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Mandaqui, Imirim e Santa Cecilia
Mandaqui, Imirim e Santa Cecilia
Mandaqui, Imirim e Santa Cecilia
E-book97 páginas1 hora

Mandaqui, Imirim e Santa Cecilia

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Sobre este e-book

A crônica que dá título ao livro Mandaqui, Imirim e Santa Cecília remete ao livro de João Antonio, Malagueta Perus e Bacanaço, onde o cronista acompanha as três personagens do título que flanam por SÃO PAULO e contam a história de uma madrugada paulistana. É o retrato da vida ao rés-do-chão, como descreve o gênero crônica o crítico literário Antônio Candido, que este autor tenta capturar, como o fizeram João Antonio, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues, Fernando Sabino e tantos outros antigamente, e atualmente o fazem Antonio Prata, Gregório Duvivier, Tati Bernardi, etc. Assim, o que o leitor lerá são histórias de simplicidade e singeleza: uma viagem de ônibus, um jogo de bocha, uma memória de um parente, um fracasso amoroso, um encontro com o passado ditatorial mal resolvido do país. Tudo isso a partir da cena do dia a dia e do cotidiano de cada um de nós. Ainda que seja um ponto de vista e experiência social situada da vida paulistana, os textos tentam refletir para a pluralidade de experiências e pontos de vida da cidade, seus dramas, tragédias, comédias e causos.
IdiomaPortuguês
EditoraTemporada
Data de lançamento3 de ago. de 2021
ISBN9786559320790
Mandaqui, Imirim e Santa Cecilia

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    Mandaqui, Imirim e Santa Cecilia - Marcello Stella

    1 —

    MANDAQUI, IMIRIM E SANTA CECÍLIA

    Às vezes gosto de me imaginar como sendo um dos personagens históricos paulistanos. Quase consigo sentir o contato da pele com o paletó e a calça branca, o nó da gravata preta não muito apertado, e os sapatos, brancos com detalhe em preto completam o traje. E, claro, não pode deixar de faltar o maço de cigarros no bolso interno do costume; os fósforos que servem de acompanhamento para as rodas de samba nos bares. Só ficaria faltando então o talento para o jogo de bilhar, que na década de 1930, envolvia os maiores malandros e mestres de toda a cidade.

    Não raro nessa época, a malandragem que frequentava os bares clássicos de bilhar virava noites e noites pelas mesas da cidade no centro velho: Barra Funda, Água Branca, Lapa, Pinheiros etc. Mas a paisagem da metrópole de hoje é muito diferente da vista nas rondas que Paulo Vanzolini realizava e totalmente incompatível com as figuras criadas por João Antônio em seus contos.

    Eis que num dia desses, a propósito de passar mais tempo com um amigo que não via fazia tempo, parceiro de longas conversas e confissões, resolvi convidá-lo para uma caminhada. Afinal de contas, iríamos pela primeira vez ao novo lar do companheiro que forma nossa trinca. Antes éramos Tucuruvi, Imirim e Mandaqui, só que, dessa vez, Luis, se afastou de nós e mora agora na Santa Cecília. Puxa, quantas caronas já ganhei deste camarada, ambos perseguidos pelo horário de fechamento do metrô, muito cedo, óbvio. Agora o jovem que ele ainda é se transfigura em adulto e passa a habitar seu próprio apartamento – ainda que alugado –, que é o sonho de muitos da mesma idade que a dele, a tão famigerada independência.

    Pois bem, sobrei eu no Mandaqui, e o meu caro Dias, no Imirim, vai saber quando esse partirá também. Inclusive posso dizer que ele forma dentre nós três, um ponto de equilíbrio. Sim, ele poderia ser sim o ponto médio da tríade, o que reúne as minhas melhores características e as do Luis, e pouco de nossos defeitos.

    — E aí, vamo andando pra casa nova do Luis?

    — Andando?

    — É, faz tempo que a gente não conversa!

    — Cê é doido, Cello.

    — Daqui a trinta minutos tô aí na frente.

