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Saúde Mental e Moral Capitalista do Trabalho: A Dialética das Alienações
Saúde Mental e Moral Capitalista do Trabalho: A Dialética das Alienações
Saúde Mental e Moral Capitalista do Trabalho: A Dialética das Alienações
E-book407 páginas11 horas

Saúde Mental e Moral Capitalista do Trabalho: A Dialética das Alienações

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Sobre este e-book

Quão justo é viver com o que pagam pela nossa força de trabalho? Como a sociedade lida com pessoas que não precisam vender sua força de trabalho para viver com conforto? E o que resta às pessoas que, por algum motivo, como a ocorrência de um transtorno mental, não podem vender essa força? A dificuldade de inserir o louco no mercado de trabalho foi um dos motivos do seu encarceramento em manicômios. Hoje, questionamos o que se propõe a essa população num contexto de desemprego até mesmo para pessoas consideradas muito capacitadas. Sugerimos uma abordagem radical da reforma do modelo de atenção à saúde mental, ampliando o debate em direção à superação do modo de produção capitalista. Saúde mental e moral capitalista do trabalho: a dialética das alienações apresenta alguns aspectos da relação dialética entre a alienação provocada pelo trabalho assalariado, expropriado e gerador de mais-valia, e o transtorno mental, que ora é agravado pela prática laboral, ora a tem como atividade terapêutica ou preventiva. Além de promover um diálogo entre teorias sociais, políticas e filosóficas com a saúde mental no contexto capitalista, busca-se expor, também, formas de fazer atenção psicossocial pública numa perspectiva emancipadora – mas, nem por isso, utópica – na realidade brasileira. É momento de rever, fortalecer e radicalizar o processo de mudança da atenção em saúde mental para que ela caminhe ao lado da justiça social.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de mai. de 2021
ISBN9786525001630
Saúde Mental e Moral Capitalista do Trabalho: A Dialética das Alienações

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    Saúde Mental e Moral Capitalista do Trabalho - Jamila Zgiet

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Para Maria da Anunciação Soares Castro Alves, mestra do fazer em saúde mental.

    Certa vez, um rapaz esquizofrênico, que já estava em situação razoável [...] tinha dúvidas: Eu vou me curar?. Eu lhe perguntei o que ele chamava de cura e ele me respondeu que estar curado seria voltar ao trabalho. Ele era escriturário. Eu lhe disse: Nem sonhando! Eu quero que você seja muito mais do que um escriturário.

    (Nise da Silveira)

    APRESENTAÇÃO

    Quando ouvimos falar sobre a relação entre trabalho e saúde mental comumente somos levados a pensar no adoecimento promovido pelo trabalho como o conhecemos – o emprego. E esse é, realmente, um tema importante e recorrente no nosso cotidiano. Todos conhecemos alguém que entrou em sofrimento por alguma situação no trabalho, seja nas relações com colegas e chefia, seja pelo excesso de serviço, pela remuneração injusta ou pela sensação de desvalorização.

    O fato de passarmos grande parte da nossa vida no exercício de um trabalho que nos remunera, permitindo que tenhamos como sobreviver, revela o quanto esse assunto é relevante. Não por acaso, diversos estudos, pesquisas e livros vêm sendo elaborados sobre qualidade de vida no trabalho, sempre identificando novas formas de sofrimento vinculado ao trabalho assalariado e ao desemprego e, por vezes, também traçando estratégias para amenizá-lo. No entanto, a tentativa de reduzir o sofrimento nos espaços de exercício laboral teria como objetivo melhorar a vida do trabalhador ou aumentar o lucro do empregador e o desempenho da empresa? Busca-se extinguir a expropriação da força de trabalho ou adequar os trabalhadores às imposições e inovações do mercado?

