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Devaneio de um escritor de meia-idade
Devaneio de um escritor de meia-idade
Devaneio de um escritor de meia-idade
E-book114 páginas1 hora

Devaneio de um escritor de meia-idade

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Sobre este e-book

Henrique Freire tornou-se um best-seller com seu romance de estreia, 'Azul Estígio'. No entanto, todas as suas publicações posteriores foram consideradas de baixa qualidade. Após um ano sofrendo de total bloqueio criativo, seu editor o pressiona para atender a um prazo, a esposa desiste do casamento e dificuldades financeiras ameaçam deixá-lo sem teto. Sem perspectivas, Henrique considera tomar um caminho pouco convencional pela realidade virtual, com o auxílio de um psicólogo bastante incomum, o Dr. Felipe Manchão. Esta soft sci-fi usa um enredo ágil e um estilo leve para abordar os processos criativos de um escritor e acender a fagulha da imaginação. Boa viagem!
IdiomaPortuguês
EditoraM-Y Books
Data de lançamento6 de jul. de 2021
ISBN9781526044648
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    Devaneio de um escritor de meia-idade - Fabiana de Souza

    1. Um vazio na mente

    Álcool e cigarros.

    Meus vícios de escritor de meia-idade, que me habitam as entranhas, tão difícil que é mudar alguma coisa depois de velho.

    Sei que deveria fumar menos. Até prefiro o efeito do cigarro esporádico ao do cigarro frequente, mas não me resta controle sobre tal ato. Acendo um cigarro na brasa do outro, fumando até o toco, sem nem perceber. Não é irônico? Eu fumo sem sentir que fumo; porém, se não fumo, não tolero a abstinência.

    Eu deveria beber menos também. Essa falta de controle me causou alguns problemas recentes, permeados pela embriaguez. Amnésia. Mais coisas que faço, sem sentir que faço. É como se eu estivesse vivendo a vida em standby, entorpecido, e sem fazer ideia do que é que estou esperando.

    Tento me lembrar dos últimos dias e não consigo. Nem sei que dia da semana é hoje e fico surpreso de ainda recordar meu nome. Nada mais adere à minha percepção. Quando saio para as ruas, a flanar, os lugares por onde passo se projetam, impessoais, na minha retina. Não os reconheço. Por vezes, me pego no meio do trânsito, sob o som ensurdecedor das buzinas, completamente inconsciente de ter chegado lá, e de para onde deveria ir.

    Sou um fantasma, uma sombra. Estou... vazio.

    Do parapeito da varanda, olho para a avenida, bem abaixo, tão pequena na minha perspectiva do décimo quinto andar: lá está o caos do fluxo diário, com seus ruídos constantes. Todo mundo continua, tão cheios de si... Como posso obter um pouco disso? Dessa gana, dessa energia, dessa coragem?

    Viro-me para encarar o rosto opaco, que me devolve o gesto, no semirreflexo do vidro fumê. Eu sou você? Sim, eis o clássico momento, quando nos olhamos e nos perguntamos: O que fiz da minha vida? Ou: o que a vida fez de mim? Em que ponto, no passado, vendi minha alma para Sei Lá Quem e me tornei tão autômato, tão insignificante?

    Jogo o cigarro no cinzeiro e atravesso a porta da varanda novamente, entrando no quarto. Arre! Como é difícil viver com esse vazio na cabeça!

    Luana acorda e se espreguiça, rolando uma perna para fora dos lençóis. Abre seus lindos olhos cor de âmbar e me olha. Eu poderia ceder à expressão batida cor de mel, mas seus olhos não são da mesma cor do mel. São quase amarelos. Felinos, misteriosos e superficiais.

    Nunca consegui entender por que o mistério está sempre associado à profundidade. Nas profundezas, não há mistério. Há algo diferente, algo que pode levar um homem à loucura, se for muito revirado. Mania de escavação nas ideias. Para mim, o mistério sempre habitou a superfície, visível ao olho nu. "De Profundis, minha bunda!"

    — O que há, querido?

    Sua voz, cheia de sono e da rouquidão característica das manhãs, espalha-se por todo o quarto, tridimensional. Eu não respondo. Não sei o que há, nem tenho vontade de dizer nada. Apenas me sento ao lado dela, na cama.