    Bem... digamos que não dei muitas opções para meu camarada e, em vinte minutos, saí das proximidades do Horto Florestal, deixei seus vários prédios de apartamentos de dois cômodos sem sacada, típicos das nem tão novas classes médias; passei pelas casas mal pintadas e remendadas do Lauzane Paulista, e por fim aterrissei no Imirim. Sem dúvida um bairro contrastante, como toda a cidade, consegue conciliar os mais novos empreendimentos – shopping center, prédios residenciais de mais de 20 andares, apartamentos novos de 3 ou mais dormitórios – e pasmem, com varanda gourmet. Acontece que a varanda dos novos arranha-céus dá para as favelas e antigos conjuntos habitacionais, que insistem em jogar na cara dos novos moradores a velha vizinhança.

    Nem bem parei no portão de sua garagem e ele já estava lá, pronto para a longa caminhada. Era fim de tarde e chegaríamos à Santa Cecília antes das oito da noite. Então prontos, enquanto os últimos raios de sol desapareciam, nós nos movíamos pé ante pé, por casas típicas de São Paulo, em outras palavras, construídas sem muito planejamento. Por acaso decidimos ir pela avenida Engenheiro Caetano Álvares, que vai parar na Marginal Tietê, cortando antes os bairros da Casa Verde, Peruche e Limão. Logo descobrimos que essa via, apesar de levar nome de engenheiro, não teve sua engenharia pensada para os pedestres. Quantos buracos aparecendo sem parar. Tudo preparado para que ninguém caminhe, nem pernas humanas e nem os carros no asfalto, já que estes estavam parados no sentido do bairro, fim de tarde igual à volta ao trabalho, que é igual a trânsito.

    Quase que a Casa Verde levou o nome de Vale do Tietê, que seria mais digno e belo, para o bairro que futuramente abrigaria três grandes escolas de samba paulistanas. Contudo, a tal Casa Verde de um antigo fazendeiro levou a parada, e hoje pouco verde resta em seus caminhos. Até mesmo as árvores que resistem parecem cinzas, como pudemos constatar eu e o Dias. Além do mais, não haveria pessoas para aproveitar as sombras das árvores se estas existissem, pois as ruas do bairro lembram cemitérios de madrugada, e no caso, as almas penadas éramos nós, passantes.

    Simplesmente não havia praças ocupadas, nem aglomerações, vizinhos conversando nas portas, namorados desprevenidos, nada. Tampouco era possível observar os lares por dentro, os muros opacos e portões de ferro protegem a vida privada familiar de qualquer olhar estrangeiro.

    Assim foi também no Peruche e no Limão, à exceção de alguns botecos que apareciam de vez em quando, com seus aposentados por idade ou invalidez, a jogar suas partidas de dominó regadas a cerveja, enquanto assistiam ao Cidade Alerta na tevê. Mesmo com a tendência de reforma das velhas padarias e o surgimento das novas, com comanda, festival de sopas, fonte de água na entrada, o boteco resiste. Felizmente ele continua vendendo suas porções de bolovo e ovo colorido, seus pratos feitos, temperados a dedo – literalmente – e aquele torresmo inigualável.

    Demorou até que avistássemos as águas turvas do Tietê, que aqui parece menos um rio e mais um espelho preto e sujo, que reflete o fluxo de outro rio, o de carros que o margeiam. Ou melhor, refletiria esses carros, pois não há movimento, só trânsito. Inacreditável como há uns 60 anos se podia praticar remo e natação ali. Incrível como em tão pouco tempo conseguimos inutilizar o rio e transformá-lo em espelho fosco de nossos congestionamentos.

    Apenas transpomos o viaduto do Limão e a paisagem mudava quase que radicalmente. Sobretudo porque essa parte da Barra Funda em que nos encontrávamos agora deixava de abrigar um sem-número de motéis e drive-ins para se tornar alvo de uma mudança de perfil. Salvo engano, os corretores de imóveis preferem chamá-la agora de nova Perdizes. Engraçado que nem estamos tão perto da velha Perdizes. O certo é que cada metro quadrado dali inflacionou mais de 100% nos últimos tempos e até o estádio do Palmeiras está em obras. Justo em frente ao estádio há um novo empreendimento de quatro torres e cada uma parece ter uns 25 andares e áreas gourmet enormes, maiores que o meu apartamento inteiro. Ao seu lado há mais um novo/velho shopping da capital.

    Fosse o que fosse continuamos nossa caminhada, e,

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