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A Memória da Água
A Memória da Água
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E-book361 páginas4 horas

A Memória da Água

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Sobre este e-book

Slade Harris fará qualquer coisa por uma história, incluindo assassinar a mulher que ama.

Slade não pensa duas vezes em pular fora de um avião ou conduzir casos de amor desastrosos para conseguir material para seu trabalho, mas sua vida de auto satisfação está alcançando-o. Tropeçando quase nos seus quarenta anos, sem esperança e um pouco bêbado, Slade tem uma deslumbrante e perigosa ideia que irá mudar a sua vida para sempre. Vai ser a história final de Slade ... e tudo o que ele espera, é sobrevivê-la.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de mai. de 2021
ISBN9781667400211
A Memória da Água

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    A Memória da Água - JT Lawrence

    ELOGIOS À JT LAWRENCE’S

    A MEMÓRIA DA ÁGUA

    ––––––––

    Tão fascinante que li de ponta a ponta em uma única sessão.

    - LITEROGO

    Amei esta abordagem literária ao gênero criminal ... Slade se faz um protagonista estranhamente atraente.

    – BOOKED UP

    Visceral e encharcado de voz.

    — MICHELLE WALLACE

    Este é um livro com uma jornada sombria para dentro de um labirinto de memórias e experiencias, algumas reais, outras imaginárias ... se estiver com vontade de mergulhar em uma mente que está se desintegrando diante de seus olhos, aperte os cintos e se segure.

    — WP, crítico da Amazon

    Se mexe em um ritmo acelerado... um romance lindamente construído que segura a sua atenção até o final.

    – IAN BARKER

    Te deixa adivinhando até a última página.

    – PAIGE NICK

    Contagiante, arrepiante, engraçado e original... Definitivamente uma voz nova na ficção da África do Sul.

    – HAMILTON WENDE

    TAMBÉM POR JT LAWRENCE

    Why you were taken (2015)

    Sticky Fingers (2016)

    The Underachieving Ovary (2016)

    Grey Magic (2016)

    How we found you (2017)

    A MEMÓRIA DA ÁGUA

    ––––––––

    f

    JT LAWRENCE

    ––––––––

    A Memória da Água é uma obra de ficção.

    Nomes, personagens, lugares e incidentes são produtos da imaginação da autora ou são usados de forma fictícia. Qualquer semelhança a pessoas reais, vivas ou falecidas, eventos ou locais são mera coincidência.

    2017 Edição de bolso

    ISBN-13: 978-0-620-74655-7

    2ª Edição

    Direitos Autorais © 2017 JT LAWRENCE

    Todos os direitos reservados.

    Publicado na África do Sul por Fire Finch Press, um impressão de Pulp Books.

    www.jt-lawrence.com

    Design do livro por Mandie Van der Merwe; adaptado pela autora.

    Em Memória de Laurence Cramer

    A MEMÓRIA DA ÁGUA

    "Estamos aqui novamente, com o artista de coração frio e olhos gelados,

    aquele que se sacrificou por sua arte

    e desistiu da sua habilidade humana de sentir, mas desta vez existe

    uma leve sugestão de um acordo com o diabo.

    Não foi somente o coração que se foi, mas uma alma também foi perdida."

    - Margaret  Atwood, Negociando com os Mortos

    Um Monumento a Causas Perdidas

    O corpo da minha irmã estava azul quando a tiraram da água. Uma coisa tão pequena que ela. Normalmente, o choque de tudo faria qualquer um não acreditar, deixar confuso e atordoado. Eu não. Estava espantado com os detalhes. Surpreso ao me sentir o mais vivo que podia. Seus pulmões imóveis fizeram os meus buscarem ar. Estava hipnotizado pelo verde das algas no rio, estrangulado pelo ar quente do verão; o resto daquele momento foi lavado pela forte correnteza do rio.

    Os homens eram mais altos que as árvores, os homens que ajudaram. Eles escutaram meus gritos intensos, mas não a tempo.

