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E-book497 páginas8 horas

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Sobre este e-book

Todo mundo tem medo do câncer, a doença assusta, evita-se até falar nela. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a OMS, o câncer é a segunda principal causa de morte no mundo todo, cerca de um em cada seis habitantes morre devido à doença. Os números são pavorosos, todo ano morre o equivalente à população de um pequeno país, do tamanho de Portugal. Dentre os tipos de câncer, os mais comuns são, na sequência, de pulmão, de mama, colorretal, de próstata, de pele e de estômago. Os mais mortais são os de pulmão, colorretal, de estômago, de fígado e de mama. É uma verdade infeliz dizer que muitos de nós experimentaremos o câncer de alguma forma, seja em primeira mão como paciente ou no apoio a um ente querido através de seu diagnóstico e tratamento. Eu pensei que jamais teria. Mas tive. É verdade também que a doença cruel pode inspirar uma renovada empolgação pelo futuro, gratidão pela vida, desejo de alcançar novos objetivos e maior proximidade com as pessoas amadas. Enquanto eu me tratei do meu câncer, muita água rolou, veio o coronavírus e mudou tudo, o que já era difícil ficou ainda mais difícil. Fazer o que? Revisitando o meu passado, minha vontade de viver me fez superar todos os obstáculos. O mundo não deu uma pausa para que eu me tratasse, muito pelo contrário. Descobri que não existe remédio melhor do que a esperança, a gente descobre forças que julgava não ter, nada se iguala à expectativa da cura. Meus dias tinham cara de travessia. Enquanto isso, apesar de tudo, eu vivi, venci e sobrevivi para contar a história. Uma lição de vida.
IdiomaPortuguês
EditoraM-Y Books
Data de lançamento4 de jul. de 2021
ISBN9781526026170
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    ENQUANTO ISSO - FÁBIO FREIRE

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    SINOPSE

    Segundo a Organização Mundial da Saúde, a OMS, o câncer é a segunda principal causa de morte no mundo todo, cerca de um em cada seis habitantes morre devido à doença. Os números são assustadores, todo ano morre o equivalente à população de um pequeno país, do tamanho de Portugal. Dentre os tipos de câncer, os mais comuns são, na sequência, de pulmão, de mama, colorretal, de próstata, de pele e de estômago. Os mais mortais são os de pulmão, colorretal, de estômago, de fígado e de mama. É uma verdade infeliz dizer que muitos de nós experimentaremos o câncer de alguma forma, seja em primeira mão como paciente ou no apoio a um ente querido através de seu diagnóstico e tratamento. Eu pensei que jamais teria. É verdade também que a doença cruel pode inspirar uma renovada empolgação pelo futuro, gratidão pela vida, desejo de alcançar novos objetivos e maior proximidade com as pessoas amadas. No final de tarde do dia oito de agosto de dois mil e dezenove, o Doutor Daniel Luis Luporini, meu gastroenterologista em São Carlos, interior de São Paulo, diante de mim, abriu um envelope com o resultado da biópsia de uma colonoscopia que eu havia feito pouco mais de um mês antes. A abertura do envelope levou uma eternidade, o antes e o depois pareciam ter anos de diferença. O câncer no cólon me foi revelado assim, com suspense, o maior susto da minha vida. Era dada a largada para uma longa corrida contra o tempo, pela vida, pela cura. Tal como aquelas Matrioskas russas, uma descoberta revelava outra, depois outra, e mais outra, surpresas sucediam-se, eu não fazia a mínima ideia de qual seria a próxima. Enquanto isso, a covid-19 me assombrou, outro susto, isso mesmo, teve coronavírus, teve pandemia, teve isolamento social, teve máscara hospitalar e álcool em gel, teve loucura, teve desobediência, teve arrogância, teve irresponsabilidade, teve carteirada, teve sacolé de cloroquina, teve politicagem, teve continência e incontinência, teve filósofo de esquina, teve de tudo muito e mais um pouco. Teve também união, compaixão, caridade, bondade, a humanidade se viu à beira do abismo, demonstrações de grandeza e de baixeza ocuparam as manchetes. Enquanto isso tudo acontecia, eu fui operado, eu fiz quimioterapia, eu engordei, eu tomei uma dose de morfina e outras tantas de ópio, eu viajei ida e volta até Alfa Centauro, eu sofri, eu chorei, eu xinguei, eu revisitei o meu passado, eu aprendi, eu mudei e renasci. O mundo não deu uma pausa para que eu me tratasse e me curasse, longe disso. Foi bom assim. Enquanto isso, apesar de tudo, eu vivi, venci e sobrevivi para contar a história.

    CONTRISTAÇÃO

    Agora folgo, não porque fostes contristados, mas porque fostes contristados para o arrependimento; pois fostes contristados segundo Deus - Paulo. (II Coríntios, 7:9.)

    Quanta vez se agitam famílias, agrupamentos ou coletividades para que a tormenta lhes não alcance o ambiente comum? Quantas vezes a criatura contempla o céu, em súplica, para que a dor lhe não visite a senda ou para que a adversidade fuja, ao encalço de outros rumos? Entretanto, a realidade chega sempre, inevitável e inflexível.

    No turbilhão de sombras da contristação, o homem, não raro, se sente vencido e abandonado. Todavia, o que parece infortúnio ou derrota pode representar providências salvadoras do Todo-Compassivo. Em muitas ocasiões, quando as criaturas terrestres choram, seus amigos da Esfera Superior se alegram, à maneira dos pomicultores que descansam, tranquilos, depois do campo bem podado.

