bem, nem aparentava os seus trinta e seis anos de idade. Ninguém diria que tinha mais sete que a sua colega.

– Força, Leo. Bebe lá isso para passarmos para a próxima.

Marta pegou na sua caneca e bebeu de um trago o que restava, batendo com a base na mesa e soltando um «ah!» de satisfação.

– Sabes que não tenho a tua pedalada para estas coisas.

– Mas tens treinado bastante nos últimos meses, não é?

Leonardo baixou o olhar. Sentia vergonha que todos soubessem do seu hábito. Marta apercebeu-se da mudança no parceiro, pelo que mudou de assunto.

– Fiquei maravilhada com a tua coragem, Leo. – Deu-lhe uma palmada carinhosa. – Deve ter sido uma adrenalina e peras.

Leonardo só se lembrava de estar meia hora dentro do pequeno espaço da bagageira do veículo fornecido ao criminoso. A arma, uma Glock 19, estava na mão esquerda. Deitara-se em posição fetal, de forma a que o seu braço esquerdo ficasse livre para atuar sem percalços. Após todo o trajeto recheado de curvas e contracurvas, muitas acelerações e poucas travagens, o carro parara. Nessa altura, o seu coração parecera querer denunciar a sua presença e por pouco não o impedira de ouvir com atenção os passos nervosos de Alberto.

Ao abrir o porta-bagagens com o intuito de lá colocar malas e outros objetos, fora alvejado no joelho por Leonardo, ficando fora de combate. Depois, o inspetor contactara a sua equipa, informando-a sobre o local aonde deveria acorrer.

– Admito que gostei da sensação do efeito surpresa. É sempre reconfortante ver o rosto horrorizado dos nossos suspeitos quando são apanhados desprevenidos. Não tem preço.

– Ámen.

Marta ergueu a sua nova caneca, trazida, entretanto, e aguardou que Leonardo fizesse o mesmo.

– À captura de um filho da puta que tantas jovens violou e assassinou.

Brindaram vigorosamente e ingeriram com denotado prazer as respetivas bebidas. Leonardo pousou a caneca e abanou a cabeça.

– Muito bem. Por hoje, acabou-se. Sinto que, se bebo mais, passo o meu limite.

Marta deu-lhe um pequeno encontrão de ombros.

– És muito fraquinho. Pensei que estivesses mais bem preparado. Esse fígado aguenta pouco.

– Lamento não ter o teu dom. É muito útil, como deves saber.

– Quando fazemos trabalho infiltrado perante um suspeito que saiba beber, já não achas mal. Nessas ocasiões, até aposto que adoravas beber tão bem quanto eu. É pena não estar ao alcance de qualquer um. Só aos que se esforçam por isso.

Leonardo soltou uma gargalhada. Das primeiras desde que a sua vida dera uma volta de cento e oitenta graus. Marta ficou bastante séria e Leonardo compreendeu imediatamente o motivo daquela súbita reação.

– M&M…

– Há muito tempo que não te via rir. Rir assim, com vontade. – Passou a mão pela face do agora acanhado Leonardo, constrangido pelo sucedido e pelas respetivas implicações que tanto vinham a atormentá-lo.

– Não tem sido fácil – admitiu. – É complicado quando somos assombrados pelos acontecimentos de um passado ainda recente.

– Eu compreendo, Leo. Acredita que sim.

O inspetor Rosa sentiu a língua mais solta.

– Estou farto dos olhares desviados dos nossos colegas quando me encaram, das palavras ocas de força que alguns ainda insistem em dizer, das palmadas de comiseração que recebo nas costas sempre que consigo qualquer vitória. Só quero que tudo volte ao normal e acabem estas merdas todas.

– O problema está aí, Leo. Na definição de «normal». Com o que te sucedeu, tudo só pode voltar ao normal se o teu «normal» deixar de ser o que era antes de… do acontecimento.

Leonardo sentiu os olhos a marejarem-se. Desenvolvera um sexto sentido para prever quando as lágrimas começavam a formar-se. Tossicou e ergueu-se subitamente. Estava a ficar claustrofóbico. Precisava de sair. Apanhar ar.

– Eu pago, Leo. Podes ir.

– Obrigado, M&M.

– Podes contar sempre comigo para o que quiseres.

Manteve-se de costas para a colega, sem conseguir encará-la. Se o fizesse, perderia a compostura.

