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A Mão Que Mata
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A Mão Que Mata
E-book394 páginas7 horas

A Mão Que Mata

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Sobre este e-book

Uma casa. Dez pessoas. Alguém não sairá com vida.


Naquela fria manhã de inverno, a família Ávila acordou em sobressalto: na sala de estar, jaz a tia Manuela numa poça de sangue. A vítima não era adorada pelos familiares, mas nenhum tinha motivos para a querer morta, portanto o homicídio só poderá ser resultado de um assalto.


O inspetor Bruno Saraiva da Polícia Judiciária é chamado para investigar o caso e rapidamente conclui que o assassino não só está naquela casa, como é alguém conhecido de todos.


As opiniões dividem-se e a família Ávila não parece muito disposta a colaborar com a polícia, até que é encontrado um segundo cadáver na mansão da Serra de Sintra...

IdiomaPortuguês
EditoraCultura
Data de lançamento31 de mai. de 2021
ISBN9789899039490
A Mão Que Mata

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    A Mão Que Mata - Lourenço Seruya

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    "

    – Parece-me óbvio que o assassino está, neste momento, nesta sala.

    As palavras gelaram-lhes o sangue. A sensação foi quase literal: como se uma corrente de ar gélida tivesse invadido aquele espaço.

    a mão que mata

    a mão que mata

    lourenço seruya

    uma marca

    info@culturaeditora.pt I www.culturaeditora.pt

    © Lourenço Seruya e Cultura Editora

    A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

    Título: A Mão Que Mata

    Autor: Lourenço Seruya

    Revisão: Rita França Ferreira

    Paginação: Cultura Editora

    Capa: Vera Braga

    ISBN: 978-989-9039-49-0

    Edição em papel: maio de 2021

    Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo eletrónico, mecânico, fotocópia, fotográfico, gravação ou outros, nem ser introduzida numa base de dados, difundida ou de qualquer forma copiada para uso público ou privado, sem prévia autorização por escrito do Editor.

    Para os meus sobrinhos,

    Matilde e Rodrigo

    Recorte do jornal Diário de Notícias

    Empresário encontrado morto em casa.

    País. Henrique Ávila tinha 79 anos e foi encontrado morto na sua casa de Sintra, deixando uma fortuna avaliada em 30 milhões de euros.

    O multimilionário Henrique Ávila morreu ontem na sua mansão da Serra de Sintra, vítima de ataque cardíaco. Tinha 79 anos e era o fundador da conhecida empresa Conservas D’Ávila.

    O empresário era viúvo e tinha três filhos: Alexandre, António e Madalena, a quem deixa uma fortuna estimada em 30 milhões de euros. Madalena é casada com o deputado e comentador político Carlos Sousa Campos, que recentemente apresentou a sua candidatura à presidência do Partido Nacional Democrata.

    Fonte próxima da família lamenta a morte de Ávila e alega que este, apesar da idade, era saudável e não sofria de nenhuma doença. Os filhos recusaram prestar declarações à imprensa, mas a mesma fonte revelou que «foram completamente apanhados de surpresa pela morte do pai e estão de rastos.»

    Henrique Ávila era licenciado em Engenharia Mecânica e fundou as Conservas D’Ávila aos 30 anos. Manteve-se como presidente do conselho de administração da empresa durante 45 anos, tendo vendido a sua quota aos 75. Por essa altura, há 4 anos, o empresário deu uma entrevista ao Público e referiu que «está na altura de sair de cena. Quero aproveitar a reforma para estar com a minha família. A minha vida profissional obrigou-me a demasiadas ausências.»

    Para além da empresa de enlatados, Ávila também teve negócios no ramo imobiliário e no setor automóvel.

    O horário e local das cerimónias fúnebres são, até ao momento, desconhecidos.

    1

    Um mês depois

    Naquela manhã de inverno, Sintra abriu os olhos no meio de um denso nevoeiro.

    Tinha chovido na noite anterior e as estradas ainda estavam molhadas. Pequenas gotas de água descansavam em cima de algumas folhas de árvores e plantas, algumas escorregando lentamente até se soltarem e caírem no chão frio.