    Lágrimas, nos lares da carne, frequentemente expressam júbilos de lares celestiais. Os orientadores divinos, porém, não folgam porque os seus tutelados sejam detentores de padecimentos, mas justamente porque semelhante situação indica possibilidades renovadoras no trabalho de aperfeiçoamento. Todo campo deve conhecer o tempo de ceifa ou de limpeza necessárias.

    Quando estiverdes contristados, à face de faltas que cometestes impensadamente, é razoável sofrais a passagem das nuvens pesadas e negras que amontoastes sobre o coração; contudo, quando a prova e a luta vos surpreenderem a casa ou o espírito, em circunstâncias que independem de vossa vontade, então é chegada a hora da contristação segundo Deus, a qual vos eleva espiritualmente e que, por isso mesmo, provoca a alegria dos anjos que velam por vós.

    Lição 153 do livro Vinha de Luz editado pela Federação Espírita Brasileira (FEB)

    A PRIMEIRA LEMBRANÇA

    A vida do lado de cá começa quando a gente deixa o calor do útero da mãe e encontra a luz fora do ventre. Um momento importante, o mais importante de todos, porém, para sempre esquecido. Eu saí por um corte feito na barriga da minha mãe, a tal da cesariana me trouxe ao mundo numa noite quente de três de fevereiro de mil novecentos e setenta e dois. Isso foi em Rio Claro, no interior de São Paulo, nasci com praticamente quatro quilos e meio e o título de primeiro paulista da família. Um bebê grandão e bem mais moreno do que todos os outros no berçário. Assim me contaram, eu não me lembro de nada disso, uma pena, imagino como deve ter sido a percepção dos meus segundos iniciais. Pura magia, um verdadeiro mergulho no milagre da vida, ofuscado pelo intenso brilho da luz, um mundo de sensações novas, de frio, de sons, de movimentos, uma relação de causalidade num fluido diferente, menos denso, menos viscoso. Liberdade! Deve ter sido bom, assustador, marcante, definitivo. Sei lá, só posso especular. Minha mãe era uma jovem de vinte e um anos na época, meu pai tinha trinta e era professor na UNESP. Os dois ainda se lembram de detalhes daquele dia em que eu nasci, mas eu, que protagonizei tudo, não me lembro de nada. Enfim, o cronômetro já marcava o meu tempo, cortado o cordão umbilical, eu estava livre para começar a minha saga, sem saber disso.

    Pois a primeira lembrança que eu tenho na vida, a que me acompanhou por décadas até a chegada dos meus cabelos brancos, a mais antiga de todas, é a de estar preso. Isso mesmo, preso dentro de um banheiro. Talvez a psicologia tenha uma explicação para os caprichos da memória, a personalidade do sujeito, isso e aquilo. Ou ainda, pode ser que a religião possua respostas. Não sei, só sei que eu fiquei preso no banheiro do apartamento em que passei a infância no Rio de Janeiro, e nunca mais esqueci. Antes disso, nada, nenhuma lembrança. Festinhas de aniversário, o primeiro Natal, os passeios de Fuscão, a primeira ida à praia, as primeiras palavras, o primeiro dia na escola, nada, nada. Fim de ano chegando, eu de olhos fechados, durante a minha terceira seção de quimioterapia na Santa Casa de São Carlos, concentrado até o último fio de cabelo, focado na tarefa, em busca da minha própria retrospectiva, lá no começo, lembrei-me de estar preso no banheiro. Isso mesmo, não adiantava enganar a memória, fiquei preso no banheiro logo após uma ida à Niterói, pela ponte recém-inaugurada. Um passeio gostoso, com direito a um almoço delicioso, uma manhã que mereceria uma boa recordação, não fosse o xixi que me custou caro. Sempre tive muito pudor com relação a essas coisas, uma vez me chamaram de mijão na Praça da Ribeira, na Ilha do Governador, e, a partir desse dia, passei a trancar a porta do banheiro à chave. Essa última não era uma lembrança minha, mas dos meus pais. 

    Ao longo dos vários meses de tratamento contra o câncer, no decorrer de um legítimo processo de mudança interior, frequentemente, fui projetado para o meu passado sem premeditar ou mesmo ter plena consciência do que fazia. Por vezes, deixei de existir fisicamente e virei meus pensamentos, vagando livremente na linha do tempo, revivendo momentos de felicidade, de ensinamento, não havia planejamento, isso simplesmente acontecia. Os baixos níveis de energia vital decorrentes da quimioterapia ajudavam, eu queria no futuro a mesma felicidade do passado, a alegria espontânea da minha infância, a leveza da minha juventude. Aquela terceira seção de quimioterapia, quatro de dezembro de dois mil e dezenove, lançaria a pedra fundamental desse novo hábito de reconstruir, peça por peça, o meu passado. Nele eu me apoiaria para seguir em frente, nele eu encontraria o otimismo que eu precisava e a certeza de que depois da tormenta vem a calmaria. Se fiquei preso no banheiro quando ainda era bem pequeno, o deleite por ser solto, ao ver aquela porta se abrir diante dos meus olhos de criança, foi maior do que tudo. Estar do lado de fora foi como sair de um mundo em preto e branco e enxergar todas as cores de novo. Minha primeira lembrança. Após tantos anos, lá estava ela, batendo na porta da mente, ou da alma, pedindo licença para entrar. Tempos de encantamento no Rio de Janeiro.