– Eu sei.

Saiu, mesmo na altura em que a primeira lágrima brotou das profundezas da sua mágoa, ameaçando fazer ruir os seus alicerces.

Era a mágoa de quem perdera a ligação com a vida. E com a vontade de viver.

CAPÍTULO 3

CARLOS

O último dia de estágio na clínica de fisioterapia estava a chegar ao fim e coincidia com o primeiro dia de julho.

– Faz mais quatro séries de vinte repetições e terminamos por hoje – indicou, apontando para uns elásticos colocados na base do espaldar do ginásio. – O teu joelho está quase no ponto.

– A recuperação foi longa, mas finalmente está a acabar. Estou quase a ficar livre – disse o atleta, aliviado.

– Pois estás. E eu termino o estágio hoje. – Olhou em redor, para o espaço equipado com material e dispositivos concebidos para a recuperação de lesões. – Vou ter saudades.

– Acho que nós é que vamos ter saudades tuas, da tua energia e da tua motivação. Estar com pessoas como tu é muito importante para a nossa recuperação.

– Estás a dizer isso para eu não te obrigar a fazer mais séries de saltos na meia bola dome, que sei que odeias.

– Odeio, porque no início não me equilibrava naquilo! – replicou o atleta, divertido com a lembrança. – Mas sei que foi essencial para a minha recuperação. Graças a ti, estou quase a cem por cento para voltar a jogar.

– Tenho pena de não estar aqui para te acompanhar na semana final de recuperação.

– Podes cá vir, mesmo que não seja oficialmente.

– Vou pensar nisso. – Bateu palmas de incentivo. – Podes começar.

Aproximou-se de uma colega com quem privava frequentemente nos dias de trabalho. Era uma mulher baixa e magra, com o cabelo apanhado num rabo de cavalo.

– Pois é, Carlos, parece que estás a quatro séries de vinte de te despedires de nós.

Carlos Caetano cruzou os braços e encarou a cliente da sua colega, uma jovem jogadora de basquetebol com uma lesão da articulação tibiotársica, uma das mais comuns. Estava a executar exercícios propriocetivos típicos para estas lesões, equilibrando-se com um pé num trampolim, enquanto fazia agachamentos lentamente.

– Nem acredito que já passou um ano.

– E estás quase a licenciar-te.

– É verdade. Os quatro anos passaram a correr.

– Não tarda nada estás aqui novamente, mas a trabalhar a sério. Com contrato.

– Sim, já chega de ser um estagiário não remunerado.

– Todos passamos por isso. Faz parte do percurso.

– Eu sei. Estou ansioso por receber o diploma e começar a trabalhar.

– Também nós. Aqui, na clínica, todos gostamos de ti e a patroa já disse que te quer cá. Portanto, não te preocupes que tens emprego garantido.

Carlos sorriu, ansioso por que o futuro acontecesse rapidamente, mas receando ao mesmo tempo que o tempo passasse demasiado depressa. Era o dilema clássico das pessoas em início de carreira.

– Trabalhar aqui seria excelente. Não só por vocês e por já estar completamente integrado, mas por ser tão perto de minha casa.

– Exatamente. Foi muito bom conseguires estágio aqui na clínica; somos das melhores da Margem Sul.

– E comigo, ficaram ainda melhores.

A colega bateu no ombro de Carlos.

– Convencido. Olha que ainda te dou má nota de estágio.

– Não serias capaz.

– Continua a dizer essas coisas e verás.

A conversa fora interrompida pelo atleta de Carlos, que terminara os exercícios. Despediram-se, com promessas de em breve voltarem a ver-se e da oferta de uma camisola assinada pelo jogador.

Findo o dia de trabalho, Carlos despediu-se da colega e dos restantes membros da clínica. Rumou ao balneário, para trocar de roupa.

Carlos tinha um porte atlético. Sempre fora um amante do desporto, desde futebol a basquetebol, voleibol, ténis e corrida. Mas a sua grande paixão era o parkour. Desde muito cedo que aprendera as técnicas desta atividade, cujos movimentos coincidiam com o desejo de liberdade que sentia e que buscava. Abandonou o balneário de mala no ombro. Colocou a mão em redor do seu colar. Era constituído por um fio preto que segurava contra o seu peito um pêndulo redondo e espesso, que representava o símbolo chinês yin-yang. Estava consigo desde o nascimento. A sua mãe dissera-lhe que o colar iria auxiliá-lo nas suas dificuldades e que o ajudaria a escolher o caminho certo ao longo da vida. Não era muito crente nesse tipo de coisas, mas o certo é que se sentia um sortudo pela vida que tinha.