    Ainda que essas questões perpassem as reflexões apresentadas neste livro, aqui nos atemos a outro aspecto, igualmente contraditório e permeado de dúvidas e provocações intelectuais: a inserção da pessoa com transtorno mental no mundo do trabalho. O que se espera de alguém que, por ter um diagnóstico de transtorno mental, vê-se impedido de vender sua força de trabalho? Como as políticas sociais lidam com essa circunstância? O que as ideologias hegemônicas têm a ver com a situação em que vivem os loucos? Que relação a loucura guarda com a ética capitalista do trabalho?

    Acreditamos que a alienação do trabalho – e do trabalhador – e a alienação mental têm mais aspectos em comum do que pode parecer.

    A ética capitalista do trabalho determina a forma como a sociedade lida com a loucura, assim como define o que é adoecimento. Não era denominado tratamento moral aquele desenvolvido por Philippe Pinel no século XVIII?

    Embora o tratamento em saúde mental seja o primeiro pensamento que nos ocorre ao abordarmos loucura ou transtorno mental, não podemos

    ignorar o fato de que as pessoas que fazem tratamento psiquiátrico ou acompanhamento psicossocial são usuárias de serviços de saúde – não só mental –, são atendidas – bem ou mal – pelas políticas públicas de assistência social, educação, previdência, habitação e transporte. E essa relação com as políticas sociais tem fundamental importância em seu percurso, pois é o que pode incrementar sua socialização e fomentar o exercício da cidadania.

    No Brasil, desde o início do século XXI, a oferta de serviços de saúde mental segue, legalmente, uma lógica psicossocial. A mudança de paradigma que vem sendo chamada de reforma psiquiátrica trouxe, na verdade, poucas mudanças à prática médica psiquiátrica nos serviços de saúde mental, mas tirou o foco do tratamento da internação e foi capaz de dissolver na equipe multiprofissional parte do poder antes concentrado na medicina. Também conseguiu fechar muitos manicômios que mantinham milhares de pessoas encarceradas em situação subumana. Por esse motivo é preciso aplaudir os avanços obtidos pelos movimentos sociais da luta antimanicomial brasileira.

    Por outro lado, a experiência brasileira recente vem mostrando a fragilidade das políticas alicerçadas em reformas, normalmente incapazes de derrubar estruturas consolidadas da sociedade para erguer respostas coerentes à necessidade do povo. A instauração de um governo ilegítimo, apoiado pelas instituições que deveriam proteger a democracia, e, posteriormente, de um governo de extrema direita, eleito, mas com características antidemocráticas e de viés fascista, representou uma interrupção abrupta e brutal no caminho de avanços percorrido pela política de saúde mental brasileira.

    Temos, portanto, a obrigação de rever os métodos para nossos esforços e reelaborar o suporte ideológico e teórico que nos ampara. Embora devamos prosseguir promovendo e exigindo, no nível imediato, melhores condições de vida para a população, não podemos esquecer o que permite o recrudescimento das desigualdades e a falta de dignidade sofrida por grande parte das pessoas, que é o próprio capitalismo. Isso significa que os serviços de saúde mental não conseguirão resolver o problema da pobreza entre as pessoas com transtorno mental enquanto elas não tiverem garantidos seus direitos de cidadania. E ouso afirmar que não é possível garantir esses direitos enquanto eles derivarem do trabalho assalariado.

    Jamila Zgiet

    Prefácio

    Um virtuoso caminho para falar de saúde mental,

    trabalho e esperança...

    A ética capitalista do trabalho determina a forma como a sociedade lida com a loucura,

    assim como define o que é adoecimento.

    Jamila Zgiet

    Com coragem, Jamila Zgiet mergulhou de cabeça no mundo da loucura e do trabalho para nos trazer uma das mais cuidadosas reflexões sobre a loucura e moral capitalista do trabalho em tempos de pandemia, e de grande retrocesso da democracia e políticas sociais no Brasil, saúde mental entre elas.