    O exercício de memória foi mais ou menos assim. Nessa época a minha praia era o Aeroporto Internacional do Galeão, religiosamente aos domingos, o meu pai me levava para ver aviões decolarem e aterrissarem, era um barato. O ritual incluía um saquinho de batata frita, cheia de sal, inclusive no preço, de alguma lanchonete que não vem ao caso. Tanta coisa boa para se fazer no Rio de Janeiro da minha infância, mas o que eu gostava mesmo era de ir para o Galeão. Depois eu tinha assunto para a semana inteira na Escola Topo Gigio. A recordação dos pousos e das decolagens era boa, ótima, mas tinha lembrança mais antiga do que essa na minha cabeça e eu sabia disso. Vamos lá. Eu fui à inauguração do Museu Aeroespacial no Campo dos Afonsos, Vila Militar, no final de setenta e seis. Momento histórico para mim! A partir desse dia precisamente eu comecei a dizer a todos que seria piloto, seguro de mim, uma convicção que durou até a adolescência, quando passei a usar óculos e mudei de proa, embicando o nariz para outras profissões. Bacana, né? Outra lembrança boa, o problema é que ela não era minha, mas dos meus pais. Estava convergindo, em algum lugar do passado, entre as idas ao Galeão, e o museu no Campo dos Afonsos, eu fiquei preso no banheiro, legitimamente, a minha primeira lembrança. Havia um ingrediente importante nessa minha viagem no tempo, rumo a um sábado de calor escaldante no Rio de Janeiro, a ponte Rio-Niterói. Imensa, imponente, interminável, por onde passei minutos antes de ficar preso. No banheiro. 

    O recurso da memória seguia uma rota desconhecida, que nem a do cadáver de Paganini, fazia tempo que eu não olhava para trás em busca de lembranças. Muito pelo contrário, antes de descobrir o câncer, minha vida estava projetada para frente, para o futuro, para a mudança de apartamento, para o congresso em Belém, para a viagem de trabalho à Espanha, que eu conhecia bem, para os novos projetos. De repente, num belo dia seco de inverno, já no final da tarde, esse futuro deixou de ser o meu, não restava dúvida, o diagnóstico da doença foi claro, começava a minha corrida pela vida. Algum tempo depois, eu seguia as etapas do processo de cura. Naquela terceira seção de quimioterapia, ponto de partida dessa minha viagem no tempo, eu somente precisava desgarrar do presente e resgatar o meu passado. Parecía que mis recuerdos estaban simplemente condenados a perderse en el tiempo. Dentro de um galpão empoeirado. Eu nunca soube dizer se a Capitu traiu ou não o Bentinho em Dom Casmurro, na minha juventude, eu morria de medo que essa questão caísse no vestibular. Ironicamente, olhava para a minha própria saga sem saber direito se eu gabaritaria, ou não, todas as perguntas, se eu, de fato, era o autor de cada linha, de cada parágrafo da minha biografia nanica. Nosso passado nunca vai embora, em outras palavras, a reconstrução do que ficou para trás serve para interpretar o presente. Quando pequeno, eu fiquei preso no banheiro. Nunca esqueci.

    Enquanto os quimioterápicos me tiravam de órbita, era curioso e revelador olhar para o meu passado em busca da minha primeira lembrança. Pensava em mim mesmo como se estivesse imaginando uma outra pessoa, uma criança, um adolescente, um jovem, parecidos comigo, mas ao mesmo tempo, diferentes. Cada fase da minha vida teve um personagem mais ou menos criado por mim, com suas manias próprias, seus gostos e preferências, enfim, dois mil e dezenove chegava ao fim, o retrospecto de vida ajudava a amenizar os fortes efeitos dos medicamentos. Voltar no tempo me mostrava o quanto tudo foi diferente quando eu era mais novo. Mudou o Natal, ou mudei eu? Assim meio como o homem do Soneto de Natal de Machado de Assis, eu viajava no tempo, esforçando-me para recuperar lembranças, transformando o soneto em prece. Fazendo da prece a luz do túnel para o passado, vendo cenas em que eu aparecia, degustando-as como se fosse um Château Gruaud-Larose envelhecido, encorpado, uma miríade de sabores diversos. Como eu era, quem fui eu? Quais foram os caminhos que eu percorri, que me levaram até ali onde eu estava, me tratando de um câncer? O importante, porém, naquele momento, era a primeira lembrança, ocorrida num sábado de sol em que o menino vesguinho que queria ser piloto ficou preso no banheiro.

    Enfim, naquele sábado eu tinha entre quatro e cinco anos de idade, acho que já tinha cinco, vivíamos num confortável apartamento no início da Rua Gregório de Castro Morais do Jardim Guanabara, assim como a Praça da Ribeira, também na Ilha. O imóvel tinha um banheiro na área de serviço e eu fiquei preso nele. A extensa ponte Rio-Niterói, sem acostamento, havia sido impiedosa com a minha bexiga, cheguei de volta ao apartamento doido para ir ao banheiro. Esbaforido, entrei, bati a porta com força e passei a chave. Terminado o xixi, depois da descarga, ciente de que eu deveria lavar as mãos no tanque que ficava do lado de fora, tentei abrir a fechadura, mas vi que ela estava emperrada. Que desespero! Os detalhes do meu cárcere temporário não estão mais disponíveis, mas os meus gritos de pânico atravessaram os anos, eu chorava muito e batia na porta. Não consigo reviver aquele momento, lembro-me dele já adulto, meio coroa até, mas gostaria de poder ao menos imaginar como deve ter sido. Acho que foi traumático, de legado, ficou uma certa paranoia com porta fechada à chave. Eu gritava feito um bicho, vomitei o almoço todo, não adiantava pedir calma. Eu não estava e nem fiquei calmo, muito pelo contrário, estava preso e queria sair. Meus pais, do outro lado da porta, sofriam comigo. Acho que o prédio inteiro, de poucos andares, me ouvia.