    Em seguida, o homem-árvore grisalho não conseguia deixar a Emily simplesmente deitada no chão. Ele a puxou para seus braços, com seu vestido colado ao corpo. Ele puxa o tecido molhado, querendo cobrir, querendo proteger ela mas não deu tempo. Ele estava parado de uma forma tão determinada, que parecia que nunca mais iria sair de cima daquele pedaço de terra: um monumento a causas perdidas. O outro homem sentava na margem, engolindo a seco, sua cabeça balançava para frente, com joelhos trêmulos. Ele tentou revivê-la com uma combinação de violência e cuidado, inseguro do quanto aquele corpo de porcelana conseguiria suportar, desesperado em obter um batimento em um coração sem rumo. Ele intercalava entre pancadas selvagens no peito com leves beijos nos lábios. Ofegantes, estremecidos, nós quatro lacrimejamos.

    Esperávamos pelos gritos em silêncio e pavor.

    f

    PARTE I

    Uma ideia que não é perigosa, não é digna de ser chamada de ideia.

    - Oscar Wilde

    1.

    Pelo Menos Alguém Está Tendo Uma Manhã Interessante

    Na escuridão: cabeça latejando, estômago revoltado e olhos coçando.

    Eu procuro pela garrafa de San Pellegrino que deixo ao lado da cama. Alguém pegou. Desgraçado.

    Não, isto não está certo.

    O calhambeque do vizinho roncava. O Jack Russel latia.

    Deixei a garrafa na sala de estudos ontem à noite, usei-a para completar minhas doses de uísque. Erro de amador. Abri minhas pálpebras o suficiente para ver uma área do teto branco, iluminado.

    Depois de algumas leves respiradas, eu levanto da cama e caio. Com estrelas na cabeça. Tonto. Preciso chegar até a máquina de café e apertar o botão vermelho. Ela começa a roncar.

    Coço minha barba a fazer. Cabeça estava pegando fogo.

    O clarão da manhã que atravessa a janela da cozinha é implacável. Fecho meus olhos por um momento para dar um descanso a eles. Preciso mijar, tomar um banho e comer algo gorduroso. Café da manhã no Café Salvação. Uma dose dupla de Bloody Mary com um ovo cru e Tabasco.

    Agora aquecida, a cafeteira moe, explode água quente e cospe o café. A geladeira estava vazia com a exceção de uma caixa de pizza manchada de óleo, um xarope balsâmico cristalizado e uma jarra de mistérios, nunca aberta e comprada em um mercado orgânico com a Eve. Eu nunca devo ir a mercados orgânicos. Nunca deveria ter comprado uma geladeira enorme. Ficar encarando seus compartimentos vazios, me faz sentir sozinho. Nunca era assim. Esta máquina já viu muitas riquezas: várias garrafas de Veuve Clicquot e latas brilhantes de caviar russo, como moedas de ouro para gigantes. Agora, está sentada, vazia e solitária. Meu coração é uma geladeira vazia.

    O leite passou do ponto de ser salvo e desce pelo ralo da pia. Misturo o café com força demais, deixando-o respingar pelo lado da xícara e marcando a bancada de mármore claro com uma forma de eclipse. Eu limpo depois.

    Como os mortos vivos, xícara quente em mãos, vou tropeçando até minha escrivaninha na sala de estudos para avaliar os danos, cuidando para não cair com as pilhas de livros posicionadas em meu caminho. À primeira vista, não parece tão ruim. Realmente não estava tão destruído até eu ver meu caderno, Moleskin, assassinado, deitado como um animal morto na borda da mesa, com sua barriga cremosa exposta, e suas entranhas sujas de tinta, arrancadas.

    *

    "Você tá com uma cara horrível."

    Valeu. Eu pareço melhor do que me sinto.

    Até agora, tem sido uma manhã do cão e até sorrir dói. Dou um beijo em sua bochecha e coloco uma cadeira na sombra, não muito perto e com uma esperança fútil de que ela não cheire o uísque barato saindo pelos meus poros. Coloco o celular na mesa, ao lado do molho de chaves dela: o porta-chaves dela com uma maça de prata que brilhava no sol.

    Ela está toda arrumada. Me pergunto se ela vai se encontrar com alguém depois do café. Outro homem talvez, ou um patrocinador. Ou talvez é para uma sessão de fotos: além de ser uma artista, ela é sócia em uma pequena empresa de filmes. Imediatamente fico com ciúmes.

    Ela levemente baixa seus enormes óculos de sol e olha para o meu estado de acabado.

    "Festejou muito ontem à noite com a qual-o-nome-dela?

    Mais ou menos, dando um sorriso. Pode-se dizer que sim.