    Ela dá um novo rumo às nossas inquietações em um momento em que todos os avanços das políticas públicas de saúde mental e drogas estão profundamente ameaçadas por corporações profissionais retrógradas e um governo descompromissado com o povo. Nele, vemos gestores mal formados em Saúde Pública, em Saúde Mental, em epidemiologia de populações e em organização e gestão de serviços de saúde, o que os habilitaria para minimamente fazer justiça à história das conquistas populares de usuários, familiares e profissionais de saúde. Estes, sim, representam-nos desde a 8ª Conferência Nacional de Saúde em 1986 e a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental em 1987, quando lutavam tenazmente para incluir na nossa Constituição Federal em 1988 saúde como um direito de todos e dever do Estado.

    Neste final de ano pandêmico estão reservando vários golpes às nossas utopias revolucionárias no campo da saúde mental! Ao arrepio da democracia, preparam a revogação de normas e portarias que criaram, financiaram e financiam até aqui o cuidado em saúde mental, apesar do desfinanciamento brutal advindo do congelamento de verbas para saúde e outras políticas sociais por 20 anos. Assistimos à progressiva substituição dos avanços alcançados no Sistema Único de Saúde para o cuidar em liberdade, que se instituiu como lei nacional em 2001 (Lei Federal n.° 10.216/2001), por um retorno ao primitivo: hospitais psiquiátricos, ambulatórios psiquiátricos, comunidades terapêuticas fechadas, em um país de dimensões continentais que sequer tem psiquiatras suficientes para cobrir seu território, se fosse esse um modelo a ser seguido no século XXI.

    Desde fins do século passado seguíamos um projeto antimanicomial para lidar com os transtornos mentais e os decorrentes do uso prejudicial de álcool e outras drogas numa dimensão reabilitadora de construção e/ou reconstrução dos sujeitos acometidos por esses males. Era a defesa da ideia de não termos sujeitos tiranizados e submetidos a um enclausuramento compulsório, e sim um projeto livre que constantemente se reconstrói e se reinventa, como bem defende Byung-Chul Han na sua Psicopolítica (2014), para que o humano se institua como reabilitador de si.

    Jamila Zgiet retoma tais ideias e compromissos de modo implicado, reconfigurando a clínica, a reabilitação psicossocial e o trabalho como instâncias constitutivas dos projetos de reconstrução dos sujeitos, auxiliando-os a dar sentido às suas vidas. Como expressa a autora Jamila (p. 23), neste livro:

    A angústia compartilhada neste livro reside na contradição que se expressa na relação entre a pessoa com alienação mental e o trabalho alienado. Considerando o adoecimento de trabalhadores, os determinantes sociais da saúde mental, a representatividade desse campo na saúde coletiva e a permeabilidade das políticas públicas à ideologia capitalista... não está em questão o potencial terapêutico e promotor de saúde atribuído ao trabalho. Tudo depende de qual trabalho se disponibiliza. Ele não pode ser adoecedor nem provocar o agravamento do transtorno mental e não deve submeter pessoas a pressões e a condições precárias de trabalho e de vínculo empregatício, nem as manter em uma vida indigna e sem sentido.

    Jamila lança mão de uma bibliografia confortável e atual para tomar foco nas suas concepções de trabalho e alienação que fazem sentido tanto ao campo das Ciências da Mente quanto às Ciências Sociais. Recorre a Marx como recorre a Freud para contextualizar seus argumentos desinstitucionalizadores.

    A corajosa posição assumida pela autora, de dar liberdade à loucura como um ato político e uma resposta compatível com um sofrimento intenso, desautoriza a compulsoriedade dos tratamentos, a erradicação dos sintomas a qualquer custo, o não respeito à redução de danos que deve embasar o encontro entre quem trata e quem procura tratamento, para não violentar suas identidades, suas marcas de vida e seus modos de ser no mundo.

    A Reabilitação Psicossocial que sempre mereceu no Brasil um viés crítico rumo à cidadania plena dos loucos sofre nas páginas que se seguem uma instigante provocação do quanto alcançamos de fato o que pactuávamos nos anos 90, quando ela desembarca no país, instituindo práticas à procura de teorias.

