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Práticas Profissionais e Resistências: Movimentos Em Uma Rede De Saúde Mental
Práticas Profissionais e Resistências: Movimentos Em Uma Rede De Saúde Mental
Práticas Profissionais e Resistências: Movimentos Em Uma Rede De Saúde Mental
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Práticas Profissionais e Resistências: Movimentos Em Uma Rede De Saúde Mental

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Práticas profissionais e resistências: movimentos em uma rede de saúde mental aborda os meandros do cuidado em rede. Tão almejado no Sistema Único de Saúde, os arranjos do trabalho em rede são permeados por normativas, protocolos, solidariedades, parcerias, articulações, conflitos e resistências, pois, envolvem os fluxos entre serviços e a circulação de sujeitos: usuários, profissionais e gestores. Nesse processo complexo, as resistências são quase sempre entendidas negativamente como barreira, insensatez ou indisposição, mas raramente se investiga as razões pelas quais as resistências ocorrem, as análises que elas estimulam e as transformações sociais que elas promovem. Faltam, portanto, estudos sobre "o que querem os que não querem", parafraseando Gilles Monceau.
Diante de um movimento de resistência em uma em rede de saúde mental de Campinas/SP, o autor, como um participante-pesquisador, buscou compreender as motivações dos profissionais-resistentes e acompanhar os seus efeitos no cotidiano durante um ano, por meio de observação participante e entrevistas. Apoiado nas contribuições de autores clássicos da Análise Institucional, como René Lourau e Georges Lapassade, e mais recentes, como Gilles Monceau, assim como nas ideias de Michel Foucault e de autores da Atenção Psicossocial e da Saúde Coletiva, o autor analisa as movimentações dos sujeitos para lidar com as normativas das políticas públicas e gerenciais na área da saúde mental, guiadas pelo enquadre das práticas profissionais e pelos ideais neoliberais. Integra, dessa forma, os estudos de articulação entre Análise Institucional e Saúde Coletiva, que foram inaugurados por sua orientadora Solange L'Abbate. Em meio às análises teóricas, o autor compartilha suas imaginações por meio de figuras a fim de ampliar as perspectivas analíticas. Sempre em busca de aberturas, ressalta como a análise pelas resistências faz emergir "outros quereres" e pode ser um recurso para o coletivo aumentar as possibilidades de escapar da estreita reprodução normativa e, ao mesmo tempo, alargar os horizontes de criação, produzindo vivacidade e movimento na rede de cuidado.
Por trazer contribuições conceituais e práticas para a construção do cuidado em rede permeada por adversidades políticas e sociais,
o livro se destina a toda coletividade que trabalha com saúde mental, atenção básica, saúde coletiva e análise institucional.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de abr. de 2021
ISBN9786558206163
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    Práticas Profissionais e Resistências - Daniel Vannucci Dóbies

    291

    INTRODUÇÃO

    Nos serviços públicos de saúde, a construção de rede de cuidado para pessoas em sofrimento mental é desejável pela própria complexidade dos casos, que convida ao compartilhamento de conhecimento e práticas entre os diferentes profissionais e serviços, mas a tarefa convive com as adversidades da formação hegemonicamente especializada dos profissionais, dos modos de produção fragmentadores do cuidado, das limitações de recursos e ações, entre outras. Sem contar as contingências que ora sopram a favor ora contra as construções de maior entrelaçamento de relações e ampliação do alcance das práticas.

    As indagações se encadeiam: como construir rede de cuidado agregando diversos profissionais e serviços de saúde atravessado pela lógica neoliberal que convida à produção de procedimentos, quase sempre, ignorando as necessidades da população e dos sujeitos que adoecem e recorrem aos serviços públicos de saúde? Com a primazia do mercado na área da saúde, como produzir ações de cuidado com qualidade? Como coletivizar as ações agregando diversos conhecimentos multiprofissionais na elaboração de um projeto terapêutico num mundo atravessado pelos ideais neoliberais de individualismo e competitividade? O que acontece, nessa conjuntura, em um município com histórico de implantação de serviços inovadores que tem sofrido com fortes investidas da lógica da produção de mercado nas ações da saúde pública? Quais são os efeitos disso nos investimentos para saúde mental que, em grande parte, ocupa-se de sujeitos e populações marginais da sociedade regida pela competitividade e pela produção individual? Aliás, em meio a tudo isso, o que é exigido do trabalhador cuja tarefa é produzir cuidado na área de saúde mental em um município de grande porte, como Campinas, com um governo orientado por mecanismos de regulação a despeito do cotidiano desafiador? Como fica o trabalhador que, ao longo da sua trajetória, percebe as condições de trabalho precarizarem e aumentarem as dificuldades para articulação com outros serviços?