    Na grande casa pertencente à família Ávila, reinava o silêncio. Ficava em plena Serra de Sintra, a poucos minutos da Quinta da Regaleira. Tinha sido construída em pedra escura, com alguma trepadeira e musgo a cobrirem a fachada e estava envolta numa névoa esbranquiçada e húmida.

    O silêncio era, apenas, ocasionalmente preenchido pelo chilrear de uma carriça que por ali andava.

    Cláudia foi a primeira a acordar.

    Desligou sem querer o alarme do telemóvel, em vez de o prolongar por mais cinco minutos, adormecendo de novo. Quando, por fim, despertou e viu as horas, saltou da cama num ápice, tomou um banho rápido e vestiu-se.

    O quarto dela tinha um pequeno corredor que o ligava diretamente à cozinha e, ao percorrê-lo, sentiu logo uma grande diferença de temperatura. Arrepiou-se e colocou os braços à volta da cintura, tentando aquecer-se um pouco. Mal entrou na cozinha, acendeu a lareira situada no canto e abriu as cortinas, deixando a luz entrar e clarear o espaço.

    Quando o senhor engenheiro morrera, um mês antes, Cláudia pensou que iria ficar desempregada e entrou numa grande aflição. Henrique Ávila era viúvo e vivia sozinho; os filhos Alexandre, António e Madalena pouco lá iam e não pareciam querer ficar com a enorme propriedade, por isso, concluiu que se iam desfazer da casa.

    Contudo, na semana seguinte à morte do senhor engenheiro, teve uma surpresa. António e Luísa, sua mulher, tinham falado com ela e com Hugo, o jardineiro, explicando-lhes que faziam tenção de comprar a casa aos irmãos de António e que queriam mantê-los como empregados.

    Como já passava um pouco das nove horas, Cláudia preparou a mesa o mais rápido que conseguiu. Estava precisamente a colocar os frascos de mel e geleia no centro da mesa, quando ouviu ao longe vozes e passos a descer as escadas.

    – Bom dia, Cláudia – cumprimentou Luísa, entrando de mão dada com a filha.

    – Olá, Cláudia! Já viste o meu amigo Tobias? Dormiu comigo – Leonor apontou para um urso de peluche bege que trazia pela mão.

    – Bom dia! Já vi, sim senhora, é muito bonito. E tem um casaco bem engraçado – elogiou Cláudia. Colocou a cafeteira a ferver na mesa e o cesto com as torradas. António serviu os cereais e o leite a Leonor e encheu a sua chávena de café.

    Oito anos os separavam: António tinha cinquenta e Luísa quarenta e dois. Não sendo uma mulher vistosa, também não se podia dizer que fosse feia. Destacava-se pela estrutura elegante, que fazia com que qualquer peça de roupa lhe assentasse bem.

    Ele era dono de um cabelo castanho forte e de uns olhos pequenos da mesma cor. Até há alguns anos, muita gente o apelidava de Farol, dado que os seus olhos varriam todas as direções em busca de mulheres bonitas. Desde que conhecera Luísa, vagueavam consideravelmente menos.

    – Cláudia, está tudo perfeito, obrigada. Se não se importa, podia entreabrir as janelas dos quartos, por favor? Para quando os meus cunhados e a tia chegarem, estarem arejados. Com cuidado, para não entrar chuva.

    – Com certeza. Ontem à noite fiz todas as camas de lavado e limpei o pó, alguns dos quartos já não são usados há muito tempo mesmo.

    Ela preparava-se para sair, quando Luísa a chamou de novo.

    – Cláudia, o Hugo vem hoje, certo?

    – Sim, vem sempre às terças, sextas e domingos.

    – Mas hoje é feriado, virá na mesma?

    – Creio que sim. Na terça-feira quando se despediu, ele disse-me «Até sexta».

    Cláudia deixou a cozinha e subiu ao andar de cima, onde se localizavam todos os quartos.