Ao sair da clínica, localizada na Rua Cidade de Lisboa, em Corroios, deparou-se com uma surpresa. A mulher da sua vida, Vanessa Castanheira, e dois amigos de longa data, Fernando e Gonçalo, encontravam-se à porta. Carlos pousou a mala no chão, com um sorriso surpreendido no rosto.

– Que estão a fazer aqui?

– Viemos felicitar-te pelo final do estágio – esclareceu a namorada, com um sorriso terno e lindo.

– Vocês são os maiores.

Vanessa Castanheira estava a tirar o mestrado em Engenharia do Ambiente, no Instituto Superior Técnico, do qual o pai dela era presidente. Fernando era seu colega de Fisioterapia na Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa e Gonçalo enveredara pela área de Gestão, na Universidade de Lisboa.

Carlos aproximou-se primeiro da namorada e abraçou-a, sentindo o seu corpo colar-se ao dela.

– Estava cheio de saudades tuas, Vanessa – sussurrou-lhe ao ouvido, fazendo-a arrepiar-se. – Amo-te tanto.

Vanessa era uma rapariga morena e esbelta, com cabelos compridos que esvoaçavam ao sabor do vento abafado. Era de estatura média-alta e tinha um sorriso contagiante. Abraçou-o com força, respondendo-lhe igualmente com um sussurro apaixonado.

– Estou ansiosa por que comecemos a trabalhar, para organizarmos a nossa vida. – Apertou-lhe os músculos das costas com força, como se nunca mais quisesse largá-lo. – Prometes que vamos ficar juntos para sempre?

Carlos afastou o seu rosto do de Vanessa, mantendo os braços enrolados na cintura dela.

– Claro que sim, meu anjo. – Olhou-a com uma intensidade ardente.

Os lábios rosados arquearam-se, formando o sorriso lindo que conquistara o coração de Carlos. Retribuiu o sorriso apaixonado e beijou Vanessa com fulgor. Após largos segundos, um tossicar chamou a atenção do casal, que cessou o beijo. Gonçalo queria a atenção de ambos.

– Já percebi que vos apetece estarem sozinhos, mas não se esqueçam de que esta noite vamos celebrar o final deste vosso ciclo. – Olhou para Carlos e Fernando. – Acabaram os dois o estágio hoje e são quase licenciados.

Carlos deu a mão a Vanessa e apanhou a mala, colocando-a ao ombro. Encarou Gonçalo, com uma expressão divertida.

– O que sugeres, então?

– O que te parece?

– Jantar e noitada?

– Jantar e noitada!

O espírito festivo começava a crescer, perante a expetativa do que iria acontecer naquela noite. Há muito que ansiavam por esta celebração.

– Desta vez, levo o meu carro, amor.

Ela assentiu. Como tinham ambos veículo próprio, revezavam-se na sua utilização para repartir os custos.

– Acho que devíamos fazer uma corrida agora. Há algum tempo que não fazemos – observou Fernando, que juntamente com Gonçalo e Carlos formavam o Trio do Parkour. Fora essa paixão que os unira no passado e, sempre que lhes era possível, juntavam-se para treinarem movimentos acrobáticos e evoluírem cada vez mais, experimentando coisas novas.

Carlos sorriu e olhou para Vanessa, estendendo a sua mala na direção da namorada. Ela abriu a boca de estupefação.

– Só podes estar a brincar.

– Sabias o que te esperava quando começaste a namorar comigo.

– Queres que leve a mala no meu carro, enquanto vocês os três vão correr até casa?

– Por favor, Vanessa. Há tanto tempo que não fazemos isto. E hoje mereço.

Com uma sacudidela brusca, Vanessa tirou a mala da mão do namorado.

– Tenho um namorado que prefere correr como um canguru pelas ruas do que estar comigo. Escolhi mesmo bem.

– Combina com as tuas amigas para logo à noite – pediu. – Vai ser espetacular.

– Não te preocupes comigo. Vai lá divertir-te sem mim.