    Tais perguntas estão entre os motores para o desenvolvimento deste livro, que procura encontrar respostas nas ações cotidianas de um grupo de profissionais com responsabilidade de cuidado em saúde mental da população de uma das regiões mais periféricas e vulneráveis do município de Campinas. Para tal, investiga, sobretudo, os movimentos de resistência, entendendo que as transformações não ocorrem sem deparar-se com condutas críticas às pretensas mudanças e que essas tensões são campos para conhecimentos sociais e históricos mais amplos.

    O estudo desse grupo específico, do qual sou membro, parte do entendimento de que as práticas profissionais explicitam o conjunto de transformações sociais e institucionais que permeiam o trabalho cotidiano de suas ações e o fato de analisá-las, espera-se, ofereça material de conhecimento sobre tais atravessadores e como lidar com eles.

    Motivam esse trabalho aspectos ligados à minha trajetória profissional e à conjuntura com influências neoliberal na saúde no nosso país e seus reflexos em Campinas/SP, em particular, na área de saúde mental.

    Trajetória profissional: contato com o trabalho em rede e com a resistência

    Diversas problemáticas atravessam uma atividade profissional, mas algumas emergem com mais intensidade no cotidiano e no decorrer de uma trajetória de trabalho de cada pessoa. Certamente, aquilo que se destaca, guarda relação com a história pessoal, a formação profissional e os fatos relevantes do momento, além de outros fatores mais ou menos evidentes. Mais do que influenciar na percepção dos fatos, tudo isso impulsiona as práticas profissionais.

    Diante disso, apresento alguns fatos do meu percurso como profissional da saúde, para elucidar certas motivações para este estudo e alguns pontos de partida. Essa tarefa tem sua relevância, especialmente quando se utiliza do referencial teórico-metodológico da Análise Institucional, pois expõe traços da implicação do pesquisador.

    Implicação é um conceito que foi desenvolvido no âmbito da Análise Institucional, cujos fundamentos foram desenvolvidos por René Lourau (2014), no qual não há menor expectativa de neutralidade, pois o pesquisador está inserido no campo de observação, razão pela qual Lourau (2004) ressalta que a implicação deve ser incluída nas análises da pesquisa. Lourau (1993) afirma que a noção de implicação é o escândalo provocado pela AI, justamente por romper com a pretensão de objetividade da ciência, que recomenda a não implicação, ou seja, a neutralidade do pesquisador.

    A implicação, segundo Barbier (1985, p. 120), contempla três dimensões – psicoafetiva, histórico-existencial e estrutural-profissional – e é definida como

    [...] o engajamento pessoal e coletivo do pesquisador em e por sua práxis científica, em função da sua história familiar e libidinal, de suas posições passada e atual nas relações de produção e de classe, e de seu projeto sócio-político em ato, de tal modo que o investimento que resulte inevitavelmente de tudo isso seja parte integrante e dinâmica de toda atividade de conhecimento.

    Na minha trajetória profissional percebo que a questão do trabalho envolvendo diferentes profissionais e serviços é algo presente desde os estágios na graduação em Psicologia na USP de Ribeirão Preto, certamente relacionada às escolhas por inserções em serviços públicos.

    Em 2004, animado com a Saúde da Família que almejava um trabalho multiprofissional mais próximo à comunidade, fui estagiar numa unidade de atenção básica, onde entrei em contato com conflitos no processo de trabalho que envolviam: dificuldades no relacionamento pessoal, relações entre as diferentes profissões, a falta de caracterização de algumas profissões, divergências profissionais, convívio de diferentes modelos na mesma unidade de saúde,⁴ e a relação da unidade com a comunidade, com outros serviços e outras instâncias de gestão. O grupo de estagiários era estimulado a tratar das questões que envolviam o trabalho em equipe, sem descolar as atividades mais específicas do psicólogo de todo o conjunto do cuidado em equipe: tudo estava conectado.