    Enquanto trincava a torrada com geleia de marmelo, António olhava para a mulher e para Leonor, e sorria. Ambas loiras e de grandes olhos castanhos, tanto uma como outra vestiam um roupão cor-de-rosa.

    – Muito bem, querida. Comeste tudo, tudo – disse Luísa, olhando para a tigela vazia à frente da filha. – Agora, se quiseres vai brincar um bocadinho, que eu já te chamo para nos irmos vestir.

    Deu um beijo na cabeça da criança e serviu-se de mais um pouco de café.

    – Vou com o Tobias para a sala, brincar com os soldados.

    A criança ficara fascinada com uma série de pequenas figuras escuras que retratavam soldados, dispostas em cima da mesa da sala. Desde que chegaram na tarde anterior, ajoelhava-se sempre que podia em frente da mesa e movia-os de um lado para o outro, alguns saltando, lutando contra alvos invisíveis, e fazia ela própria a banda sonora dessa sangrenta batalha.

    António aproveitou a saída da enteada e recostou-se na cadeira.

    – Quero falar contigo – anunciou.

    Alexandre tinha um megafone na mão e gritava indicações a um grupo de figurantes em pleno aeroporto.

    – Ninguém olha diretamente para a câmara! Ao meu sinal, começam todos com as ações que vos foram atribuídas e só param quando ouvirem: Corta!.

    No meio daquela multidão, estava o protagonista do filme: Antonio Banderas, num fato escuro de corte impecável e sapatos pretos imaculados.

    Antonio, sólo comienzas tres segundos después de escuchar acção, vale? O. K., silêncio, por favor! Som! Claquete!... E… ação!

    O grupo de figurantes previamente ensaiado, começou a mover-se pela zona de check-in, retratando passageiros em busca do respetivo balcão, atarefados com malas e sacos, despedindo-se de familiares, todos numa azáfama própria de um aeroporto.

    Nesta cena, Antonio apenas tinha de caminhar por entre as pessoas, seguro e determinado, mas também cauteloso, não deixando de olhar para os lados para se certificar de que não estava a ser seguido.

    – Corta! Muy bien, Antonio, gracias! Obrigado, figuração! Vamos repetir a cena de outro ângulo. Mantenham as vossas movimentações tal como fizeram nos outros takes. Antonio, vamos a cambiar el plano y repetir la escena.

    Antonio sorriu-lhe e assentiu. Alexandre sorriu-lhe de volta. Nem acreditava que estava finalmente a realizar o filme que tinha escrito tanto tempo antes e que tinha conseguido orçamento suficiente para contratar Antonio Banderas para protagonista. Era a primeira vez que o ator participava numa produção portuguesa, — não havia dúvidas de que o filme ia ser um sucesso de bilheteira e que muito facilmente o conseguiriam exportar para outros países.

    Antonio avançava lentamente, vindo na sua direção, seguramente para pedir alguma indicação. À medida que se ia aproximando, Alexandre começou a sentir um doce odor a invadir-lhe as narinas. O espanhol estava já frente a frente consigo, mas não articulava nenhum som. Alexandre queria-lhe perguntar se estava tudo bem, se precisava de alguma coisa, mas parecia que tinha a garganta presa, impedindo-o de emitir qualquer som. O cheiro, apesar de agradável, era cada vez mais intenso e Antonio tinha-lhe colocado uma mão na face esquerda, sorrindo devagarinho. Alexandre sentiu-se desconfortável, mas algo o impedia de se mexer, parecia que tinha os pés colados ao chão. Até que o ator começou a aproximar a cara cada vez mais da sua e os seus lábios tocaram-se lentamente.

    – Não!!

    Alexandre acordou num sobressalto e com o coração acelerado, o suor a escorrer-lhe pela testa. Ainda estremunhado, piscou os olhos e a figura de Vera desenhou-se à sua frente.

    – Que foi, meu amor? Não me digas que já não sei beijar como deve ser! – a mulher tinha o olhar envolto de admiração.

    – N… Não. Claro que não – ainda lhe custava articular o pensamento com a fala. – Desculpa… Estava a sonhar.