    Por fim, não sei exatamente quanto tempo isso tudo durou, só sei que num determinado momento, meu pai perdeu a paciência, a cabeça e as estribeiras, meteu o pé na porta com força, e ela se abriu. Um legítimo super-herói! Eu estava apavorado. Para mim, terminava o drama. Não me lembro de ter saído, aos prantos, do banheiro, mas foi o que aconteceu. Fiquei mole o dia todo. No exercício de memória, minha primeira lembrança foi essa, cheia de gritos e de lágrimas, quase um parto. Era onde eu conseguia chegar na minha linha do tempo, meados da década de setenta, trancado no banheiro, desesperado para sair. Sei dizer que depois desse dia, até hoje, antes de trancar uma porta eu verifico se a fechadura está funcionando direito. Um hábito estranho para uma criança, mas nem tão estranho assim para um adulto. Eu faço isso, antes de fechar, dou umas voltas na fechadura com a porta aberta, escancarada. Ecos de um passado distante para mim, o mais distante de todos. Enquanto os medicamentos da quimioterapia circulavam dentro do meu corpo, meus pensamentos viajavam no tempo, de volta ao passado, sempre em busca de consolo para os dias que eu vivia. Preso no banheiro ou solto por aí, meu histórico de vida era recheado de bons momentos, um melhor do que o outro, o xilindró sanitário foi uma exceção. Seguindo as etapas da vida, subindo os degraus da idade, tomando injeções para me curar de um câncer, havia uma certeza na minha cabeça. Eu fui feliz.

    PRÓLOGO

    Todos os relógios do mundo, todos eles, em um enorme, ou melhor, imenso hangar. Antigos, contemporâneos, barulhentos, silenciosos, analógicos, digitais, prateados, dourados, de plástico, de parede, de pulso, de bolso, usados, novos, sujos, limpos, lá estavam eles, amontoados entre si, todos os relógios do mundo. Eram todos mesmo? Sim, eram todos, ninguém me dizia nada, eu simplesmente sabia. Não faziam nenhum sentindo onde estavam, armazenados dentro de um hangar escuro, filas e mais filas, jogos de prateleiras para todos os lados, não via onde começavam e nem onde terminavam. O breu e a tranquilidade do lugar davam um toque de mistério à experiência, como se algo fosse acontecer de repente. Eu caminhava lentamente, sem pressa, medindo os passos, olhando para todos os lados, contemplando os relógios, esperando o sobressalto.

    Em módulo de espera, seguia ouvindo o gostoso tic-tac, só os digitais estavam em silêncio. Todos funcionavam, marcavam as horas, um trabalho incessante, cumpriam com a sua função, mas nem todos faziam barulho. Tic-tac, tic-tac, quebrando o silêncio, deliciosamente, era muito gostoso ouvir os tic-tacs dos relógios, assim mesmo, no plural. O tempo parecia não passar, a não ser para os ponteiros que seguiam adiante, dando suas voltinhas, com um misto de tédio e eficiência, e delicada precisão. Displays também não perdoavam, devorando segundo após segundo, deixando-os para trás, sem dó nem piedade. Para mim, o tempo não passava, não significava absolutamente nada. Dentro daquele hangar, vencendo aquele espaço sombrio com passos curtos e pausados, eu vivia uma experiência atemporal, uma espécie de relatividade mal explicada, como um feitiço do tempo. Tudo acontecia, realidade ou não, o tempo era abstrato, vagando como um náufrago. Um conceito e nada mais.

    A medida em que eu seguia em frente, comecei a notar uma certa pressão em minhas costas, vindo da altura dos ombros e descendo até a lombar. Alças de palha sustentavam um enorme cesto que eu carregava como se fosse uma mochila, a princípio, sem notar. Segui caminhando, sem olhar para trás, era o que eu tinha que fazer, com um cesto nas costas, entre todos os relógios do mundo. Alguns deles eram lançados ou se lançavam para dentro do cesto, o peso não me incomodava, mas passei a sentir a presença. A iluminação era péssima, uma leve névoa impregnava o ambiente, a paz de espírito me fazia muito bem, o frescor do lugar combinava com o pouco que eu via. As batidas do meu coração seguiam o ritmo dos tic-tacs dos relógios, irmanamente sincronizados, parecia que algo iria acontecer. O cesto dava suaves solavancos, mas eu não me assustava, havia uma harmonia celestial e um sentido naquilo tudo. Um episódio que eu vivia sem saber o porquê, mas que me fazia bem.

    Lá estavam, todos os relógios do mundo, e eu, entre eles, levando alguns para passear em um cesto, dentro de um hangar sombrio. A mensagem não estava clara, tempo, presente, passado, futuro, tudo junto, difícil decifrar. Meu diálogo com todos os relógios do mundo era silencioso e cheio de indagações, cheio de questionamentos dos mais variados, os tic-tacs não me diziam nada, mas me faziam bem, só isso. Por que tantos relógios? Por que alguns pulavam para o cesto? Eu estava ganhando tempo? Por que eu estava ganhando tempo? Os relógios pareciam indiferentes a mim, até mesmo os que pulavam para dentro do cesto que eu carregava nas costas. Na verdade, eu nem os via, só sentia a presença. E a enorme indiferença. Estava no ar. Ali, naquele lugar, eu era uma sombra, uma silhueta na penumbra, caminhando, quase flutuando. Não sentia meus pés no chão.

