antes do fim do mundo
De Uxa Pierri
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Sobre este e-book
Então aqui está o Antes do fim do (meu) mundo, porque vejo que o mundo em que vivemos hoje é muito diferente daquele em que cresci, tão grandes e poderosas são as mudanças que viverão neste século XXI.
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antes do fim do mundo - Uxa Pierri
Copyright © Uxa Pierri
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Editor executivo: Maurelio Barbosa
Preparação de texto: Fátima Cavallaro
Revisão: Rosalina Siqueira
Ilustrações de Capa e miolo: Aline Welenski
Ilustrações de miolo: Rafael C. Pierri
Fotos do miolo: Joel Katz e Remo A. Pierri
Imagens do miolo: © Adobe Stock
Capa, Projeto gráfico, diagramação e produção gráfica: Ás Editorial
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo-SP)
Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846
P623a
Pierri, Uxa.
Antes do fim do meu mundo / Uxa Pierri. - 1. ed. - São Paulo, SP: Ás Editorial, 2023.
204 p.; 14 x 21 cm.
ISBN 978-85-92593-32-2.
1. Infâncias. 2. Juventudes. 3. Natureza. 4. Velhice. I. Título. II. Assunto. III. Autora.
CDD 869.93
CDU 82-94(81)
Índice para catálogo sistemático
1. Literatura brasileira: Crônica / Contos.
1. Literatura: Crônica (Brasil).
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Ás Editorial
Rua João Negrão, 731 • Loja 19, Centro
CEP 80010-200 • Curitiba-PR
www.aseditorial.com.br • contato@aseditorial.com.br
Dedicatória
Para meus netos.
Escrevi estes textos num tempo em que vocês ainda não existiam, mas já estavam no meu coração.
Minha alma escorrega por meio deles
e assim quero me apresentar a vocês.
Vó Uxa
Agradecimentos
À Regina Gulla
Lygia Franklin de Oliveira
Daisy Asmuz
Fátima Cavallaro
Guila Azevedo
Aline Welinski
Ana Trevisan
Remo A. Pierri
Rafael C. Pierri
M. Beatriz Calazans Xavier
João Mosterio
Maurélio Barbosa
Sumário
Infâncias
Magia
Juventudes
Natureza
Velhices
Histórias da
vida alheia
Sobre a autora
Quero contar uma coisa
Amaior parte destes escritos foi publicada em um blog que tive de 2010 a 2013 com o título Um pouco de poesia é bom no sábado .
Aposentada como professora, eu trabalhava numa ONG e esperava ter netos. Nenhum dos meus filhos estava interessado em ter filhos naqueles anos e, assim, fui criando pequenos textos ou poesias sobre assuntos corriqueiros, sempre acompanhados de uma foto, desenho ou uma ilustração e os publicava todos os sábados.
Já havia escrito minhas memórias, aos 60 anos, num livrinho que publiquei e batizei de O Flamboyant. Para escrevê-lo tive aulas com Regina Gulla, que me ensinou a escrever poeticamente. Foram dois anos de grande aprendizado que recordo com alegria e gratidão. Fortalecida por isso, tomei coragem para fazer o blog.
Mais adiante, ao ouvir histórias de vida das pessoas, que se abriam para mim, mesmo não as instigando, me pareciam tão interessantes, surpreendentes, dramáticas, que resolvi escrevê-las. Chamei-as de Histórias da vida alheia e vai ser fácil perceber quais são relatos verdadeiros, quais são ficção, que bem podiam ser reais. A do carteiro é real.
Num dado momento, me dei conta de que não tinha mais nada a dizer; os tempos acinzentavam politicamente, as redes sociais se enchiam de xingamentos e então terminei o blog.
Os escritos ficaram guardados durante dez anos, quase esquecidos. Num sonho me veio um desejo muito grande de relê-los. Isso tomou conta de mim. Li e achei bom. Pedi ao Remo que os lesse e ele achou bom também.
Então, com medo de que eu mesma logo desaparecesse ou deteriorasse, como é o curso da vida, desejei que, quando adultos, vocês soubessem quem era a mulher que chamavam de Vó Uxa. E em que mundo ela viveu. Afinal, estou muito presente nesses textos. Achei que valia a pena colocar também alguns pedacinhos que constavam do Flamboyant.
Estimulada por Lygia, fui atrás de realizar meu desejo: outro livro.
Aqui então está o Antes do fim do (meu) mundo, porque vejo que o mundo em que vivemos hoje é muito diferente daquele em que cresci, tão grandes e poderosas são as mudanças que viverão neste século XXI.
Infâncias
Minicontos
Seu Luís
Vestida de fantasma
O terço
A Louca de Albano
Ensinar a ler e escrever
Partilhar o pão
Hummm...
Avô e neto
A espera
A florzinha
O tédio virou remédio
Debaixo do flamboyant
Descobertas
Que pariu!!!
Meu tio
Minha tia
O fio de cabelo
Um véu que se abre
A jura
Carta à criança
Minicontos
tristeza
Nunca voltaria a receber o convite que lhe fizeram aos 11 anos para trabalhar no circo. A mãe não quis nem terminar de ouvir a proposta. Portas fechadas para sempre.
demais
Pegou o baldinho e foi regar o mar.