    – Pois, eu calculei. E quem era a felizarda? – perguntou Vera, divertida.

    – Ah!!, felizarda? Ah!… – fez uma pausa, tentando recapitular cada momento daquele sonho. – Não era uma felizarda, era um felizardo.

    – Um felizardo? Vais-te virar para a ala masculina, é?

    Alexandre sorriu por um momento. Depois puxou a mulher para si, adorava sentir o corpo dela pressionado contra o seu.

    – Achas mesmo que me vou virar para um homem, quando tenho uma mulher linda como tu ao meu lado? – foi intercalando as palavras com beijos na boca e no pescoço de Vera.

    Ela já tinha tomado banho e Alexandre sentiu com agrado um cheiro a champô e a sabonete. De olhos fechados e cabeça inclinada, Vera deixara a água quente do chuveiro escorrer por si abaixo durante longos minutos. Normalmente, não tinha tempo para estar assim no duche, dado que ainda tinha de comer alguma coisa antes de sair e três transportes públicos para apanhar. O dinheiro escasseava e o carro era um luxo que apenas conseguiam utilizar alguns fins de semana.

    Vera continuava deitada em cima dele. Recuou dezasseis anos e sorriu ao lembrar-se do momento em que se tinham conhecido. Eram ambos assistentes de realização numa telenovela e tinham embirrado um com o outro desde o primeiro dia. Ela era estagiária, ele já levava mais de dez anos de avanço em termos profissionais. Algumas semanas depois, a embirração dera lugar a algo maior, que os unia até hoje.

    Atualmente, Vera tinha quarenta anos e o marido cinquenta e dois.

    Volvidos dezasseis anos desde a altura em que se conheceram, Alexandre tinha agora uma imensidão de cabelos brancos a fazerem companhia aos cabelos castanhos. A barba também assumira um tom grisalho e algumas rugas marcavam-lhe a testa e a zona dos olhos. Estes últimos consistiam em dois grandes círculos de um tom verde-claro.

    De repente, ele lembrou-se do que tinham combinado para esse dia.

    – Falaste com o meu irmão? A que horas é suposto estarmos lá?

    – Sim, liguei-lhe ontem e ele disse que nos esperavam a todos para o almoço – respondeu Vera. – Ele contou-me que a tia Manuela também ia.

    – Pois. Calculei que também a convidassem.

    Vera sentiu o desânimo na voz do marido.

    – Alex, se quiseres, podemos ir passar só o dia de hoje com eles e voltamos para casa. Não temos de lá ficar as quatro noites.

    Ele refletiu por uns momentos. Não lhe apetecia mesmo nada ter de privar com a tia. Por outro lado, a ideia de passar algum tempo com os irmãos em casa dos pais começava a agradar-lhe. Não que ele se sentisse feliz e tranquilo naquela casa, as memórias do tempo em que lá vivera eram um tanto conturbadas.

    – Não, nós vamos.

    – Tens a certeza?

    – Tenho. Era o que faltava não irmos.

    Este sim, era o Alexandre por quem ela se tinha apaixonado. Tão poucas vezes o tinha visto assim, ultimamente...

    – Bem, está na hora do pequeno-almoço. Senhor dorminhoco, levante-se e venha-me ajudar a preparar a comida, que ainda temos de fazer a mala.

    Vera levantou-se e vestiu um roupão cor de pêssego. O espelho ao lado da cama refletiu um corpo alto e esguio e um rosto mais comprido que largo. Uns olhos castanhos intensos condiziam com a cor do cabelo.

    – Vamos lá, então – Alexandre saiu da cama e espreguiçou-se em pé, sentindo algumas partes do corpo a estalar. Colocou-se por detrás dela e abraçou-a pela cintura, ambos de frente para o espelho, a observarem a própria imagem refletida.

    Ela entrelaçou as mãos nas dele e encostou a nuca ao peito.

    – Achas que vai ser um fim de semana inesquecível?

    Ele sorriu e respondeu-lhe:

    – Não tenhas dúvidas.