    O corredor parecia não ter fim, nem começo. Mas tinha ambos. Havia vários corredores lado a lado, paralelamente arranjados, entre as prateleiras de relógios. Decidi andar para a frente, seguindo um único corredor. Para ser sincero, decidir não seria o termo correto, o negócio não funcionava assim. Tudo parecia muito repetitivo, um monte de relógios, era só o que eu via. Sentia-me passivo e insignificante diante dos ponteiros. Eu assistia aquilo tudo e me indagava, sem parar, qual era o meu papel naquele contexto. Pairando lentamente, eu operava em módulo automático, buscando lógica e sentido, mas o raciocínio, simplesmente, não chegava lá. De certa forma, dadas as circunstancias, eu não sabia o que pensar. Também não sabia se eu tinha que pensar alguma coisa. Uma trama com enredo de diálogos silenciosos, sem script. Tic-tac, tic-tac, era muito agradável.

    Apesar dos solavancos criados pelo pula-pula de relógios para dentro do cesto, era fácil transportá-los, meus passos eram leves e lentos, caminhava como um astronauta na lua. Sem esforço. Tudo era muito bom, mesmo sem entender coisa alguma, eu seguia confiante, ciente de que não estava ali à toa. As perguntas eram feitas, minha mente não descansava, nem se cansava, mas as respostas não vinham, nunca vieram. O tempo é tudo o que temos, quando não há mais tempo, não há mais nada. Tic-tac, tic-tac, segundos mal chegavam e já iam embora, esvaindo-se de minhas mãos, como água de bica. Vivia um episódio que surgiu do nada, que me transportou para aquele hangar sem que eu tivesse me dado conta, um clique, um estalo, ou nem isso, e lá estava eu, na companhia de todos os relógios do mundo. Eram todos mesmo? Eram sim, já disse isso.

    De repente, passei a sentir uma presença próxima, sutil, oculta na leveza dos meus pensamentos. Olhei para trás, mas não vi nada, ou melhor, ninguém. Ainda assim, havia alguém me acompanhando, o prazer imediatamente deu lugar ao desconforto. Não era medo, nem nada disso, a paz reinava em mim, o incômodo era mais intuitivo do que outra coisa. Talvez até, sugerido, fruto da mente, incessante em sua busca por respostas. Seria a mente o arquiteto daquilo tudo? Aproximei-me de uma das prateleiras, à minha direita, estiquei meu braço em direção a um punhado de relógios e os toquei levemente. Senti a matéria, o tato foi claro, não deixava dúvidas. Ou será que até o tato era obra da mente? Independente do que fosse, meus passos eram seguidos, por algo ou alguém, real ou virtual. Não dava para tocar, mas dava para sentir. Meus passos não eram os únicos a percorrer os corredores lotados de relógios, todos os relógios do mundo. Tímida presença.

    Pouca luz, poucas pistas, muitos relógios, tic-tac, tic-tac, todos eles, aquilo parecia o caminho aberto para reflexão, para pensar sem parar, mas eu não queria mais pensar. Não tirava da cabeça a companhia que eu recém ganhara. Que eu nem conhecia, de fato, mal reconhecia. Só sabia que existia. Calafrios e arrepios múltiplos foram sentidos, o frio no estômago paralisou, pouco a pouco, meus movimentos. Minhas articulações começaram a enrijecer, era angustiante olhar para frente e não conseguir ir adiante, esforçava-me, mas quase não saía do lugar. Enquanto eu petrificava, assumindo a forma de uma estátua, passei a sentir uma vibração nas costas, dentro do cesto, os relógios começaram a se rebelar. Todos ao mesmo tempo, estremeciam como se fossem explodir, eu já não me movia mais, nem tentava me mover. Mover-me não era mais relevante, eu sabia disso.

    Num curto lapso de tempo, que mal cabia na escala dos segundos, alarmes despertaram e eu pulei da cama, sobressaltado, quase enfartando. A imagem de uma silhueta indefinida e desconhecida foi a última lembrança do sonho esquisito, diferente, que me deixou confuso por alguns minutos até eu fincar os dois pés de volta à realidade do meu quarto. Sentia-me contrariado, ainda deitado na cama, queria estar um pouco mais em companhia daqueles relógios, queria ter pego alguns, adoro relógios. De relance, cheguei a reconhecer um relógio que eu tive na minha infância, todo branco, especial da Disney, com um desenho do Mickey e seus braços indicando horas e minutos. Só depois isso ficou claro, durante o sonho, ou episódio, passei batido, indiferente ao relógio do Mickey, como se eu fosse os olhos de uma outra pessoa. Acho que todo sonho é assim, sei lá. Aos poucos, fui me convencendo do retorno à realidade, incentivado pelo frio que eu sentia. Era dezenove de julho, estava enfraquecido por conta da dieta à base de caldos que eu havia feito na véspera, parte do preparo para a colonoscopia.

    O sonho com os relógios era recorrente, denso, que se repetia pela segunda vez como aqueles déjà vu que temos de tempos em tempos. Anteriormente eu havia tido esse sonho, nos mesmos detalhes, pouco antes de descobrir que tinha um aneurisma cardíaco. Ele parecia anunciar guinadas na minha vida, não seria diferente dessa vez. Não sei exatamente quando começaram, mas o primeiro semestre de dois mil e dezenove foi assim, repleto de sonhos, eu sonhava muito, diariamente, como nunca antes. Os sonhos viraram um hit nas minhas noites, sempre muito tranquilas. Estranhamente, passei a dormir com a expectativa do sonho que eu teria logo em seguida. Alguns eram do tipo nada a ver, outros me tocavam profundamente. Numa noite, sonhei que estava manobrando um fusquinha debaixo de uma árvore, e que a capota raspava em um galho. Até barulho fez. Certa vez, caminhei por uma praia estreita, de encosta, rente à água, sob o breu da noite, observando calmamente restos de peixes e de conchas espalhados na areia escura. A luz da lua fazia até sombra. Estranho, não tentei interpretar, mas havia uma paz muito gostosa naquele ambiente funesto. Era sempre um mergulho inconsciente no meu subconsciente, no universo complexo de sentimentos e de sensações dentro de mim. Visível somente para os olhos da alma.