    O livro de Jamila é um alerta que nos chega em boa hora, quando já deixáramos de discutir políticas e práticas que fazem sentido para a escolha de um modelo comunitário de atenção em que todas as vidas importam; que precisávamos voltar e reaprender a lutar, sem cansaço, sem desânimo, pois lutar sempre soubemos. É tempo de cada qual no seu quadrado lançar sua contribuição para rearticular esperanças de nós, todos e todas, e este livro traz uma importante contribuição nesse sentido!

    Estudantes, usuários, familiares, trabalhadores de saúde, profissionais de todos os tipos, gestores do SUS podem acompanhar Jamila neste seu esforço teórico na repactuação de quais teorias estamos precisando para nos centrarmos nas nossas novas lutas. É também um esforço de ressignificação de práticas tão ultrajadas nesses tempos de desrespeito a direitos humanos tão valiosos que orientaram nossas ações e teorias, nossos movimentos antimanicomiais e antiproibicionistas de reforma psiquiátrica. É uma manifestação de respeito aos profissionais que lutam cotidianamente pelas melhores práticas que nos levarão a um mundo de inclusão social e chances de vida digna para todos.

    É um olhar novo, é uma leitura de fôlego.

    Ana Pitta¹

    Num fim de primavera, em plena pandemia,

    sonhando com tempos melhores!

    10 de dezembro de 2020

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    Sumário

    A REVOLUÇÃO QUE NÃO CABE NA REFORMA (OU POR QUE ESTE LIVRO EXISTE?) 19

    CAPÍTULO 1

    A DIALÉTICA DAS ALIENAÇÕES 27

    1.1. ALIENAÇÃO MENTAL 27

    1.1.1. Institucionalização da alienação mental 39

    1.2. ALIENAÇÃO NO TRABALHO 50

    1.2.1. O trabalho 50

    1.2.2. O trabalho alienado 55

    1.2.3. Metamorfoses do trabalho 61

    CAPÍTULO 2

    A MORAL CAPITALISTA NAS POLÍTICAS SOCIAIS E

    NA SAÚDE PÚBLICA 71

    2.1. TRABALHO E MORALIDADE 74

    2.2. PARA O BEM-ESTAR DO CAPITAL, TUDO BEM ESTAR MAL 86

    2.3. DO UTILITARISMO À ATIVAÇÃO: TODOS EM BUSCA

    DE EMPREGO 96

    2.4. ÉTICA CAPITALISTA E SAÚDE PÚBLICA: UM OLHAR

    HISTÓRICO-ESTRUTURAL 106

    CAPÍTULO 3

    A MORAL CAPITALISTA NA POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL 115

    3.1. SAÚDE MENTAL E O SENTIDO DO TRABALHO 117

    3.2. GANHO SECUNDÁRIO 131

    3.3. MANIFESTAÇÕES DA MORAL CAPITALISTA NA SAÚDE

    MENTAL BRASILEIRA 140

    3.3.1 Narrativa moral e a história da saúde mental no Brasil 164

    3.3.1.1 Trabalho e renda segundo as Conferências Nacionais de Saúde Mental 175

    Capítulo 4

    Reabilitação psicossocial:

    do tratamento à socialização 183

    4.1. REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL E TRABALHO ASSALARIADO:

    DA TROCA ZERO AO PODER CONTRATUAL 183

    4.2. MODELOS E PRÁTICAS DE REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL 193

    4.3. O MODELO PSICOSSOCIAL REVISITADO 201

    4.4. ALTERNATIVAS ÀS ALIENAÇÕES NO CAPITALISMO 208

    Capítulo 5

    Apontamentos para uma prática antimanicomial

    emancipadora na realidade brasileira 223

    5.1. SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO PRIMÁRIA 225

    5.2. OS DESAFIOS DOS CAPS 229

    5.3. CONVIVÊNCIA E CULTURA 232

    5.4. UM LUGAR PARA O LOUCO MORAR 234

    5.5. LEITOS PARA QUEM? 236

    5.6. PARTICIPAÇÃO POLÍTICA 238

    ANOTAÇÕES PARA UM RECOMEÇO 241

    REFERÊNCIAS 255

    A REVOLUÇÃO QUE NÃO CABE NA REFORMA (OU POR QUE ESTE LIVRO EXISTE?)