Seu Luís
Tardezinha, seis horas. Ao longe se escutava o pî pî pî pî... pî pî pî pî do seu Luís. Onde a menina estivesse, tentava imitar este pî
meio fechado, como se o î fosse em francês. Corria para perto daquele velho — sempre a espantava a lisura de sua pele —, bigodões bondosos, chapeuzinho de feltro cinza sujo.
As galinhas se achegavam, vinham muito mais por conta da bacia do que do arremedo do piado. A bacia, que um dia tinha sido prateada, hoje era lua amassada nos braços de seu Luís. Mãos grossas, cheias dos grãos dourados e, num movimento que lembrava a órbita do satélite, ele jogava o milho para as aves, que pulavam umas sobre as outras, lutando pelo seu quinhão. Lia ria da galinhada, empurrava a mão do velho para que ela tivesse também um espaço na bacia para dar de comer àqueles bichos meio burros. Pî pî pî pî ... pî pî pî pî...
Às vezes vinham ordens de pegar uma galinha para o almoço. A criançada corria atrás das aves que, nessa hora, driblavam pernas e se escondiam dentro do bambu, embaixo dos troncos, os lugares mais inatingíveis. Mas tinha sempre aquela mais boboca, aquela cuja hora havia chegado. Não adiantava cacarejar, o cacarejo ia das alturas do desespero a um soluçar conformado.
Torciam-lhe o pescoço com mãos competentes, e a faca afiada, de um só golpe, arrancava a cabeça apoiada na pedra, ao lado do tanque. O sangue escuro e espesso caía numa pequena bacia, irmã caçula daquela do seu Luís.
No fogão de lenha, um tacho de água fervente esperava o mergulho do corpo da penosa cujas penas amoleceriam e seriam arrancadas, sem esforço, pela cozinheira. Entre fascinada e enojada, a menina se punha a postos para contemplar todo o ritual.
Dia seguinte, na hora do almoço, ficava com as asinhas, que era o mais gostoso. Depois, ainda podia quebrar os ossinhos da sorte.
Vestida de fantasma
Chegavam carroças carregadas de goiabas vermelhas. Vinham de outros sítios porque ali não havia goiaba que bastasse. As mulheres lavavam cada fruta com cuidado, cortavam-nas ao meio e com uma lâmina arredondada, retiravam a polpa que depois iria virar geleia. Emborcavam as goiabas limpas para que saísse toda a água. Iglus enfileirados cobriam a mesa toda!
O fogão de lenha ocupava mais da metade de uma das paredes da cozinha. Oposto a ele ficava o poço – dava medo olhar lá para baixo quando abriam a tampa de madeira e ver uma lua d’água brilhar no fundo da escuridão. Em cima do fogão, o tacho de cobre. O fogo crepitava atrás das achas de lenha.
As goiabas, depois de escorridas, eram espremidas e jogadas dentro do tacho. Ficavam borbulhando por um bom tempo até que, ao passar da grande colher de pau — o cabo media bem um metro — via-se o fundo. Era hora de jogar o açúcar. A brancura era pesada em balança de prato com pesinhos. Para cada quilo de goiaba, meio de açúcar. O ponto era dado quase em seguida. Se o açúcar fosse colocado antes da hora era um tal de saltar goiaba para todo lado e a pessoa que mexia o doce no tacho que se precavesse. Dona Lalá reservava lençóis velhos para este fim e ficava de pé sobre uma cadeira, vestida de fantasma, com aquele colherão na mão mexendo a goiabada. A menina adorava esta visão e ansiava por esta parte da tarefa. Às vezes a deixavam fazer o serviço.
O motor do poço era ligado para que a água pudesse ser bombeada para as torneiras. De Pelotas, a terra dos doces, e de dona Lalá, vinham caixetas feitas com tiras de madeira branca.
Dentro de cada uma iam duas folhas de papel manteiga recortadas no tamanho exato e cruzadas de modo que, ao cair dentro da caixa a goiabada, o papel se ajeitava nas laterais, protegendo todo o doce. A tampa da caixeta entrava por baixo de duas tiras de madeira que formavam um trilho por onde corria; travava. As caixetas quentinhas eram colocadas sobre todas as mesas e apoios que se encontrasse; o vai e vem das mulheres concentradas na tarefa lembrava o interior dos formigueiros.
Depois de frias, as caixetas eram empilhadas e colocadas na despensa, um quartinho de um metro por um metro e meio, cercado de prateleiras de alto a baixo. No único lado sem prateleiras ficava a porta de madeira canelada cinza azulado que se fechava em duas folhas. O ferrolho tinha um buraco de chave tão grande que se podia ver quase tudo lá dentro. E ainda um pouco do quintal: na parede oposta à porta, havia uma janelinha de tela de arame enferrujada cujas venezianas volta e meia eram esquecidas escancaradas. Lia gostava de se meter dentro daquele cubículo, fechar as portas e viver a sensação de um lugar pequeno como ela. Seus sonhos no breu tomavam o tamanho certo. O cheiro de goiabada vestia o ambiente e as caixetas arrumadinhas branqueavam as prateleiras escuras.
A fuligem escurece tudo: o teto da despensa, as paredes, as telhas da cozinha. Quanto mais próximas do fogão, mais negras as telhas. O chão de tijolos tinha reentrâncias que marcavam a rota dos pés das gerações que cresciam