    Em outro estágio – no ano seguinte – pude vivenciar de forma mais clara que para conseguir desenvolver uma atividade esperada de um psicólogo era necessário lidar com as dificuldades na organização do trabalho, na relação com os funcionários, com a coordenação local e com o contexto social do estabelecimento e sua população. Nesse caso, tinha a tarefa de realizar uma atividade educativa com um grupo de crianças e outra com adolescentes num estabelecimento da assistência social localizado na periferia de Ribeirão Preto/SP, operado, quase completamente, por funcionários sem qualquer formação específica, que haviam sido recusados por outros serviços da prefeitura.

    Essas experiências me proporcionaram a percepção do quanto a prática profissional está atravessada pelos arranjos da organização, exigindo análises e ações para além da atividade em si.

    Terminada a graduação, passei a atuar na área da saúde, especialmente na atenção básica. Fiz aprimoramento profissional em Psicologia em Saúde Pública pela Universidade Estadual Paulista (Unesp)/Botucatu em 2006 e residência multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) entre os anos de 2007 e 2009.

    No aprimoramento, as minhas atividades concentraram-se na área de saúde mental do Centro de Saúde Escola, que mantinha um funcionamento ambulatorial com profissionais responsáveis por atividades específicas – atuando individualmente – e poucas articulações de trabalho em equipe. O acesso para os usuários era limitado a determinados períodos em que a equipe fazia triagens e colocava-os em lista de espera. Insatisfeito com a forma de funcionar desse serviço, sobretudo por notar que ela não atendia às necessidades dos usuários, elaborei um projeto de pesquisa sobre o trabalho em equipe na área de saúde mental desse centro de saúde, proporcionando o contato com a literatura sobre o tema.

    A residência, por outro lado, colocou-me em contato, desde o início, com diversos atravessamentos da prática profissional. Eu fazia parte da primeira turma do curso na Universidade Federal de São Carlos e havia necessidade de construir a própria residência junto à Universidade e à Prefeitura Municipal de São Carlos/SP, o que exigiu a participação em diversas reuniões e comissões. Eram muitos desafios: a formação em serviço, o exercício da profissão de psicólogo na Estratégia Saúde da Família, a presença de diversas profissões de saúde no mesmo programa, o financiamento do programa, a relação com as equipes, a relação com tutores e preceptores. Todos foram aspectos relevantes ao longo dos dois anos da residência, que exigiram reflexões a respeito da minha atuação como residente, como psicólogo e como profissional de saúde; bem como do Sistema Único de Saúde (SUS), seus desafios e meios de sustentação. Isso tudo exigia e proporcionava atuações coletivas, muitas vezes num campo de disputa de interesses, o que ainda não havia experimentado com tanta intensidade na minha trajetória profissional.

    O meu primeiro contato com as ideias do SUS havia sido na graduação, mas a residência foi o período em que me senti mais convocado a atuar a seu favor, pois estava em contato com atuação ético-política de diversos profissionais em formação para a construção de práticas transformadoras no cuidado junto aos usuários e desafiado por um programa que, baseado no quadrilátero da formação proposto por Ceccim e Feuerwerker (2004), aspirava a uma noção ampla da saúde abarcando aspectos do ensino, gestão, atenção e controle social. A saúde colocada em uma dimensão mais ampla levou-me ao contato com autores como Gastão Wagner Souza Campos, Emerson Elias Merhy e Luiz Carlos Cecílio, que nos alimentava com discussões que borravam o tal quadrilátero e oferecia instrumental de trabalho com conceitos-ferramentas como acolhimento; clínica ampliada; apoio matricial e institucional; núcleo e campo de saber; tecnologias leve, leve-dura e dura; trabalho vivo; necessidade de saúde etc.