    Todos os profissionais que lidam com pessoas com transtorno mental observam a difícil relação delas com o mercado de trabalho. Muitas vezes, elas se aproximam da unidade de saúde porque precisam de uma justificativa para se ausentar do serviço, uma vez que não se sentem bem. Comparecem solicitando atestado médico, medicamentos, oportunidade de realizar atividades longe dos conflitos de casa, reclamam das relações pessoais e com o emprego ou relatam não conseguirem se inserir no trabalho remunerado. Pedem, e dificilmente nos damos conta, uma forma diferente de socialização.

    Algumas áreas do conhecimento, como a psicologia social e a saúde do trabalhador, dedicam-se a analisar a ocorrência de transtorno mental em trabalhadores e o sofrimento provocado pelo trabalho assalariado, pelas condições de trabalho ou pelo desemprego. Há, também, uma preocupação com a satisfação no exercício laboral e com as relações no ambiente de trabalho. Comumente, o trabalho assalariado é visto como potencial fonte de sofrimento e como possível fonte de felicidade. Logo, ele pode ser prejudicial à saúde ou promovê-la.

    Os especialistas e os cientistas levaram muito tempo para compreender que o trabalho é um dado fundamental da saúde. Não somente de maneira negativa (o trabalho como causa de doenças, de intoxicações, de acidentes, de desgastes etc.), mas também de forma positiva. O não-trabalho também pode ser perigoso para a saúde, como se vê bem, atualmente, com toda a patologia do desemprego. E as observações destas situações de não-trabalho conduzem a criticar severamente a idéia, não obstante muito difundida, que a felicidade seria não ter nada para fazer. (DEJOURS et al., 1993, p. 101).

    Muito se fala na importância de encontrar sentido na prática laboral pela qual se vende a força de trabalho. Nota-se relevante relação entre a discussão do sentido do trabalho e as reflexões marxistas sobre alienação.

    A identificação de uma combinação entre trabalho e transtorno mental não se dá ao acaso. Refere-se, evidentemente, ao trabalho assalariado, estranhado, com características que permitem o adoecimento e que rejeitam o adoecido, e não ao trabalho no sentido ontológico indicado por Marx.

    [...] a natureza não produz possuidores de dinheiro e de mercadorias, de um lado, e simples possuidores de suas próprias forças de trabalho, de outro. Essa não é uma relação histórico-natural [naturgeschichtliches], tampouco uma relação social comum a todos os períodos históricos, mas é claramente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções econômicas, da destruição de toda uma série de formas anteriores de produção social. (MARX, 2013, p. 315, grifo do autor).

    Neste livro, buscaremos relacionar não só trabalho e transtorno mental, mas, também, alienação do trabalhador e alienação mental – loucura ou transtorno mental. Compreendendo haver relação intrínseca entre esses elementos, comprovada pelas abordagens que colocam o emprego como elemento estressor, gerador de sofrimento e transtorno mental, propõe-se uma aproximação com o fenômeno de forma inversa: a inserção da pessoa com transtorno mental no mundo do trabalho.

    As tentativas de inserção normalmente ocorrem por intermédio dos serviços de saúde mental, que veem na atividade laboral um dos objetivos da intervenção terapêutica, bem como um indicador de saúde. De fato, o desemprego é um importante determinante social da condição de saúde, agravando quadros de sofrimento e de adoecimento físico e mental.

