Vento forte, de sul e norte
De Manuel Filho e Paola Saliby
5/5
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Sobre este e-book
Manuel Filho
Quando eu tinha oito anos, meu nome e endereço foram publicados na seção ‘Amizade Selada’ da revista Cebolinha 54, da editora Abril, e, em razão disso, recebi cartinhas e postais de vários cantinhos do Brasil. Construí várias amizades e desejei conhecer lugares tão incríveis como os que eu descobria ainda na infância. E fiz mesmo diversas viagens: reais e imaginárias. Comecei a inventar as minhas histórias, publiquei mais de 60 livros, ganhei prêmios literários, como o Jabuti, e participo de encontros literários o ano inteiro.Também sou ator, cantor e adoro pisar nos palcos por aí.Quando o Mauricio me deixa brincar com a Turma da Mônica, eu volto a momentos inesquecíveis da minha infância. É mágico colocar palavras nas bocas destes personagens tão amados! Espero que tenha curtido esta aventura, com medinho, claro.
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Vento forte, de sul e norte - Manuel Filho
FICHA
LUÍSA
Uma fina parede de vidro separa os dois elevadores do meu prédio, o social
e o de serviço
. O primeiro é todo espelhado, com suaves luzes no teto que provocam pouco reflexo. O carpete impecável, limpo. Um suave perfume frequentemente permanece no interior, remanescente dos bem-nascidos
moradores do local.
Já o de serviço
é bem simples. Serve para o transporte de compras do supermercado ou para a subida e descida de empregados que, intuitivamente, não pretendem encontrar o patrão no elevador elegante
.
Eu moro no oitavo andar e não estou nem aí para essas convenções.
Tanto faz, o importante é chegar
.
Assim, ao me aproximar do saguão, sempre tenho uma visão imediata do visor que indica em que andar o social
está. Naquele dia, cheguei com fome e cansada da escola. O social
estava no 27o, então, fiz o de sempre. Abri a portinha da segregação
, como um de meus pais diz, e o outro elevador se aproximava, vindo da garagem. Não tive dúvidas; decidi tomá-lo. Apertei o botão e esperei.
Dentro dele, uma senhora bem vestida, excessivamente perfumada, me olhou de cima a baixo.
— Bom dia — falei ao entrar.
Silêncio total. A mulher, então, sorriu e perguntou:
— Sua mãe trabalha aqui?
Eu até estava um pouco distraída, mas qualquer pergunta que envolvesse a palavra mãe
nunca me era indiferente. Em poucos segundos, compreendi o que estava acontecendo. Olhei para a mulher e devolvi uma questão:
— Por quê?
Feliz com o interesse, ela respondeu:
— Acabei de me mudar para cá e estou precisando de uma empregada nova, quem sabe se sua mãe não poderia me indicar uma, não é?
O não é?
me soou bastante conclusivo, como se toda aquela situação tivesse apenas uma única resposta.
Não para mim. Depois de já ter vivido alguns momentos parecidos como aquele, de preconceito velado, em que as pessoas tentam fingir que eu não sou negra, como se isso as tornasse simpáticas, eu já havia desenvolvido uma série de respostas para cada um daqueles climas
.
Lembrei-me das conversas com meus pais, que sempre pediam para que eu mantivesse a educação, mas, infelizmente, não tive dúvidas, abri um imenso sorriso e perguntei:
— A senhora acha que, porque eu sou negra e estou aqui, no elevador de serviço
, a minha mãe trabalha como doméstica em algum apartamento deste prédio chique, não é?
A mulher pareceu desarmada, simplesmente permaneceu me encarando e eu prossegui.
— Olha, como eu não tenho mãe, não posso responder a essa pergunta. Mas tenho dois pais e a gente mora aqui, no oitavo andar.
Exatamente nesse momento o elevador parou. Abri a porta e completei meu raciocínio:
— Um deles é programador e, o outro, médico. Empregada, eu não tenho como indicar, mas se a senhora precisar de um software ou se quiser marcar alguma consulta, posso tentar te ajudar. Não é?
Ela ficou em silêncio, sem qualquer sorriso no rosto.
Eu disse tchau e deixei que o elevador partisse. Observei os olhos espantados da mulher sumirem lentamente escuridão a cima.
Peguei minha chave, abri a porta do apartamento ainda cansada, com fome e, agora, com um pouquinho mais de sede. Tive a impressão de sentir uma leve corrente de ar, mas fiquei sem saber se aquele vento seria forte ou fraco.
1
Surpresa!