    – Fiquei muito sensibilizado com esta tua ideia, mas confesso que preferia que não tivesses convidado a nossa tia – António falou devagar, mas num tom firme.

    Luísa cruzou o olhar com o dele e baixou a chávena.

    – Não digas isso, Tó… A tia Manuela é a vossa única tia viva. O teu pai não tinha irmãos e a tua mãe só a tinha a ela, acho que faz todo o sentido incluí-la nestas partilhas.

    – Não concordo. Ela não é irmã do meu pai, era irmã da nossa mãe.

    – Certo, mas ela é a única família que vocês têm. Além disso, não tem marido nem filhos – continuou Luísa.

    – Com aquele feitio, achas que alguém a aturava?

    A mulher olhou para ele com reprovação.

    – Não sejas assim. Toda a gente tem defeitos, mas a tua tia tem um grande coração.

    António desatou a rir à gargalhada.

    – Vê-se mesmo que não cresceste com ela. A nossa mãe tinha um bom coração, a tia nem por isso. Sempre foi uma azeda.

    – Ela deve ter estado sempre tão sozinha. Nunca casou, não teve filhos… No fundo, vocês acabam por ser os filhos que ela nunca teve.

    – Sim, mas isso não justifica a antipatia constante dela. Nem quando éramos crianças ela era afetuosa connosco. Lembro-me de que era um suplício quando os pais nos deixavam entregues a ela.

    Luísa preparava-se para argumentar que ele próprio também não tinha filhos de sangue, mas tomou consciência de que nele isso se traduzia num carinho desmedido por Leonor. Pelos vistos, com a tia tinha sido exatamente o oposto.

    – Independentemente disso tudo, achei que era nosso dever também convidá-la para passar cá estes dias e escolher algumas coisas para levar para casa dela. – Virou-se de frente para o marido e apontou-lhe um dedo ameaçador, mas sorrindo. – Portanto, fazes o favor de a tratar bem e de a fazer sentir-se acolhida. Lembra-te de que é a única irmã da tua mãe e a única família que vos resta.

    António inspirou fundo e esfregou a testa.

    – Prometo que vou fazer um esforço.

    A mulher sorriu e fez-lhe uma festa na mão.

    – Vou-me arranjar. Ainda quero ir ao supermercado antes de almoço, comprar umas coisas para recebermos os nossos hóspedes como deve ser. Queres alguma coisa?

    – Pensas sempre em tudo – António sorriu-lhe e respondeu que não precisava de nada.

    Que bom que era ter Luísa ao seu lado. Despertava nele os melhores impulsos e sentimentos, sempre tão carinhosa, tão atenta aos outros, sempre disponível para dar uma ajuda. Fora dela, a ideia de juntar os seus irmãos, Alexandre e Madalena, naquele fim de semana prolongado. Luísa tinha muitos irmãos e eram uma família muito unida, pelo que lhe fazia uma certa confusão que o marido se relacionasse tão pouco com os seus.

    António tinha consciência de que não tinha um feitio fácil, mas felizmente, Luísa tinha uma paciência infindável. Só esperava que ela nunca a perdesse… Não havia hipótese de projetar a sua vida no futuro sem ela, não aguentaria essa ausência. Não suportaria separar-se dela, ou saber que estaria envolvida com outra pessoa.

    Abanou a cabeça perante tal imagem, que lhe fazia subir a temperatura e cerrar os punhos. Disse para si mesmo que era uma estupidez ter pensamentos daqueles. Luísa nunca faria uma coisa dessas.

    Madalena estava sentada na sala de jantar, tomando a primeira refeição do dia.

    Envergava um roupão de seda cinza-claro e, logo que se levantara, tinha ido à casa de banho compor o cabelo. Uma madeixa morena pendia-lhe sobre a testa, como ela tanto gostava. Somava quarenta e seis anos e era uma mulher lindíssima.

    Adorava aquele ritual matinal de tomar o pequeno-almoço com calma, sem barulho, sem pressas nem urgências. Durante a semana, o marido saía de casa pelas oito e meia e, como ela, antes das dez, nunca se levantava, a primeira refeição do dia era tomada sempre sozinha. E era esta a razão principal para esse momento lhe dar tanto prazer.