    Avisos não faltaram, eu não suspeitava de nada muito errado comigo, mas diria que em um intervalo de uns nove meses, houve mudanças sutis e graduais nas linhas e nas entrelinhas da minha vida. As mais evidentes foram no funcionamento do meu intestino, hábitos matinais de várias décadas estavam diferentes. Dor, nenhuma, ao invés disso, um certo incômodo devido ao acúmulo das fezes e, vez ou outra, a sensação de estar com uma espinha de peixe entalada no abdome. Dependendo do histórico do dia, sintomas de uma leve cólica, ou quentura na barriga, me faziam correr para o banheiro, mas era quase sempre alarme falso. Não passava pela minha cabeça que aos quarenta e sete anos eu estivesse com uma doença grave e silenciosa se desenvolvendo dentro de mim. Por mais que eu, de fato, não associasse uma coisa com a outra, pouco a pouco, uma presença sutil passou a acompanhar os meus passos, em cores vivas. Nada palpável, difícil de descrever em palavras, mas tão presente quanto tudo e todos que me cercavam. Manifestação espiritual? Talvez, ou uma companhia que poderia ser um pensamento, ou um monte deles, uma energia, uma nuvem, uma invasão etérea com um arsenal de novidades em minha vida.

    Conjecturas iam se somando, ou melhor, se encaixando, de uma maneira bastante natural. Foi então que me deu vontade de fumar. Daquelas vontades difíceis de conter, como se eu soubesse exatamente como seria ter a nicotina em meu corpo. Nunca coloquei cigarro na boca, aceso, então, nem se fala. Tive muitas crises respiratórias na infância, por conta de uma forte bronquite, fumaça de cigarro foi responsável por algumas delas. Na década de setenta, havia poucas restrições aos fumantes, eu sofria com eles. De repente, sem mais nem menos, passei a gostar do cheiro de cigarro, quis saber tudo sobre sua produção, nem me importava com os malefícios à saúde. Quando via alguém fumando, ao vivo, na TV, não importa, sentia no canto da boca um prazer inenarrável, como a saudade de algo que eu nunca fiz. Parecia conhecer toda a dinâmica do fumo, da fumaça tragada, do pulmão cheio. Era junho de dois mil e dezenove, cheguei a sair de casa duas vezes para comprar cigarro na rua, mas acabei desistindo no meio do caminho, em parte por medo, em parte por vergonha. Eu e o fumante formamos uma dupla improvável durante duas ou três semanas, depois disso, a vontade de fumar foi embora do mesmo jeito que chegou, sem cerimônia. Mas deixou uma pulga atrás da orelha.

    Enquanto isso tudo acontecia com os meus dias, o mundo seguia dando suas voltas, rotineiramente, sem a pretensão de chegar a lugar nenhum, despretensiosamente girando na imensidão do espaço que é tão infinito quanto eterno. O bebê chorava em altos decibéis, começava a vida em algum lugar, em outro canto, a família chorava diante do caixão, fechava-se um ciclo, o começo e o fim. Muita coisa rolava, o futuro entrava em cena, sem pedir licença, e logo saía, deixando para trás um passado novinho em folha. O tempo seguia uma linha reta, sem recuo. Enquanto isso, flores insistiam em nascer fora da primavera, beleza e teimosia inspirando a doce fragrância do dia. O cheiro gostoso da chuva evocava lembranças, amanhecia em São Paulo, anoitecia em Tóquio. Alguém sorria, alguém sofria, uns chegavam, outros partiam. Fazia frio em São Carlos, era inverno no Brasil tropical, e um calorão em Paris, o verão no Velho Continente batia recordes. Mais de sete bilhões de pessoas em ação, espalhadas pelo mundo, como uma tropa de formigas ensandecidas, fazendo tudo ao mesmo tempo, dentro do segundo, do milésimo de segundo. E no segundo seguinte, tudo de novo.

    A vida não dá uma pausa enquanto você passa por dificuldades, tudo continua no mesmo ritmo de sempre, contas devem ser pagas, compras precisam ser feitas, aborrecimentos, tristeza, nada de ruim cessa para que você tenha mais tranquilidade e se cuide melhor. Só depende do bom uso da cabeça, ter equilíbrio, dar o devido peso aos fatos, contornar o que pode ser contornado, e encarar os desafios, todos de uma só vez. Saber escolher as batalhas do dia torna-se fundamental. Estabelecer prioridades, também. Em pouco tempo, fui envolvido por uma nuvem densa e escura, à minha revelia, que anunciava o período tempestuoso que logo tomaria conta dos meus dias. Foi como despertar de repente em um mundo diferente, minha percepção era outra, mesmo antes de ter o cenário completo da situação. Independente de credo ou de crença religiosa, algo ou alguém me preparava para o que eu viria a enfrentar, uma legião de benfeitores talvez, ou uma força oculta em meu próprio subconsciente, sugerindo o que eu deveria fazer. Minha vida estava muito estranha.