    Eve senta para trás com os braços cruzados. Ela sempre deixa seus braços cruzados. Está sempre reprovando as coisas como uma bibliotecária de cabeça quente.

    "Então? Como estão as coisas com ela? Qual o nome dela de novo?

    A garçonete chega com os cardápios que são grandes demais para serem práticos. Eu luto com o meu e quase derrubo minha dose dupla de Bloody Mary que pedi quando sentei.

    Terminamos, então não importa. falo resmungando, mas ela entendeu.

    Por que não estou surpresa? Ela suspira, fechando o cardápio e colocando-o na mesa. O que aconteceu?

    Eu terminei ontem à noite.

    Outra sem-surpresa então. Ela faz um show de bocejos. Ela bate a perna da mesa com sua sapatilha. Muito chato, Slade.

    Isso me acerta no estômago. Não existem muitas coisas que mais tenho medo do que previsibilidade. Ser um chato: eu acho isso assustador. Ela sabe disso e goza da ideia, oferecendo um meio sorriso, dizendo que só estava brincando.

    Deus, como Eve é sexy em seu terno de mármore sob medida e lábios rosados expostos. Com óculos da Jackie O. Embora ela pareça tanto quanto desejável ao usar camisas masculinas de colarinho grande, manchadas de tinta com quais ela trabalha.

    E o rabo-de-cavalo dela. Amo o rabo-de-cavalo dela. O que não faria para agarrar...Percebo que estou sonhando acordado e tentando lembrar o que estávamos conversando sobre. Me escondo atrás dos meu Oakley’s: esta ressaca está fazendo me sentir com mil anos de idade.

    Rabo-de-cavalo, lábios, bocejos: Ah, qual-o-nome-dela.

    Bom, não estava dando certo. Tive que terminar. Ela não era boa.

    Um homem na mesa ao lado dá uma espiada em nós, curioso, ele se vira novamente antes que pudesse dizer algo sobre cuidar da sua própria vida.

    Você quer dizer que não era boa para sua escrita.

    Sim. Bom, é sempre a mesma coisa, não é? Não é que vou ficar bem sem a minha escrita.

    É tudo que tenho.

    Não contei para Eve que terminei com a mulher, cedo da noite para que pudesse chegar em casa e trabalhar em algumas anotações. Não funcionou: nada veio. No final, eu – aparentemente – acabei com uma garrafa de uísque e destruí meu caderno. O que tem se tornado um hábito.

    Eu ignoro a rápida irritação nos olhos de Eve. Ela morde uma de suas unhas.

    Como foi que ela aceitou?

    Bem.

    Bem?

    Não tão inconsolável quando a contadora, não tão feliz quanto a apresentadora daquele programa de entrevistas. Alguém no meio. Basicamente neutra. Acho que era isso que não gostava dela.

    A graça dela? A tranquilidade dela? O temperamento equilibrado dela? Posso ver como isso pode ser tão desagradável.

    A garçonete volta com um olhar esperançoso em seu rosto.

    Fecho o meu punho. "Ela não meu deu nada."

    O homem olha de novo: posso sentir os olhos dele em mim. Quem é ele? Um espião? Um assassino? Eu olho para ele e ele imediatamente volta a inspecionar o ovo frito em seu prato. Filho da puta intrometido.

    Aposto que você não deu nada para ela.

    Eu olho para o horizonte e ajeito meu cachecol contra o vento. Pedimos um omelete com queijo brie e rabanada caribenha com xarope de bordo, amoras e creme orgânico. Uma jarra enorme de chá Earl Grey.

    O que Eve não sabia, era que carma já tinha me queimado naquela manhã. A ressaca não era a única coisa que estava me empurrando para a beira do abismo. Enquanto caminhava da minha sala de estudos até a porta da frente e virava a chave, ouvi uma porta de um carro fechar e alguém queimando pneus. Lembro ter pensado: pelo menos alguém está tendo uma manhã interessante. Fiz um esforço inconsciente para fechar meu roupão sobre minha camiseta do Iron Maiden e meias cinzas, colocar meus óculos para atenuar a claridade perversa do sol de Johannesburgo e abrir a porta. Nada parecia fora de lugar mas tive uma sensação estranha na minha barriga, o que não tinha a ver com o uísque Glenfiddich da noite anterior. Alguns passos depois, tinha o jornal em uma mão, e o café na outra. Me senti um pouco melhor sobre minha vida. Até que me virei.