– Também te amo muito, Vanessa.

Apesar de querer manter o papel de namorada chateada, acabou por beijá-lo com paixão. Afastou-se na direção do seu carro e os três traceurs começaram a aquecer os músculos enquanto caminhavam, antecipando a corrida que estava prestes a começar.

Ao longe, sem que ninguém notasse, um homem observava com demasiado interesse o desenrolar dos acontecimentos à entrada da clínica de reabilitação. O seu rosto encerrava uma determinação inabalável. Como um profissional.

CAPÍTULO 4

CARLOS

Qualquer percurso se adequava à prática de parkour. Bastava ter imaginação. Podiam ser utilizados os mais variados obstáculos, como automóveis, bancos de jardim, corrimões, caixotes de lixo, pequenos muros, gradeamentos e plantas. Para estimular a variedade de manobras e para evitar que caíssem na tentação de simplesmente ignorar os obstáculos para serem mais rápidos, tinham criado um sistema de pontos, consoante o obstáculo ultrapassado. Assim, o último a chegar ao destino podia ser o vencedor.

Corriam alegremente desde a clínica de fisioterapia, localizada próxima da Junta de Freguesia de Corroios, até ao Centro Comercial Pierrot, edifício que ficava a meia distância das habitações dos três jovens e que lhes permitia ter dois quilómetros de corrida.

Estavam já a meio, quando Carlos, poucos metros atrás de Fernando e de Gonçalo, executou um mortal, após ultrapassar graciosamente uma carrinha de mercadorias de caixa fechada com uma altura respeitável, enquanto os outros se limitaram a ultrapassá-lo da forma mais eficiente e sem nenhum exibicionismo. Carlos aterrou com uma cambalhota, para amortecer a queda e espalhar a energia por todo o corpo. A sua técnica era primorosa e os dois colegas sabiam disso, razão pela qual se uniram para o vencerem. Ao chegarem a um jardim, passaram entre dois baloiços, mas lançaram os assentos na direção de Carlos, na tentativa de o atrasar.

– Sacanas!

Carlos escalou o poste que sustentava os baloiços, subindo-o como uma rampa. A meio, atirou-se para a trave horizontal, usando a sua embalagem para agarrar no metal e usá-lo para se impulsionar para a frente, executando um voo que terminou numa cambalhota de lado. Lançou-se numa perseguição aos seus dois colegas. Estes lançaram caixotes para o chão para o atrapalhar, mas Carlos ultrapassou com grande destreza e facilidade aparente os vários obstáculos, saltando por cima dos mesmos como se o chão fosse lava. Tinha um sorriso estampado no rosto, que nunca desapareceu, nem mesmo perante as barreiras mais difíceis.

Gonçalo e Fernando começaram a olhar com mais frequência para trás e isso fez com que chocassem contra uma senhora que ia a sair de uma loja do chinês. Foi o que bastou para que Carlos os ultrapassasse a uma velocidade incrível, dando um mortal por cima deles, depois de ganhar impulso ao subir a umas paletes empilhadas.

Quando executavam estas corridas, um dos desafios que lhes dava mais pontos era transpor muros de moradias. Implicava invasão de propriedade privada, era verdade, mas dava muitos mais pontos e valia sempre a pena pela adrenalina. No entanto, não foram poucas as vezes que, ao invadir o jardim de uma vivenda, o cão daquela habitação os perseguira com vontade de ferrar os dentes na carne dos intrusos.

No entanto, desta vez aconteceu algo mesmo surpreendente perto do final da corrida.

Carlos saltou por cima de um gradeamento e acelerou ao máximo perante um muro que exigia mais balanço para ser transposto, para voltar à estrada. Quando se encontrava à distância ideal, exerceu bastante força na perna direita para saltar, erguendo a esquerda de encontro ao muro. Após o impacto, usou o seu movimento para se impulsionar bem alto. Esticou os braços e conseguiu agarrar o topo. Os seus braços queimaram quando executou a elevação, relaxando assim que passara o obstáculo. Caiu no chão, absorvendo com um agachamento simples o impacto da queda.

Ao erguer-se, chocou contra uma outra parede. Uma parede humana.