    Particularmente interessado no cuidado em rede, desenvolvi uma pesquisa para a conclusão do curso,⁵ na qual entrevistei profissionais de saúde mental dos diversos serviços de São Carlos. No estudo, verifiquei uma lógica de cuidado bastante desarticulada, com os serviços encerrando-se em si mesmos, com profissionais isolados e sem poder de ação coletiva e propositiva. Havia queixas e propostas em cada local, mas nenhuma articulação com outros serviços.

    Durante a residência, entretanto, vim para Campinas/SP para fazer um estágio eletivo no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (Caps AD) Independência – parte do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira⁶ –, motivado pelas informações a respeito da história do município na área de saúde mental, que indicava um funcionamento na perspectiva do Modo de Atenção Psicossocial.⁷ Estava interessado, sobretudo, no cuidado aos usuários de álcool e outras drogas em um serviço que fosse aberto, com proposta de atuação em rede e orientado pela Estratégia de Redução de Danos.⁸ A escolha por um serviço destinado a esse público específico ocorreu porque encontrava dificuldades na minha prática junto a ele, num município onde não havia serviços de referência para a população adulta⁹ e os usuários em estado mais grave, num modelo de atenção mais manicomial, eram encaminhados para internação em hospital psiquiátrico na cidade vizinha (Araraquara/SP), onde poderiam normativamente permanecer por um período de cinco a 28 dias.

    Nesse estágio no Caps AD, acompanhei como a equipe buscava construir projetos terapêuticos singulares, com ampliação de formas de cuidado sem pautar-se por definições protocolares, e também tive contato com a rede de saúde mental do município ao participar de reuniões externas. A diversidade de serviços, assim como os arranjos que proporcionavam encontros e a presença de profissionais com a incumbência de articular os serviços da rede (apoiadores), permitiram vislumbrar um tipo de trabalho muito diferente do que estava acostumado em São Carlos, ampliando a dimensão de possibilidades de cuidado na saúde mental.

    Cerca de quatro meses depois de terminar a residência, em junho de 2009, fui contratado por esse mesmo Caps AD, onde atuei até fevereiro de 2019. No cotidiano desse serviço, a construção do cuidado em rede sempre foi algo muito exigido, pois a grande maioria dos usuários acumula perdas de vínculos sociais, vários apresentam comprometimentos clínicos e, frequentemente, tais usuários são discriminados, inclusive nas unidades de saúde. O conjunto de tais condições convoca os profissionais do Caps AD a intervir em outros serviços da saúde e de outros setores para a ampliação do acesso desses usuários e melhoria na qualidade de tratamento.

    Na construção do cuidado em rede a partir de um Caps AD, é frequente a necessidade de enfrentar o julgamento moral – típico do tratamento moral embutido no modo asilar – que muitos profissionais de saúde ainda recorrem quando estão diante de pessoas que fazem uso nocivo de álcool e outras drogas, impondo-lhes, por exemplo, o isolamento social como única forma possível para o enfrentamento do problema. Ou seja, estamos falando de um trabalho de desconstrução de concepções preconceituosas-excludentes e construção de uma abordagem na lógica da redução de danos, com ampliação de possibilidades de cuidado inserido no território, exigência de uma escuta mais qualificada dos profissionais às questões dos usuários e mais dedicação na montagem de projetos terapêuticos singulares com participação efetiva desses na sua formulação. Um trabalho que, muitas vezes, é conflitante com ações nos seus diferentes âmbitos de governos, comumente submetidas à lógica de isolamento/abstinência e que serve, às vezes, para financiar comunidades terapêuticas,¹⁰ onde a pessoa passa meses sem contato com a família, o trabalho e a sua comunidade.

    Embora o modelo manicomial do isolamento tenha apresentado todas as suas limitações, e exista a prerrogativa do cuidado em rede e de base territorial presentes nas políticas ministeriais para os usuários de substâncias psicoativas, o contexto apresentado expõe as barreiras ao compartilhamento do cuidado desses usuários, que favorecem o isolamento do Caps AD na responsabilização por esse cuidado, quando não o desvaloriza. Isso impõe desafios, por exemplo, às ações de matriciamento,¹¹ que é um arranjo comumente utilizado para a articulação entre os serviços no município de Campinas. Tanto que, dentre as diversas tentativas de estruturação de matriciamentos das quais participei ao longo da minha trajetória no Caps AD, houve apenas três em que esse arranjo foi efetivamente estabelecido.