    Não estava tão ruim assim. Quero dizer, ela poderia ter atirado um coquetel molotov pela janela e ter queimado a casa toda. Ela poderia ter feito como Al-Qaeda e ter explodido um belo e doce explosivo plástico no meu jardim. Ela poderia ter alugado um jipe a prova de minas terrestres e ter arrebentado a casa. Isso poderia ter sido bem pior. Ao invés disso, ela pichou SLADE HARRIS CANALHA PUTO, em toda a frente da casa em um tom avermelhado, bem chamativo. Ainda não decidi se gostei da sua criatividade com péssima gramática e transmutação da palavra puto em um adjetivo. De qualquer maneira, existe uma certa característica que não dá para esquecer. Nota dez para pontuação. Parado ali, com uma brisa fria batendo nas minhas pernas ainda mornas, admirando o esforço dela, havia um senso de justiça nisso tudo. Suponho que tenho magoado muitas mulheres e já estava na hora de que uma delas criasse a vontade de me castigar. Entretanto, é lamentável que esta, está se parece como uma psicopata.

    Quando volto do café da manhã com Eve, ainda estou um pouco nervoso. Fico imaginando a Sally parada em frente à minha casa, com um olhar reto, mostrando ser o cúmulo da tranquilidade, com exceção de uma mão pintada com spray. Uma versão barata da Rainha Macbeth. Esta ideia me perturba um pouco, então gosto dela. Não porque sou destemido: o oposto é verdadeiro. Eu passo o resto do dia esquivando das janelas e não abro a porta para ninguém, nem para o homem do espanador de penas. Eu gosto porque ter uma linda, persistente, louca ex-namorada, pode ser interessante.

    E estou desesperado por algo interessante.

    2.

    Tal Pai, Tal Filho

    Alguns dias depois, acordo com um senso de propósito sombrio. É o aniversário da Emily. Ela nasceu dois anos depois que eu, e faria trinta e seis anos hoje. Ela está congelada em minha mente como naquele dia – cabelo emaranhado, com sardas de verão e um sorriso de dentes de leite – explodindo com raios de sol e promessas. Aqui estou eu: mancando em direção aos quarenta anos, com a tristeza que vem com a idade. Ciente da entediante dor do pensamento que já passei do meu ápice. Algumas pessoas atingem seu pico aos sessenta, eu sei. Mas, seria bom olhar para frente e ver algo do tipo, ao invés do que tenho agora.

    Ela provavelmente teria feito mais coisas com sua vida do que eu já fiz com a minha; ela tinha mais significado. Provavelmente teria tido uma família com um marido fiel (e entediante), e duas crias sapecas. Cachorros também. Ela definitivamente teria cachorros. Ela seria que nem aqueles jovens profissionais que passava, quando eu corria de manhã. Eles juntos com seus labradores e carrinhos 4x4 para crianças. Estes mesmos profissionais que passam direto por pessoas que nem eu agora, que são homens com bochechas rosas e um ar de derrotado, sendo puxado pelos huskies dele.

    Eu chego na casa do meu pai em Belgravia com uma garrafa de Johnny Walker e alguns petiscos do restaurante Fournos. De vez em quando eu faço algumas compras para ele. Como eu, ele é sempre mais agradecido pelo uísque. Rabugento mas agradecido. Tal pai, tal filho. Compro mais por culpa do que boa vontade. Nunca fui uma pessoa amável. Só sinto mais culpa com o passar dos anos e colocando o velho de lado. Uma hora eu vou só para resgatar o restante de saúde mental que tenho. Fazer compras adia o momento em que preciso começar a passar o tempo com ele, o que torna todo o processo bem longo. Sempre há uma jarra nova de picles para inspecionar ou limpar as alcachofras. Em O Poderoso Chefão, Don Corleone fala que um homem que não passa tempo com sua família, nunca será um homem de verdade. Acho que nunca fui um.

    Aperto a campainha no portão. Vai demorar um tempinho para que ele chegue na porta da frente, então eu espero, vendo a tinta cair. Deus, queria que ele escutasse ao bom senso e saísse da porra desse lugar. É tão sujo. Provavelmente não é um bairro tão seguro assim.