    Foi aí que veio o lampejo, em meados de julho fui fazer uma endoscopia juntamente com uma colonoscopia. A iniciativa de passar pelos exames foi sussurrada em meus ouvidos, não tenho dúvidas. Do nada, decidi procurar um médico sem me dar conta de que algo indicava a necessidade. Havia sangramentos esporádicos, mas havia também a negação, não deve ser nada, eu pensava e me convencia. Realmente, só parei para prestar a atenção nos avisos que me mandavam, nas pequenas mudanças aqui e ali, depois que recebi o diagnóstico e olhei para trás, em busca de pistas. Antes disso, a idade era a culpada de tudo. Estou ficando velho, era assim que eu respondia para mim mesmo. O tempo passava diferente, eu estava cismado, progressivamente, castelos de areia surgiam na minha cabeça. Varridos na menor brisa, para logo em seguida, aparecerem outros, no mesmo lugar. Não deve ser nada. Era a primeira negativa, ninguém quer ficar doente, muito menos de uma doença mortal, implacável, que assusta, que causa sofrimento, que muda tudo. Desconfiar, eu desconfiava, mas muito pouco, mal sabia o que me esperava.

    É difícil para um adulto não entender o que está acontecendo, nascemos e crescemos para desvendar todos os mistérios do universo, funcionamos assim. Cientistas brilhantes levaram o conhecimento humano a níveis avançadíssimos, pensadores, filósofos, gênios, pessoas normais, muitas foram as contribuições. Dentro de mim, eis que surge uma revolução silenciosa, enigmática, provocando mudanças em minha vida. Interrogações não me levavam a lugar nenhum, eu simplesmente não entendia nada. Vivia dias diferentes, cheios de novidades, virei meu próprio passageiro, numa viagem insólita dentro de mim mesmo, duplicado de corpo inteiro, indo em direção ao que eu não queria que acontecesse. De nada adiantava lutar contra, formava-se, pouco a pouco, uma corrente de elos e de pontos que mexia profundamente comigo. Eu não me preocupava, mas também, não ignorava o que acontecia. A energia não era mais a mesma, vivia cansado, a vitalidade envelhecia prematuramente, deixando-me mais frágil e, o que era pior, mais vulnerável em meu cotidiano. A melhor descrição dessa fase era a cisma, a palavra fazia bastante sentido ao dar uma explicação à uma mudança de hábitos em que coisas estranhas se sucediam diariamente.

    Eu no meio disso tudo, zanzando meu zigue-zague, de um lado para o outro, seguindo minha trajetória, com suas curvas e seus altos e baixos. A vida me regalou alguns privilégios, tive tudo o que eu precisei, quase tudo o que eu quis. Fui e sou amado, estudei, viajei, conheci gente interessante, tenho um bom emprego, status-social, nada me falta, sou feliz. As pessoas me respeitam, fui criado com altos valores humanitários, éticos e morais, sem falsa modéstia, assimilei muitos deles. Me orgulho de minhas origens. Minha vida é muito boa, nunca tive que lidar com grandes problemas, nunca perdi nada muito valioso, a sorte ou o azar pouco se importaram comigo, até então, não fui sacodido pelas turbulências que atingem muita gente, vivi em paz, seguindo meu caminho por aí. Dei minhas trombadas, esbarrei no aleatório, tive poucos obstáculos, superei a maioria. Sempre achei que o entardecer e o amanhecer fossem presentes eternos, sempre tive a certeza de que voltaria para casa, ao final de mais um dia de trabalho. Nunca questionei meu futuro, vivi minha vida projetando os próximos passos, novos desafios, os anos seguintes, seguro de que esses dias chegariam para mim. Foi então que eu acordei de manhã, para mais um dia de rotina, julgando ter a saúde de um touro premiado e, à noite, deitei na cama sabendo que iria dormir com câncer.

    O SUSTO

    Esperar é sempre muito chato, bom seria ter tudo sem ter que esperar. Mas não é assim que funciona, a espera não deixa de ser um ensinamento, algo que precisa ser assimilado para se viver melhor. Tudo acontece no seu devido tempo, em qualquer escala que se queira, queimar etapas complica tudo. A doença me fez, por força maior, repensar minha relação com o tempo, num curto período, tornei-me subjugado às suas vontades. Deixei de ser o timoneiro na minha própria linha do tempo e passei a viver uma dinâmica que me seria imposta, diferente da que eu queria. Mudanças assim são sempre muito complicadas, mas superar dificuldades significa melhorar como ser humano, e eu estava disposto a passar pelo processo completo. A vida começa com uma espera de nove meses, tranquila ou tumultuada, mas sempre, inevitável. Lá estava eu, esperando a minha vez de ser atendido, no consultório do médico, com mil e uma interrogações, pensando na vida, estranhamente sereno. Digo isso porque era verdade, havia uma influência boa e envolvente guiando os meus passos, revelando em mim uma calma que eu desconhecia, uma maturidade que eu não imaginava ter. Talvez um dia eu descubra a verdade por trás disso tudo, dessa presença oculta, invisível, que me fazia bem, naquele momento, porém, eu só desconfiava.

    O tempo todo eu sabia que havia algo de errado comigo, só não podia imaginar a dimensão do problema. Aos quarenta e sete anos eu já me sentia velho diante dos meus jovens alunos e jovem diante de muitos dos meus colegas da Universidade Federal de São Carlos. Não chamaria isso de um conflito da idade, nem algo bom ou ruim, só uma observação, ou melhor, uma constatação. De certa forma, o ambiente universitário tinha dessas coisas, professores ficavam mais velhos, os anos passavam, mas nossos alunos continuavam com os mesmos vinte e poucos anos. Em pouco tempo, uma nuvem de cabelos brancos invadiu a minha cabeça, rugas suaves mudaram os contornos dos meus olhos, o reflexo no espelho era então o de um jovem senhor, saudável, com muitos desafios adiante. Eu vivia várias projeções, pessoais, profissionais, familiares, iria me mudar para um apartamento mais amplo, enfim, de certa forma, eu estava descolado do presente. Assim era a cara da minha vida, com as marcas do passado e os flashes do futuro, enquanto eu aguardava pelo meu horário no consultório do meu gastroenterologista.