    Estavam casados há dezoito anos.

    Carlos Sousa Campos era advogado e deputado à Assembleia da República, sendo regularmente convidado para participar como comentador em programas de televisão. Era dois anos mais velho que a mulher e estava em campanha para a presidência do seu partido político.

    O ruído abafado de um autoclismo deu-lhe a impressão de que Carlos já se levantara. Barrou mais uma torrada com doce de laranja e trincou-a delicadamente, ouvindo os passos do marido a chegar à sala de jantar.

    – Bom dia – cumprimentou ele.

    – Bom dia. O jornal está na entrada, se quiseres lê-lo agora.

    O condomínio no centro de Lisboa onde viviam oferecia várias comodidades a quem conseguia lá residir, entre as quais a possibilidade de receber diariamente jornais e revistas. Eram colocados num recipiente retangular de vidro localizado no patamar, junto à porta de entrada de cada apartamento.

    – Vou lá buscá-lo. Fizeste café?

    – Não, chá – ela apontou para o bule branco e turquesa à sua frente.

    – Fazes-me café?

    Madalena levantou o olhar.

    – Perdeste as mãos, foi?

    – Porra, fazes-me o café ou não?

    Madalena deu a última trinca na torrada e limpou a boca ao guardanapo.

    – Estás com sorte, já terminei, portanto, quando for pousar o meu prato à cozinha posso pôr a cafeteira ao lume. Ou preferes café de cápsula?

    – Não, quero da cafeteira. Obrigado.

    – De nada, meu querido. Sabes que faço tudo por ti, não sabes?

    – Não ponhas muito veneno, senão, noto logo no primeiro gole e ainda consigo ligar para o 112. – Virou-lhe as costas e foi buscar o Expresso à entrada.

    Já sentado à mesa, estudou com interesse os cabeçalhos dispostos na capa do jornal. Virou a primeira página e ia precisamente começar a ler a entrevista ao dirigente de um outro partido, quando a voz incisiva de Madalena o interrompeu. Estava de pé, encostada à porta que ligava a sala de jantar à cozinha.

    – Não te demores, o meu irmão está a contar connosco para almoçar. E ainda temos de passar em casa da tia Manuela para lhe dar boleia.

    Carlos nem levantou a cabeça quando lhe respondeu.

    – Eu sei, já mo disseste ontem à noite – deitou uma olhadela ao seu relógio de pulso Patek Philippe. – Não percebo a tua pressa, ainda só são onze e vinte.

    – Espero é que não estejas a contar que eu te vá fazer a mala.

    – Não, minha querida. Eu já não conto que me ajudes seja no que for.

    – Aturo-te os pares de cornos de boca calada. Não achas suficiente? Muita sorte tens tu, em eu ser uma pessoa discreta e educada. Outra qualquer já te tinha posto a andar há muito tempo e esfregava na imprensa a tua conduta irrepreensível.

    Carlos pousou o jornal e encarou-a olhos nos olhos.

    – Se estás assim tão revoltada, porque é que não me pões a andar? Hum! – Madalena corou e virou a cara. – Ah! Espera. Não tens com que te sustentar, não é?

    – Vai-te foder!

    – Então, querida, onde estão as tuas maneiras? – abanou a cabeça em sinal de reprovação. – Já comi acompanhantes com mais educação do que tu.

    Foi apenas uma questão de segundos.

    Mal ele terminou a frase, Madalena pegou no açucareiro de prata disposto na mesa de apoio e atirou-o com força na direção do marido, que não se conseguiu desviar a tempo, dando um grito agudo ao ser atingido em cheio na bochecha esquerda.

    O açucareiro espalhara o seu conteúdo por Carlos abaixo. O branco do açúcar contrastava com o preto do seu cabelo e dos seus olhos.

    Aqueles cinco segundos pareceram uma eternidade, Madalena coberta de fúria e Carlos coberto de açúcar. Ele estava perplexo, ainda sem acreditar no gesto da mulher. Foi ela a primeira a falar.