    Paralelo a isso, pude experimentar muitas mudanças na equipe de trabalho desse Caps AD, pois houve tantas saídas e trocas de profissionais, que eu me tornei o funcionário mais antigo do serviço em janeiro de 2018. As constantes mudanças trouxeram questionamentos dos colegas mais novos a respeito das minhas posições e defesas de um jeito de funcionar do serviço. Assim, experimentei ser colocado no lugar de instituído¹² ou cristalizado. Um lugar diferente do que havia experimentado no aprimoramento, na residência e no início do trabalho no Caps AD, quando eu provocava os antigos e questionava as suas práticas como simplesmente envelhecidas, muitas vezes sem uma compreensão mais ampla do contexto e das exigências do trabalho. Estar numa posição de instituído estimulou reflexões e a ponderação de que nem sempre algo apresentado como novo significa ser melhor. Pelo contrário, notei como algumas mudanças podem dar movimento e serem positivas, mas também podem precarizar e desqualificar o trabalho. As contradições institucionais apresentaram-se, desde então, mais complexas, bem como as razões para se resistir a determinadas propostas ou concepções e recusar-se a adotar certas práticas.

    Em 2012, a convite de uma amiga, fiz a disciplina oferecida pela professora Solange L’Abbate intitulada Tópicos de Ciências Sociais em Saúde – Análise Institucional: teoria e prática em Saúde Coletiva, na pós-graduação da Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O conteúdo abordado e as discussões começam a fornecer instrumental para análise das minhas práticas profissionais na complexa dinâmica institucional. No ano seguinte, passei a frequentar o Diretório de Pesquisa do CNPq Análise Institucional & Saúde Coletiva e comecei a pensar em um tema para o mestrado.

    A noção de resistência carregada de contradição despertou interesse pela possibilidade de trazer elementos para a compreensão dos movimentos dos sujeitos nos serviços de saúde.

    No início de 2013, elaborei um pré-projeto para discussão no grupo de pesquisa, em que propunha uma investigação sobre como os trabalhadores de uma unidade de saúde no município de Campinas operavam a resistência, considerando os momentos, os espaços, os recursos, as parcerias, e as ações. Apresentei a noção ainda vaga de resistência como movimento que pode tanto sustentar boas práticas e promover inovações mesmo diante de um contexto desfavorável quanto impor barreiras associadas ao comodismo na prática corrente sem abertura para novas propostas. Ao submeter o meu projeto de investigação no processo seletivo do Mestrado em Saúde Coletiva, em outubro de 2013, elegi uma unidade de atenção básica como local de estudo, considerando o potencial de atravessamentos institucionais no cuidado longitudinal de usuários que percorrem diversos serviços de saúde.

    No decorrer do primeiro ano do mestrado, a questão da resistência dos profissionais sempre esteve presente como algo que pretendia estudar, mas a dificuldade de definir melhor como estudá-la no âmbito da atenção básica sugeria a necessidade de um estudo exploratório prévio. O tempo, no entanto, era escasso para essa tarefa.

    Curiosamente, enquanto quebrava a cabeça com esse impasse, apresenta-se diante de mim, um grupo de profissionais que estava desenvolvendo uma prática de cuidado em rede, enfrentando ataques à sua continuidade. Frequentava esse grupo havia cerca de seis meses, desde uma mudança no arranjo interno do Caps AD que me levou a matriciar outros Centros de Saúde (CS). Logo nas primeiras idas às unidades, tive contato com esse grupo que lutava para manter os três encontros mensais, contrapondo-se a uma decisão encaminhada na reunião com os gestores locais e distritais que indicava a diminuição para dois encontros. Deparei-me com movimentos de resistência dos profissionais para sustentar o mesmo número de encontros, pois eles atribuíam grande relevância desse espaço para promoção de práticas qualificadas de cuidado aos seus usuários. De fora e antes de participar desse fórum, concordava com a proposta dos gestores, mas ao entrar nele passei a entender a necessidade dos encontros mais frequentes e, inclusive, comecei a defender essa ideia.