O traceur foi lançado ao chão de forma impiedosa. O ar quente a ser expelido perante a violência a que fora sujeito queimou-lhe os pulmões. Estava cansado. Um desconhecido agarrou-o e Carlos sentiu-se a ser arrastado para o interior de um camião de caixa fechada, estacionado no passeio. O homem tinha umas mãos grossas e fortes. Carlos debateu-se como podia, mas foi atirado para o interior do camião e trancado lá dentro. Um candeeiro iluminava o interior de forma fraca. O jovem estava sentado no chão, a respirar ruidosamente. Afastou-se do homem às arrecuas, parando assim que embateu numa barreira. Estava com falta de ar.

– Porra! Que pensas que estás a fazer, caraças?

O olhar do desconhecido mostrava bastante determinação e muita seriedade.

– Carlos, não deveria estar a fazer isto, mas o que se passa atualmente é demasiado perigoso para que te mantenhas na ignorância. Precisas de saber a verdade antes que seja demasiado tarde. E esse momento está prestes a chegar, por isso ouve-me com atenção.

Uma gota de suor surgiu-lhe na testa. O peito ainda lhe doía.

– O… que estás a querer dizer?

– Que corres perigo de vida.

Carlos sentiu-se desconfiado e tentou mostrar esse sentimento, rindo-se. O desconhecido, por seu turno, não alterou a sua expressão taciturna.

– Isto é uma brincadeira, certo? – A ironia não poderia ser mais notória no seu tom de voz. – É que é digno de um filme.

O homem irritou-se:

– Isto não é um filme!

Esta exclamação súbita deixou Carlos sem pio. Começava a aperceber-se de que o que estava a ouvir era bem capaz de ser realidade. Ou pelo menos o seu interlocutor acreditava piamente nisso. Uma mentira passa por verdade quando pensamos tratar-se da verdade.

– Estás a falar a sério?

– Claro que sim. Achas que tenho cara de quem anda a pregar partidas?

– Uh…

O desconhecido agitou o braço.

– Cala-te e ouve-me. Não posso estar aqui muito tempo. Há uma organização secreta que anda atrás de ti e que fará de tudo para te capturar. E quando eu digo tudo, é mesmo tudo.

Carlos arregalou os olhos. Daquela é que ele não estava à espera.

– Uma organização? Mas que raio poderei eu dar a uma organização secreta?

– Muito mais do que possas imaginar. A missão deles é algo que te transcende e sozinho não poderás combatê-los. Precisas da minha ajuda.

O jovem abanou a cabeça.

– Uma das primeiras regras que se aprende quando somos pequeninos é que jamais poderemos aceitar doces ou boleia de desconhecidos. Não é agora que vou desrespeitar a minha mãe. Agradeço a tua preocupação, mas tenho a certeza de que me safarei sozinho.

Carlos fez menção de se ir embora, mas a conversa não estava terminada. O outro deu um passo para o lado, impedindo-o de se mover.

– Sozinho, morrerás.

O sangue de Carlos gelou perante uma afirmação tão convicta. Ninguém conseguiria falar com tanta assertividade se fosse a brincar. Mas não queria dar parte de fraco.

– Isso é o que vamos ver. Não penses que me apanham com facilidade.

– Eu apanhei-te.

Carlos encolheu os ombros, furioso.

– Eu não sabia o que sei agora. É diferente. A partir de agora, vou estar alerta a movimentos suspeitos. Obrigado pela ajuda, mas não preciso de um guarda-costas.

Carlos começou novamente a andar, com o intuito de sair do camião, mas o desconhecido segurou-lhe no braço, impedindo-o de prosseguir. Olharam-se mutuamente com um ar de desafio e muita determinação.

– Carlos, estou a falar a sério. Tu podes morrer. Tens de ter muito cuidado.

Desenvencilhou-se do aperto com um safanão, mas voltou a sentir as garras a prenderem o seu braço, como se fosse um falcão.

– Esse é um problema meu. O que te interessa, também?

Nesse instante, decidiu tomar uma atitude completamente irresponsável, mas que poderia resultar pela imprevisibilidade do gesto.

Esmurrou o homem em cheio no olho.

Apanhado de surpresa, ele afrouxou o aperto e, assim que Carlos se apercebeu dessa brecha, iniciou a corrida mais importante da sua vida.

A corrida pela sobrevivência.

Abriu a porta do camião com um empurrão e saltou para o exterior.

– Carlos, espera. Não sejas burro, tu precisas de mim!

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