    Durante a espera, engatilhei uma sequência de negativas para o que eu vivia, não deve ser nada. Eu era o retrato da boa saúde, corado, disposto, nada parecia me fazer mal. Quando muito, uma vez ao ano eu tinha um resfriado, três dias de resguardo, no máximo, e ponto final. Ir para qualquer canto, longe ou perto, era uma grande alegria para mim, minhas malas estavam sempre prontas para viajar. Podia comer de tudo, e comia mesmo, enchia de pimenta as minhas refeições, experimentei muita comida regional em minhas andanças. Certa vez em Manaus, no restaurante Lenhador, comi fartas porções de arraia grelhada, sarapatel de tartaruga, guisado de jacaré, com todos os tipos de farinha disponíveis, levei dias fazendo a digestão daquilo tudo, mas dei conta do recado, com méritos. Quem convivia comigo tinha essa mesma impressão, de um cara muito saudável e com muita vitalidade. As mudanças pelas quais eu estava passando não encontravam respaldo lógico, portanto, não me preocupavam. Eu me julgava fora de todos os possíveis fatores de risco, se havia algo de errado comigo, certamente não seria nada sério. Um tratamento curto, um remedinho, talvez uma dieta especial (glutão por natureza, torcia para que nem isso fosse necessário) e tudo voltaria ao normal.

    Tinha em minhas mãos os resultados da endoscopia e da colonoscopia, imagens acompanhadas de laudos com jargão que eu pouco conhecia. Havia sido encontrado em meu cólon um tumor de espalhamento lateral que dava aproximadamente meia volta no anel do meu intestino. Tinha um aspecto horrível. Isso parecia explicar a mudança no meu hábito intestinal, o acúmulo de fezes durante o dia, o desconforto abdominal, mas faltava a biópsia para confirmar se era, ou não, câncer. Já dentro da sala do médico, a abertura do envelope com o veredicto pareceu-me um momento do Oscar, com aquele suspense para segurar a audiência. Doutor Daniel Luporini movia-se em câmera lenta diante dos meus olhos, a ansiedade mexia com as batidas do meu coração, acelerando meu ritmo interno e, principalmente, minha vontade de saber logo o resultado da biópsia.

    - É, é mesmo, era o que eu pensava, foi detectado a tempo, mas você vai ter que tirar isso aí

    Era ou não era câncer? Em nenhum momento ele usou a palavra câncer, ela só ficou subentendida, com esmerada clareza. Por fim, era sim, infelizmente, se não fosse, felizmente, não é nada ou é benigno, ainda bem, teriam aparecido em algum lugar na conversa. Foi assim que eu recebi a notícia, ao abrir o envelope lacrado com o resultado da biópsia e correr com os olhos a análise feita, Doutor Daniel não esboçava nenhum tipo de reação que revelasse a gravidade do caso. Nos poucos segundos que permaneceu em silêncio, lendo atentamente o conteúdo do envelope, o médico parecia confirmar algo que já sabia. Talvez fosse esse um protocolo comum para o anúncio de doenças graves, tranquilidade e cuidado com as palavras, mas comigo, não funcionou, imediatamente, eu resmunguei para mim mesmo tenho câncer. Aos poucos, enquanto ouvia os comentários sobre a minha situação, abriu-se um enorme túnel diante de mim, por onde eu gradativamente me afastei dali.

    De fato, até ouvir as primeiras falas do doutor Daniel, o câncer estava totalmente descartado como possível causa de mal funcionamento do meu intestino. Não me passava pela cabeça ter uma doença tão grave que só os outros tinham. No primeiro semestre de dois mil e dezenove, um aluno me escreveu desistindo da minha disciplina por conflito de horário com seu tratamento quimioterápico. Fiquei profundamente sensibilizado, mas nada pude fazer. As aulas continuaram, sem ele. O câncer parecia tão distante de mim e da minha realidade que eu me julgava imune a ele. Fui da total indiferença à mais profunda preocupação em poucos segundos. Minha vida não mais seria a mesma. No resultado dos meus exames, a palavra tumor aparecia ao lado de uma das imagens, a mais feia e deformada. Entretanto, no laudo final, a anomalia foi descrita como uma lesão de ângulo esplênico, para que me afligir! Uma mera questão de semântica, coisas da medicina. A lesão logo virou uma mera fissura na minha imaginação, deixei de lado qualquer resquício de inquietação e levei vida normal por uns dias.

    Existem momentos na vida da gente em que o antes e o depois estão tão distantes que nem parecem instantes subsequentes, ao ouvir o prognóstico do meu caso clínico, uma enorme cratera se abriu na minha escala de tempo, nada mais seria igual. Eu envelheci dez anos. Olhava para o outro lado da fenda, distante no horizonte temporal, admirando a rotina dos meus dias normais, que eu nem morria de paixão, mas que me fariam uma falta danada dali em diante. Em matemática, esses saltos são chamados de descontinuidades, implicando, quase sempre, em desafios adicionais, muita análise e reflexão. O mais curioso, porém, foi que num piscar de olhos, parei de pensar no futuro, ou melhor, não conseguia pensar nele. Isso só se intensificaria nos dias, semanas e meses seguintes. Tinha uma viagem planejada para a

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