    Ela acende um cigarro. Em um minuto, estou fumando novamente. Observo quando os dois assopros de fumaça encontram-se e entrelaçam-se, no silêncio. Nós costumávamos dançar? Sinto vontade de tocá-la, mas não o faço e não sei por quê. Eu só me deixo lá, parado e silencioso, com o cigarro a me consumir.

    2. Todos temos que lidar com prazos

    — Já faz quase um ano, e você não escreveu uma única linha, Rique! Não posso esperar mais. — Tales balança a cabeça, em descrença. Ou talvez seja um tique nervoso, eu já não sei. — E faz dez anos que você teve um livro de sucesso. Vou ter que te cortar.

    Não posso negar o raciocínio dele. Eu também me cortaria, se estivesse em seu lugar. Suspiro, olhando através das frestas das persianas, enquanto a tarde se esvai e o firmamento tinge-se com a tinta da noite. Veja esta bela frase! Eu gostaria de poder formulá-la e compartilhar com ele. Talvez, assim, pudesse ganhar mais tempo. Mas minha mente está vazia e eu não digo nada. Ele olha para mim com pena. Pfff..., pena. Como eu odiava isso! Em outra ocasião, iria embora imediatamente. Só que não tenho mais amor-próprio e até rezo para que a sua pena me dê mais tempo.

    Ele também suspira e sai de trás da mesa, caminhando para a janela e separando as lâminas das persianas para olhar o céu. Acho que está procurando o que diabos chama minha atenção por lá. Mas não há nada, amigo.

    Não. Há. Nada.

    — Eu preciso mesmo de um cigarro, — digo, me levantando da cadeira, com a intenção de sair da sala. — Você pode me cortar, sem ressentimentos. É o jeito. Não posso mais escrever, eu sei.

    Ele se vira para mim.

    — Conheço alguém que pode ajudar, se você quiser. Vá encontrá-lo amanhã. Te dou mais uma semana. É tudo o que posso fazer por você.

    Não pedi para que fizesse nada por mim, embora eu quisesse mesmo que alguém me colocasse num bote salva-vidas e me tirasse desse mar de insucesso. Estou acabado. Totalmente acabado. Abro a boca para recusar sua oferta, mas ele me entrega um cartão de visitas antes, que o som saia da minha garganta. Leio: Dr. Felipe Manchão, Psicólogo Criativo. Não consigo conter um riso de deboche.

    — Cê realmente acha que essa besteira vai me ajudar? Vai, Tales: você me conhece, sou totalmente antiterapia. Toda essa idiotice de trauma na infância e neurose sexual... Já tive muito disso. Tô de saco cheio, não quero escavar mais nada. Eu só quero respirar! Minha carreira foi medíocre, com apenas um grande romance, ok, eu posso lidar com isso. Nunca mais vou escrever outro Azul Estígio. É um fato. Você tem que lidar também. 

    — O doutor é diferente, acredite em mim. Vá amanhã e veja por si mesmo. Só então me deixe saber se vai precisar do prazo que mencionei.

    Não estou nem um pouco inclinado a fazer isso, mas guardo o cartão para evitar prolongar essa conversa. Preciso fumar, preciso respirar, preciso de uísque. Eu preciso mesmo sair daqui, agora.

    — Tudo bem. Vou considerar. Ligo pra você amanhã.

    Quando ganho as ruas, a primeira coisa que faço é acender um cigarro e tragá-lo demoradamente. Reconfortante. Olho para o celular e encontro duas chamadas perdidas de Luana. Ela raramente me liga, então, acho que deveria ficar preocupado. No entanto, não fico. Estou num limbo, onde tudo perde sua importância — até ela, que costumava ser uma estrela radiante para mim.

    Ligo de volta, assim que termino de fumar.

    Onde você está, seu filho da puta?

    A voz dela soa colérica e parece pior, com a leve estática de fundo, causada pelo péssimo serviço de telefonia móvel.

    — Hã? No Tales? Eu te disse que ia me encontrar com ele.

    Ah, sim. Espero que ele tenha boas notícias para você, porque eu tenho uma bem ruim. Você não disse que ia no banco, conversar sobre os atrasos das parcelas da casa? Você não renegociou a dívida? Porra, Rique!

    Ai, minhas bolas! Esqueci completamente. Deveria ter feito isso há semanas, quando recebemos o comunicado. Não sei o que dizer a ela, que espera a resposta durante uma eternidade.

    Quer saber? Eu desisto. Estou

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