    A minha participação num coletivo de trabalhadores comprometidos com a construção do cuidado articulado em saúde mental em uma microrregião de alta vulnerabilidade social, num contexto municipal em que os arranjos inovadores estruturados ao longo da história atravessam um momento crítico, colocou-me diante da seguinte questão: como sustentar na prática o compromisso ético-político do cuidado em rede num contexto desfavorável, pautado pelo enrijecimento jurídico e organizacional e baixo investimento em inovações peculiares a cada território?

    A complexidade das situações vivenciadas pelos usuários de saúde mental exige a articulação entre serviços, convocando os trabalhadores a lutarem pela sustentação de um cuidado em rede. O histórico desse tipo de construção e de formação de espaços coletivos no município de Campinas faz com que certas práticas resistam, mesmo em momentos mais críticos. Além disso, o investimento em espaços coletivos é uma forma utilizada para enfrentar esses momentos, pois permite aos profissionais uma análise mais abrangente do contexto e das suas próprias práticas.

    Apesar de esses pressupostos oferecerem explicações pertinentes à questão anterior, surgem outras: o que faz um coletivo movimentar-se para manter o seu funcionamento? Como um coletivo faz para sustentar a sua prática? Quais são os enfrentamentos necessários? Por que alguns profissionais insistem numa prática que não recebe valorização do governo?

    Explorar a noção de resistência foi se mostrando ser um caminho pertinente em busca de algumas respostas a essas indagações. Dessa forma, ao ter contato com aquilo que tinha interesse em estudar ocorrendo numa das minhas frentes de trabalho, oportunamente, senti-me convocado a abordar a resistência de perto, na minha prática e na de meus colegas.

    Investigar como ocorre, em seus meandros, a implantação de um cuidado de saúde mental em rede no cotidiano dos trabalhadores mostrou-se relevante, pois os estudos¹³ apontam que transformações visando ao aperfeiçoamento da atenção em saúde mental efetivam-se, principalmente, pela prática dos trabalhadores.

    Elaborei, então, uma mudança no projeto de pesquisa de modo que a construção do cuidado de saúde mental em rede passou a ser o ponto de partida para a análise das práticas profissionais e os movimentos de resistência. Agora, ao invés da necessidade de uma pesquisa exploratória que denunciava um distanciamento meu com o objeto, o estudo tornou-se um desafio por ser algo muito próximo e dentro da minha prática e com os participantes sendo meus colegas de trabalho.

    As práticas profissionais, contudo, devem ser tomadas na sua dimensão institucional, incluindo elementos presentes na conjuntura social, sobretudo, na especificidade desse estudo, aqueles da área da saúde, tal como o neoliberalismo, que é marcante no processo de trabalho dessa área.

    O impacto dos avanços neoliberais nas condições de trabalho no SUS: como resistir?

    Ainda que a abordagem deste estudo esteja localizada no âmbito de serviços públicos e o neoliberalismo faça forte referência ao setor privado, não devemos desprezar o quanto a sua entrada nas instâncias do Estado é necessária para concretização dos seus ideais, pois, não se trata apenas, como alerta Cardoso e Campos (2013), de uma dicotomia mais x menos Estado, mas de uma reconfiguração do papel do Estado que passa a destinar suas ações a proteção de interesses financeiros e de mercado a despeito do provimento dos direitos sociais.

    Para Santos (2014, p. 1), o neoliberalismo, iniciado nos anos de 1980, pela hegemonia da acumulação financeira especulativa, provocou as seguintes estratégias concretas:

    [...] financeirização dos orçamentos públicos; desregulamentação financeira; privatização de funções estatais republicanas; criação de agências globais de risco financeiro e seu controle sobre as finanças dos países, suas moedas, o mercado de capitais e os próprios países; Estado mínimo (subentendido máximo para bancar a hegemonia financeira e bancária); desmonte das conquistas sociais com base em políticas setoriais universalistas de qualidade para os direitos humanos básicos como educação, saúde, transporte, trabalho, segurança e outros, com transferência dessa função ao mercado; generalizada redução da soberania dos Estados nacionais.