    – É bom que limpes isso, a Clotilde hoje não vem.

    – És tão cabra… – a raiva mudava de corpo, apoderando-se agora de Carlos.

    – Ui! Então, querido? Demasiada convivência com acompanhantes de luxo e secretárias parolas? Devias escolher melhor as gajas com quem te deitas.

    – Devia era ter escolhido melhor a gaja com quem me deito todas as noites. Essa é a única que me dá dores de cabeça.

    – Com quem te deitavas todas as noites – corrigiu Madalena. Há já alguns anos, que decretara que não dormiria mais na mesma cama que ele e que o quarto de hóspedes seria, a partir dali, o novo quarto do marido. – Gostes ou não, nunca me irás pôr a andar, meu querido. Sabes perfeitamente que precisas de mim. Achas que vais ganhar votos se apareceres nos comícios com essas Cátias e Sónias ao teu lado? Mesmo que as enchas de Louis Vuitton e Chanel, nunca vão deixar de ser umas bimbas suburbanas e sem educação. – Madalena aproximou-se e baixou a voz. – Não queres que eu abra a boca e conte as tuas reuniões de trabalho até às tantas da manhã e jantares com clientes, pois não?

    A expressão de Carlos ensombrou-se. Pensou em todo o trabalho que estava a ter com a campanha à presidência do partido e um arrepio percorreu-lhe a espinha.

    – Nem te atrevas… Achas que tenho medo de ti? Achas que eu acredito, sequer, que tu eras capaz de fazer isso?

    Madalena soltou uma gargalhada, lançando a cabeça para trás.

    – Achas que não?

    – Tenho a certeza. Não abdicarás nunca desta vida. Conheço-te muito bem.

    O olhar de Madalena fixou o de Carlos e não se desviou um único centímetro.

    – Veremos, meu querido. Tens infinitamente mais a perder do que eu. Quando receber a herança do meu pai, podes ter a certeza de que a primeira coisa que faço é pôr-te a andar.

    Manuela pegou nas folhas e releu-as com prazer. Aqueles pedaços de papel eram o passaporte para uma nova fase da sua vida. Levá-los para Sintra tinha tanto de arriscado, como de necessário.

    Pegou em duas camisolas e aconchegou-as dentro da mala. Acrescentou mais um par de meias grossas, — as noites de inverno lá eram bastante frias e húmidas e o avançar da idade tornara-a bastante sensível às baixas temperaturas.

    Sentou-se na cama e recapitulou mentalmente a conversa. Ficaram de se encontrar na sala de estar às duas da manhã, de forma a poderem comprovar as respetivas intenções. Manuela inspirou fundo e sorriu. Finalmente, sentia-se comandar as rédeas da sua vida. Finalmente, sentia vontade que o futuro se concretizasse. Pela primeira vez, em muitos anos, sabia que o amanhã lhe traria coisas boas.

    Dobrou cuidadosamente as folhas e pô-las dentro da mala, camufladas entre as roupas. Fechou-a e passou a mão pelo tecido que a envolvia. Um arrepio preencheu-lhe o corpo. Será que desencadeara algo maior que a ultrapassava?

    Agora é tarde para arrependimentos.

    Sabia o que queria e sabia o que tinha a fazer. Não eram essas as únicas certezas de que precisava?

    Gostava de ter a certeza de que não me vai acontecer nada de mal.

    E, de repente, compreendeu que essa sua incerteza era o melhor trunfo da outra pessoa. Essa fraqueza poderia deitar por terra a sua intenção.

    Aguenta-te. Sê firme.

    Não havia outra maneira de chegar lá. Ponderou os danos colaterais e ergueu o queixo.

    2

    Um dia depois

    Apesar de ser sábado, o alarme do telemóvel do inspetor Bruno Saraiva estava programado para as sete da manhã.

    Mesmo aos fins de semana e folgas, gostava de acordar bem cedo e absorver a luz e energia da manhã.