    Sinto que estou sendo observado, então fico olhando ao meu redor, fingindo estar indiferente, tentando não parecer um homem branco paranoico. Ninguém precisa saber que eu sou um homem branco paranoico. Quem não é desconfiado neste país, onde um pouco de paranoia te ajuda a te manter vivo? Pessoas idiotas e aqueles que desistiram. Dou corda ao meu relógio.

    A casa ocupa a quadra inteira e está cercada com tábuas escura e podres. As aberturas entre elas, são como dentes estragados, serve como um convite para ladrões oportunistas. A porta da frente defronta um parque municipal, cheio de mendigos bêbados, lixo e amantes com bundas tão grandes que nem conseguem sentar sobre a cerca de madeira do parque, cuja altura vai até os joelhos. Antigamente, a grama era verde e a área infantil estava cheia de cores vibrantes. Vagabundos eram corridos de lá (se você era negro, vagabundo – se era branco, um visitante). Lembro do sabor de metal pintado do trepa-trepa, não sei porquê. Acho que crianças tentam sentir o gosto de tudo. Metálico, gelado e duro, com  uma pele grossa de tinta.

    Eu aperto a campainha novamente, caso ele não tenha escuta a primeira vez.

    Podíamos brincar ali, sob o olhar descontraído de minha mãe, alguém que por muitas vezes parecia estar mais interessada em sua leitura de bolso do que o que nós estávamos fazendo. Ela sacudia um cobertor escocês com desenho flanela, como se fosse em preparação para um piquenique em família, e daí nós ordenava a nos divertir enquanto que ela focava em seu mundo faz de conta. Ela levantava os olhos em nossa direção em alguns momentos na velocidade de um chibatada, se concentrando mais no número de filhos do que estávamos fazendo de fato.

    Uma vez, eu caí na parte de trás da casa. Existe uma enorme árvore de carvalho no pátio. Firme e muito alta, provavelmente irá durar mais que a linhagem da minha família.

    Estava subindo e provavelmente me exibindo para a Emily. Me gabar me fez sentir convencido, confiante demais. Não lembro porque caí, talvez meu pé escorregou ou meu braço se agarrou em um galho que não estava lá. Mas lembro cair e da sensação estranha de estar completamente no ar. E depois veio o estralo da minha coluna ao atingir o chão. Emily gritou. A pequena pré-adolescente levantou para buscar ajuda. Não sabendo o que era a sensação de algo quente e pegajoso que se espalhava pelas minhas costas, pensei que precisava me levantar para não levar uma bronca. Mas não consegui, então fiquei esparramado de barriga para cima sob a sombra da árvore. A Vovó foi a primeira a sair para ajudar, limpando as mãos em seu avental, seus olhos mirados em mim. Ela nunca viu a necessidade de histeria. Décadas de trabalho voluntário na Cruz Vermelha, dois maridos falecidos e um acidente de carro quase fatal a fez imune para dramatização. Uma imigrante holandesa com mais senso comum do que se consegue agitar uma vara. Mas ela estava correndo.

    Slade, ela disse em um tom calmo você tá bem?

    Sim, disse ou talvez acenei com a cabeça.

    Sim, estava bem. Exceto que não conseguia me levantar.

    Ela usou as palmas das suas mãos, que eram frias e inchadas nas juntas, procurando por ossos quebrados. Emily chorava no fundo do jardim e foi grosseiramente levantada para cima da perna do meu pai.

    Você consegue levantar? A vó perguntou.

    Todos estavam de olho em mim, e deu certo. Devo ter ficado anestesiado pelo choque antes. Lembro olhando para baixo, uma pilha de caixas de tomates esmagada. Você não as vê mais hoje em dia, mas elas eram feitas de ripas finas e ásperas de madeira compensada, segurada por pregos. Eu tinha uma dessas enfiada em minhas costas, como se fosse uma vítima de um jogo meia-boca de caça vampiros. Uma ferida superficial, prestes a sangrar mas pelo menos o estralo não foi da minha coluna.

    A fechadura na porta é agitada. Através dos painéis de vidro texturizado, vejo uma figura grande curvada, que é meu pai. Preso atrás das grades do portão para a rua, eu olho seu perfil mexendo na porta até que ela abra. Ele caminha até a varanda, me dando um olhar de indignado.

    Acabou de chegar? ele perguntou, sem me dar tempo de responder. Por que você não apertou a campainha?