    Além disso, o mesmo autor acrescenta que o neoliberalismo, por meio de seus intelectuais orgânicos e comunicadores sociais, inculca nos vários segmentos sociais determinados valores-guia para ascensão social que maximiza:

    [...] o poder de consumo de bens e serviços no mercado visando o bem estar, a satisfação de direitos, a estabilidade e ascensão; o direito do consumidor acima do direito humano de cidadania; o desempenho na capacidade das pessoas de vender produtos e inovar processos de venda (empreendedorismo), não raro valendo-se de critérios enganosos de bem-estar social; a precedência do valor de mercado sobre os demais valores; e a ideia-força direcionada a jovens e adultos, de que na vida é natural e inescapável vir a ser vencedor(a) ou perdedor(a). (SANTOS, 2014, p. 2-3, aspas do autor).

    Tais bandeiras erguidas pelo neoliberalismo merecem ser consideradas uma vez que permeiam as decisões e as relações de trabalho e de cuidado na área da saúde.

    Concomitante à constituição do SUS, o neoliberalismo ganhava força no cenário mundial, redefinindo, entre outras coisas, o papel do Estado e das relações de trabalho. Tal modelo, que fortalece a ideia de um valor de mercado aos bens sociais como a saúde, também atinge o Brasil.

    O SUS, mesmo sendo uma vitória do projeto público e universalista frente ao projeto liberal-privatista, não eliminou investidas de mercado na área da saúde. Como comenta Campos (2007, p. 1.869):

    Nestas duas décadas de luta pelo SUS, observa-se uma tensão permanente entre o projeto do SUS e o derrotado (valeria interrogar-se sobre esta afirmação) projeto liberal-privatista. Esta vitória da concepção pública sobre o modelo de mercado ocorreu em um contexto em que o neoliberalismo era econômica, cultural e politicamente dominante. Uma vez aprovada a legislação que sustentava o SUS, a oposição liberal-conservadora não abaixou sua bandeira e retirou-se tímida para seu canto, observando ordeiramente a gloriosa implementação do SUS pelas forças da reforma sanitária. Nada disto; ao contrário. [...] A resistência ao SUS deslocou-se da discussão de princípios, em torno de grandes diretrizes, para elementos pragmáticos da implantação do acesso universal a uma rede ‘integral’ de assistência, procurando, contudo, sempre, buscar meios para atendê-los segundo seus interesses corporativos e valores capitalistas de mercado. Resistência permanente a cada programa, a cada projeto e cada modelo de gestão ou de atenção sugerido segundo a tradição vocalizada pela reforma sanitária. A convivência na democracia é variada e múltipla: a derrota de atores sociais e de seus projetos é situacional e costuma não os eliminar do cenário político e institucional. Assim os interesses e valores derrotados sempre retornam, sempre, ainda que travestidos com a moda conveniente em cada conjuntura. (aspas do autor e negritos meus).

    O embate segue nos anos mais recentes, como se verifica na Carta de Goiânia, apresentada no encerramento do Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva realizado em 2015, na qual pesquisadores, docentes, estudantes, profissionais e militantes da Saúde Coletiva manifestam seu desacordo com os rumos do governo federal:

    Na saúde, em que tantas conquistas têm sido alcançadas nos 27 anos de SUS, o período recente tem sido marcado por retrocessos: a derrota do Projeto de Lei de Iniciativa Popular que estabelecia o piso de 10% das Receitas Correntes Brutas da União para a saúde, a constitucionalização do subfinanciamento com a Emenda Constitucional 86, aliadas ao reforço da mercantilização e da financeirização da prestação de serviços de saúde com a legalização da abertura de capital estrangeiro, além da proposta de emenda à Constituição (PEC 87/2015) que prorroga a Desvinculação de Receitas da União (DRU) até 2023 e amplia de 20% para 30% o percentual das receitas de tributos federais que podem ser usadas livremente. Ressalta-se ainda a drenagem de recursos para o pagamento de uma dívida pública jamais auditada.