– Silêncio, rápido, o Valmir está chegando!
Todas as pessoas começaram a correr e a se esconder enquanto riam muito. Conseguiram ficar em silêncio por apenas alguns momentos, o suficiente para aguardar a abertura da porta e:
– Surpresa!!!
De repente, diante do recém chegado, cerca de uma dezena de amigos gritavam FELIZ ANIVERSÁRIO! PARABÉNS!
. Ele rapidamente foi abraçado pelo companheiro Otávio.
– Meu querido! – disse Otávio. – Desejo muitos e muitos anos de vida! – em seguida beijaram-se, mas foram rapidamente separados, pois havia uma fila de gente a fim de cumprimentar o aniversariante.
Furando a fila, sem nenhum pudor, Luísa deu um beijo no homem e falou:
– Papai, um beijo da pessoa que você mais ama no mundo!
– Isso mesmo, minha filha – respondeu Valmir, abraçando a jovem.
– E eu, não ganho um também? – reclamou Otávio.
– Pai ciumento é um problema – sorriu a garota.
– Quem manda ter dois? E bonitos, ainda por cima – riu Jaqueline, uma antiga colega de Otávio, da fase do colégio.
Findo o ritual da surpresa, todos se espalharam pelo apartamento e a música começou a tocar. Espalhar é apenas um modo de dizer, pois aquele velho grupo de amigos era bastante unido, como se o tempo os tivesse colocado diante de gigantescas adversidades de forma que, no momento correto, apenas os verdadeiros permanecessem juntos.
Em um canto, segurando um copo de refrigerante, Luísa conversava com sua melhor amiga, Nara.
– A sua família é tão legal... – disse Nara. – A minha é bastante sem graça. Sabe quando uma festa assim ia acontecer lá em casa? Nunca!
– Um monte de gente não aceita minha família, você sabe disso.
Ao desgostar de uma coisa, Nara entortava a cabeça e virava os olhos para cima, fazendo uma cara de terror. Aquilo já tinha se tornado um código entre as duas. A careta era um sinal de que Luísa teria dito uma grande bobagem e Nara nem iria comentar.
– Tudo aqui é bonito! Vou mesmo ser arquiteta, adoro reparar nos objetos. Adoro decoração, formatos diferentes...
– Meu pai Otávio é o responsável pela decoração, sorte nossa! Se fosse o Valmir, seria um desastre. Ele só gosta de futebol! Por ele, a casa teria somente uma cor.
– Medo! – riu Nara.
Otávio, o pai programador, realmente gostava de cuidar das coisas do lar, até esboçava propostas de decoração no computador antes de colocar tudo abaixo de fato. Valmir, o médico, curtia esportes e era um pouco mais descuidado. Um completava o outro perfeitamente.
Embora estivesse se divertindo na festa do pai, Luísa estava ansiosa. Havia algum tempo, pretendia colocar um plano em prática e, finalmente, tinha surgido uma bela oportunidade.
– Você vai participar do BAZAR DO DESAPEGO? – perguntou à amiga.
– E vou me desapegar do quê? – respondeu Nara. – Na verdade, estou até precisando de um montão de coisas... Novas!
– Exagero seu! – reclamou Luísa enquanto Nara fazia a tal careta. – Vale qualquer coisa, uma ideia, um conhecimento...
– Pois estou sem ideia. Conhecimento, então?
– Isso é falta de imaginação – disse Luísa.
– Ah, tá. E você, vai se desapegar do quê?
– Vou levar umas roupas, pecinhas meio encostadas...
– Mas isso não é desapego – riu Nara. – É se LIVRAR de porcarias. O certo é entregar algo útil, diferente. Guarda suas roupas velhas para outra ocasião. Você não tem nada de que se desapegar, aposto! – desafiou Nara.
– Ah é? Então aparece amanhã na feira...
– Meninas, venham cá! – chamou Otávio. – Valmir vai começar a abrir os presentes.
Valmir precisaria adivinhar quem oferecera cada um dos pacotes. Quando aquela turma se reunia, pareciam crianças, repetiam brincadeiras dos dias em que tinham a idade das meninas, treze anos.
Enquanto Luísa os observava, não conseguiu descobrir ao certo do que desapegaria, mas sabia exatamente com quem desejava fazer aquilo.
2
O não
todo mundo já tem
No dia seguinte, quando Luísa chegou à escola para o BAZAR DO DESAPEGO se deparou com um monte de roupas velhas, algumas bicicletas bastante usadas, brinquedos caindo aos pedaços e livros, muitos livros.
"As pessoas realmente