    Ele pensa que sou um idiota? Que eu ia me esconder por acaso até ele decidir talvez abrir a porta?"

    Eu apertei pai. rangendo os dentes.

    Tem certeza? Eu não escutei nada.

    Não perca a paciência Slade. Você tem algumas horas para passar com ele.

    Talvez está quebrado. Olha só, deixa eu apertar de novo.

    Eu golpeio o botão com meu dedo indicador com muito mais força do que o necessário.

    Consegue escutar?

    Claro que não consigo escutar agora, estou parado aqui fora!

    Ele está vestindo uma calça esportiva e um casaco azul desbotado. Tem uma mancha de pasta de dente na sua camisa. Sua voz treme com indignação. Também estaria indignado se fosse ele. Se tivesse tido a vida dele, o passado dele.

    Vem pai, disse, vamos entrar. A gente arruma isso depois.

    O interior da casa é como um museu. As tábuas do chão, todas arranhadas, tapetes persas desbotados, os quadros do artista Vermeer, davam olhares condescentes quando  anda-se pela casa. Cópias baratas da Moça com o Brinco de Pérola, A Leiteira, O Astrônomo. Lustres com seus interruptores originais.

    No quarto das crianças, beliches embutidos de carvalho, quase tão grandes quanto um barco. Espaço suficiente para oito adultos por quarto, não somando as crianças. No banheiro, piso com azulejos pretos e brancos e uma banheira vitoriana antiga, tão grande que caso estivesse se sentindo triste, o vô deixava brincar dentro dela. A Emily foi repreendida por lamber o sabão rosa, que tinha um cheiro tão bom. Deus, como eu queria tanto que ele vendesse essa casa. Ficando com ela como um velho tolo. Eu respiro profundamente e esfrego minhas têmporas. Estas memórias são sufocantes.

    Eu largo os sacolas de comida no chão marrom e escuto algo quebrar. Normal. Não queria pegar um pano para limpar mas vou mesmo assim. Coloco tudo dentro da pia. Ele arranjou a mesa com um pacote de bolachas água-e-sal e uma lata de sardinhas para o almoço. Sardinhas e vômito ocupam a mesma categoria na minha cabeça, assim como o cheiro de bucho fervido. Meu pai é um milionário mas ele come peixes encharcados de óleo como se fossem um privilégio. Meus avós levaram toda aquela economia de guerra a fundo, e meu pai parece que herdou o pensamento.

    Eu iria tão longe em dizer que acho que ele aproveitou a recessão. Mais uma desculpa para ser mão de vaca. Eu gasto dinheiro como se fosse água. Eu acho que sardinhas é comida de gato. É 2011 pelo amor de Deus. A guerra já acabou a mais de sessenta anos. É a era da globalização e consumo. Gastar dinheiro como água – de onde vem isso? Não é meu, não deixa um gosto bom na boca.

    Foi a jarra de azeitonas que quebrou. Sem grandes danos, o resto dos itens da sacola só precisavam serem limpos. Eu pego uma azeitona entre os cacos de vidro e coloco na boca. Não resisto. Eu tenho a vaga sensação que Francina vai pular de trás de mim e me xingar, também quando bebo leite direto da garrafa na minha cozinha. A azeitona é salgada e vou jogando ela de um lado da boca para outro para sentir sua pele oleosa. Seguro ela no céu da boca com minha língua, e vou apertando para que ela solte seu liquido. Talvez vale a pena um caco de vidro caso eu engula um. Seria uma forma bem burra de deixar este mundo. Posso ver a manchete: ‘Renomado autor morre ao ingerir caco de vidro aleatório’ ou pior: ‘Descanse em Paz Slade Harris (anteriormente famoso autor).’

    Conheço um cara que morreu engasgado com um pedaço de torrada. Eu juro que não estou inventando isso. Ele era um alcoólatra e um viciado em crack por maior parte de sua vida. Ele perdeu tudo que tinha, incluindo a sua esposa e seus filhos atordoados. Finalmente colocou sua vida nos trilhos e se engasga com um maldito pedaço de pão torrado na mesa do café da manhã. Talvez isso seja pior. Talvez, talvez não.

    O pai está usando suas pantufas fechadas. Não acredito o quão gasto ele se parece. Ele está começando a feder como uma pessoa velha. O cheiro azedo de

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