    O Brasil está, portanto, diante de ameaças concretas à saúde da população, aos profissionais de saúde e à sustentabilidade da proteção social garantida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde sua criação em 1988. Apesar das inúmeras evidências demostrando que o sistema que defendemos, solidário e universal, é mais eficiente que o mercantil privado, assiste-se uma reorganização das políticas e práticas em benefício de interesses econômicos particulares. (ABRASCO, 2015, s/p)

    Mas cabe recordar que, desde o início, a proposta do SUS é marcada pela contradição entre a garantia do direito à saúde pelo Estado proposta pelo SUS e a proposta neoliberal de submissão do Estado às regulamentações de mercado. Segundo Cardoso e Campos (2013), é possível listar três elementos desse contraditório processo construtivo do SUS: 1) a coexistência de um setor privado de seguro saúde, que favoreceu a criação de uma política focalista; 2) a estruturação do Estado, que provocou uma sucessão de ataques ao financiamento dos direitos sociais; 3) os limites de despesa com pessoal, que fez surgir novas formas de gestão da força de trabalho. Santos (2014), aliás, afirma ser equivocado dizer em desmonte do SUS, pois observa que ele ainda não foi montado, permanecendo a sua montagem na contra-hegemonia.

    Com a argumentação de que a administração pública apresentava entraves para a execução de uma gestão que pudesse atender às necessidades de saúde da população de maneira adequada, aparecem alternativas de caráter neoliberal para esse setor.

    Na segunda metade dos anos 90, foi regulamentado que entidades privadas ou de direito privado passassem a gerenciar serviços de saúde pelo Brasil. Essas leis procuraram regulamentar a atuação dessas entidades para a realização de serviços públicos, ao invés de reformar as velhas estruturas do Estado, que dificultavam a gestão. Essa reforma, reconhecidamente parcial, é apontada como uma alternativa para a melhoria da gestão dos serviços públicos de saúde, mas não como a solução, desde que respeite quatro premissas: 1) subordinação à política de saúde do nível de governo em que a organização se inserir; 2) legalidade; 3) eficiência gerencial; 4) capacidade de controle do Estado sobre execução e resultado das organizações (IBAÑEZ; VECINA NETO, 2007).

    Ibañez e Vecina Neto (2007) destacam, sobretudo, a Fundação Estatal de Direito Privado como a principal alternativa a ser adotada. Cardoso e Campos (2013) criticam esse modelo de gestão a partir da análise de um documento de uma dessas fundações. Mesmo sendo esse tipo de fundação o modelo mais próximo do funcionamento público, esses autores identificam, no documento dessa fundação, os principais elementos das reformas neoliberais: a acomodação ao ajuste fiscal, a retirada de direitos dos trabalhadores e a lógica corporativa na gestão dos serviços de saúde. Além disso, esse modelo, segundo esses autores, não interfere nas estruturas que dificultam o avanço da universalização com qualidade dos serviços de saúde no país.

    O maior prejuízo advindo dessas novas formas de gestão atinge principalmente os direitos básicos dos trabalhadores, pois há uma ausência de regulação das condições de trabalho, do cumprimento de metas para avaliação de desempenho e da carga horária (MARTINS; MOLINARO, 2013). Os autores destacam ainda um contexto individualizante e competitivo, no qual cada profissional torna-se responsável pela própria formação para manter-se empregável.

    Sobre esse modelo individualizante e competitivo nas relações de trabalho, Souza e Cunha (2013) afirmam que o neoliberalismo transcendeu as políticas econômicas e tornou-se um suporte cultural e ideológico que transformou a avaliação, que tinha potencial crítico e reflexivo do trabalho, em método de gestão e controle com foco nos indivíduos e desprezo pelas condições coletivas e sociais. Desse modo, coloca-se o indivíduo em uma situação de permanente avaliação de si mesmo, num controle individual e acrítico da própria produção. Os autores afirmam que esse tipo de avaliação avança na gestão e nas relações de trabalho da saúde.

    O neoliberalismo e seus efeitos distribuídos pela nossa sociedade não favorecem o trabalho no âmbito da saúde, muito exigente com o trabalho em equipe e com a qualificada articulação entre os serviços para atender às singulares necessidades dos usuários. Por essas razões, o trabalho em saúde precisa ser coletivo e qualquer redução ao trabalhador individual seja para responsabilização, formação ou avaliação de um serviço promove competição e culpabilização, em prejuízo da coletivização no processo de trabalho.

    A fragilidade da relação do trabalhador com o seu local de trabalho e de uma dimensão mais coletiva entre esses trabalhadores tendem

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