    No entanto o trabalho assalariado, estranhado, precarizado e desprovido de sentido, ao qual as pessoas necessitam se vincular para garantir a sobrevivência, também o é.

    Nesse contexto contraditório, as iniciativas de geração de emprego e renda compõem a chamada reabilitação psicossocial, que é considerada o grande mote da reforma do modelo de atenção em saúde mental, cuja pretensão é extinguir os leitos em hospitais psiquiátricos especializados e oferecer tratamento aberto na comunidade. Mas enquanto os autores que discorrem sobre o tema interpretam a reabilitação como uma forma de atuar que perpassa todo o tratamento ou o curso do usuário nos serviços de saúde mental, a legislação brasileira a vê como uma parte da política de saúde mental, que reúne ações de socialização, habitação e geração de emprego e renda. Assim, no caso brasileiro, ao mesmo tempo em que o Estado reconhece a importância de iniciativas que garantam rendimento a pessoas com transtorno mental impossibilitadas de trabalhar, não dispõe de legislações que protejam esse público com renda mínima, como ocorre com pessoas idosas e com deficiência no âmbito da política de assistência social.

    O que aparenta estar por trás desse paradoxo é o julgamento moral que permeia as relações com o emprego como atividade laboral, em conformidade com a ética capitalista do trabalho. Os autores que tratam das mudanças da política de saúde mental tendem a apontar os aspectos socioeconômicos como determinantes do confinamento de pessoas com transtorno mental ao longo da história. Sob esse modelo de produção, é necessário questionar as possibilidades apresentadas pelos formuladores e pensadores dessa política.

    As experiências mais promissoras de desinstitucionalização ou de mudança na forma de institucionalização envolvem, obrigatoriamente, a introdução de atividade laboral ao tratamento, desde a experiência da psiquiatra Nise da Silveira nos anos 1940 e 1950, no Brasil, ao modelo de psiquiatria comunitária de Franco Basaglia, na Itália, nos anos 1970 e 1980, passando pela socioterapia de Frantz Fanon, na Argélia, nos anos 1950. Não se pode ignorar, portanto, o conteúdo contraditório da relação entre alienação mental e trabalho, pois ele é apontado como medida terapêutica ao passo em que também pode configurar gênese de sofrimento e adoecimento.

    A fim de aliviar as dificuldades de inserção dos usuários da saúde mental no mercado de trabalho, a política brasileira de reabilitação psicossocial oferece alternativas, como os empreendimentos de economia solidária e o Programa de Volta para Casa (PVC). Os primeiros dependem de uma organização nem sempre possível no âmbito dos serviços de saúde. A bolsa paga pelo PVC tem valor irrisório e destina-se apenas a pessoas que passaram dois anos ou mais em instituição psiquiátrica. Não é, portanto, um instrumento de promoção de saúde, nem um benefício socioassistencial, mas busca compensar uma dívida histórica com as vítimas do manicômio.

    Algumas questões se impõem ante os temas aqui tratados, e ainda que se busque respondê-las, talvez o incentivo a novas dúvidas e provocações seja o principal objetivo deste livro.

    Como o Estado capitalista compreende historicamente a categoria trabalho quando associada à política de saúde mental?

    Como a seguridade social trata a pessoa com transtorno mental?

    Qual é a concepção de trabalho implícita nas propostas de reabilitação psicossocial?

    É indubitável que o modo de produção capitalista afeta a política pública de saúde, assim como faz às demais políticas. A incorporação da ética capitalista do trabalho como ideologia hegemônica nas políticas sociais influencia o cotidiano das pessoas com transtorno mental usuárias de serviços de saúde mental e interfere na sua relação com os profissionais de saúde e com a comunidade. Assim, as propostas de reabilitação psicossocial têm uma perspectiva terapêutica, de busca de cidadania e autonomia, mas pouco refletem sobre o significado da inserção de pessoas com transtorno mental no mercado de trabalho, notadamente alienado, estranhado e adoecedor.