    Assim que as luzes do telemóvel começaram a acender-se e a vibração a fazer-se ouvir, Bruno abriu os seus olhos cor de avelã e deslizou o dedo pelo ecrã, remetendo novamente o quarto para o silêncio.

    Esfregou os olhos e espreguiçou-se por baixo do lençol e do edredão, afastando-os de seguida num só gesto, para ir abrir as portadas do quarto. Um céu cinzento e molhado foi aquilo que avistou da varanda. Maravilhoso. Adorava correr à chuva.

    Depois de vestir uns calções curtos e uma T-shirt, vestiu um impermeável fininho. Saiu de casa apenas com a chave no bolso do impermeável e, dez minutos depois, já estava à beira-rio, perto da estação fluvial de Belém, dando início à corrida.

    O dia estava a começar e havia pouca gente na rua, apenas alguns corajosos que, tal como ele, se aventuravam a ir correr àquela hora de um sábado. Graças à chuva miudinha, ainda menos corredores se avistavam.

    Passou pelo Padrão dos Descobrimentos e deixou-se envolver pelo ar frio da manhã. À medida que se aproximava da Torre de Belém, sentia as gotas de água escorrerem-lhe pela cara e pela roupa, confundindo-se facilmente com a transpiração. O cabelo castanho-escuro estava já todo encharcado também. Aquela sensação de estar à chuva, que tanta gente repudiava, era para si uma maravilha inexplicável.

    Exatamente ao mesmo tempo, todos os postes de iluminação, que a sua vista conseguia alcançar, apagaram-se, estando agora totalmente dependente da luz natural. Ao passar a Torre, cruzou-se com dois homens ligeiramente ofegantes e que lhe acenaram, habituais madrugadores como ele. Prosseguiu mais um pouco na sua jornada e quando chegou à Fundação Champalimaud, deu a volta para trás.

    Bruno tinha trinta anos. Aquele momento da corrida era muito solitário e ele gostava bastante disso.

    Chegando à meta por si estabelecida, desacelerou o passo e gastou alguns minutos a fazer alongamentos. No fim, atravessou a ponte por cima da linha de comboio e caminhou tranquilamente até casa.

    Bruno mudara-se há cerca de três meses de casa dos avós para um pequeno bairro na zona de Belém, composto essencialmente por vivendas de tamanho médio. Ficava bastante perto da Ajuda e do Restelo. Era um local muito calmo, cujos moradores eram, na sua maioria, reformados e idosos. Parecia uma aldeia em ponto pequeno, onde quase todos se conheciam nem que fosse de vista.

    Comprara uma casinha branca de traça antiga, cujo interior fora recentemente remodelado. As janelas tinham portadas verdes e vidros duplos. O pequeno jardim relvado nas traseiras foi um dos pontos que o conquistou aquando da sua primeira visita, bem como a varanda do seu quarto, que tinha uma vista boa para o rio Tejo.

    Ao entrar em casa, dirigiu-se à cozinha e bebeu uma grande quantidade de água. Quando pousou o copo reparou, com desagrado, no caos que ali reinava: uma pilha de pratos, copos e talheres sujos avolumava-se no lava-louça e no escorredor, lembrando uma pirâmide desconjuntada.

    Abanando a cabeça, despiu o impermeável e colocou-o dentro da máquina de lavar. Há vários dias, que Bruno andava a adiar a lavagem daquele monte sem fim de louça e da montanha de roupa suja que estava espalhada pelo seu quarto e pela casa de banho. Tinha estado a semana inteira a fingir que não via aquela desordem toda, prometendo a si mesmo que no sábado de manhã faria uma limpeza geral à casa.

    Suspirou desanimado perante a quantidade de coisas que tinha de fazer para pôr a casa num brinco. Por várias vezes, naqueles três meses, se lembrou de quão confortável era viver em casa dos avós. Não se arrependia da decisão de ter ido viver sozinho, mas, naquelas alturas das lides domésticas, havia sempre uns segundos em que quase desejava não ter saído de lá.

    Bem, mas antes disso tinha de restabelecer forças e tomar um grande

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