    O fato de o transtorno mental não ser identificado na aparência das pessoas e de seu diagnóstico comumente não ser possível por meio de exames laboratoriais torna os usuários dos serviços de saúde mental sujeitos a todo tipo de desconfiança. Com frequência, os próprios profissionais de saúde sugerem que a pessoa está simulando sintomas ou situações a fim de obter um ganho secundário. Seja no hospital psiquiátrico, seja na unidade de atenção psicossocial, o ganho secundário é apontado como o interesse do paciente ou de seu familiar em obter vantagens do tratamento ou do transtorno mental. Costuma-se associar o termo às solicitações dos usuários, como o afastamento do trabalho, o acesso à gratuidade no transporte público, requerimento de benefícios socioassistenciais e maior atenção dos terapeutas. A preocupação primária, na visão do serviço de saúde, é o tratamento. A quem procura o serviço de saúde recaem julgamentos morais que o atribuem a pecha de preguiçoso, aproveitador, insubordinado ou com baixa tolerância à frustração, expressão tão comum nos prontuários.

    Ao mesmo tempo, embora haja demanda por licenças, aposentadoria e benefícios socioassistenciais, formalmente esses direitos são atribuídos às pessoas com deficiência e só se aplicam às pessoas com transtorno mental quando elas chegam a apresentar perdas cognitivas que configurem deficiência intelectual ou quando os médicos assistentes elaboram pareceres que enfatizem a incapacidade para o trabalho e para os atos da vida civil. Quando o louco requer esse tipo de benefício, sua concessão soa como favor, tanto do médico que fornece relatório ou preenche formulários quanto do órgão gestor da política pública.

    Além do olhar desconfiado da sociedade e da equipe de saúde sobre a loucura, a centralidade do trabalho assalariado também aparece nos indicadores utilizados pelos profissionais para considerar se uma pessoa está bem. Normalmente, estar apto para o trabalho é o principal sinal de que uma pessoa está psiquicamente bem. O incentivo à vinculação ao mercado também é visto como uma tentativa de promover melhora no quadro psíquico.

    Nessa perspectiva, as unidades de saúde desenvolvem atividades de educação para o trabalho remunerado, oficinas terapêuticas, oficinas de produção – às vezes em formato de cooperativa – e encaminhamentos para os serviços de seleção de trabalhadores. E essa prática não é errada! Diante de um contexto em que direitos só são acessados por meio do trabalho assalariado, é necessário buscar a inserção dessas pessoas no mercado laboral.

    No entanto é preciso que questionemos se a atividade laboral é algo para todos. O que há de ser daquelas pessoas muito dependentes ou daquelas que simplesmente não se enquadram nas exigências dos empregadores por seus comportamentos e por sua instabilidade? Devemos insistir nessa forma de socialização ou é chegada a hora de assumirmos, politicamente, que não há possibilidade de que todos trabalhem e se encaixem no mercado, mesmo que informal?

    A angústia compartilhada neste livro reside na contradição que se expressa na relação entre a pessoa com alienação mental e o trabalho alienado. Considerando o adoecimento de trabalhadores, os determinantes sociais da saúde mental, a representatividade desse campo na saúde coletiva e a permeabilidade das políticas públicas à ideologia capitalista, resta a dúvida: será possível mudar a realidade com uma proposta em nível de reforma? Há algo de revolucionário sendo esquecido nesse processo.

    O golpe de Estado de 2016, no Brasil, e os subsequentes desmontes de direitos de cidadania reforçam esse questionamento. A fragilidade daquilo que é reformado é muito evidente, principalmente quando o processo não foi finalizado. Ainda há manicômios no país. Em alguns lugares, em vez de serem implementados serviços substitutivos, eles foram apresentados como serviços adicionais, convivendo com muitos leitos de internação em hospitais e clínicas especializadas, além das vagas em comunidades terapêuticas –

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