Consolação: A sina do carteiro é o cortejo dos cães
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Sobre este e-book
Feito tifo, uma nova onda de maldade se alastra pela cidade. E com isso, crianças desaparecem misteriosamente. Marcos cresce nesse ambiente, solto nas vielas de um assentamento próximo ao Centro da grande cidade, garoto de palavra firme e boa conversa, curioso, como pode ser com os seus dezesseis anos. Junto a seu amigo, Pedro, ele busca jogar uma luz nessa escuridão de incerteza do futuro de muitas famílias. Mistério, investigação e aventura: qual será o futuro desses jovens?
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Consolação - Rafael Leite Vieira
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Capítulo 1
É manhã de julho. O ano é de mil novecentos e trinta e cinco, na cidade de São Paulo. A neblina densa que cobre o céu recebe os primeiros operários. Eles, intransponíveis nas calçadas, com seus casacos e guarda-chuvas, acordando aos poucos com mais um dia frio, sem notar os detalhes que os circundam. Alguns bocejos parecem querer engolir os prédios; outros, os automóveis e carroças. Ah, o que não é a perspectiva da pressa? A atmosfera em momentos chega à proximidade de ser confundida com o oceano, estático sobre o continente envelopado a concreto.
No instante seguinte, em que tudo volta a se mexer, o vento despreza as pobres presas calejadas, sobressalto de ondas, ventania. Como bombas no Cariri, gotas finas e afiadas caem para explodir no chão, na pele. Nuvens que formam árvores de raios, árvore genealógica da terra que o grande Nikola Tesla deve estar a se deliciar, se, assim, o céu também se apresenta a ele, bosqueado. Com seus aparelhos de medição, discorrendo como um louco para si, quanta eletricidade poderia ser tirada dessas formações de duas faces. Incríveis e monstruosas. Suas capacidades e efeitos. Poderia até, quem sabe, controlá-las, dissolver as nuvens em água para desaguarem sobre o solo de uma só vez, deixando tudo molhado na equação de um milésimo seco de segundo e, no milésimo seguinte, dilaceradas, e o sol aparece.
O tilintar das badaladas das seis horas, nas igrejas, unindo-se com o barulho das máquinas e dos bondinhos, começava a desfilar por entre os prédios e a tomar a cidade em suas ondas de choque. As pessoas estavam tomando fôlego dos anos difíceis. Novamente a indústria contratava, a superprodução era a palavra que estava em quase todas as frases, forjada como uma ilha em um oceano de níquel, dentro da mente dos grandes capitalistas, que usaram suas balhestilhas para achar o azimute e incentivar a expansão comercial, pois viam os anos vindouros com a instabilidade na Europa e as restrições ao comércio internacional por parte do governo, para amenizar a crise do final da última década. Com o preço dos produtos mais baixos, as famílias mais pobres, os braços fortes, voltaram a ter sonhos lúcidos, mais próximos de serem realizados. Começavam novamente a acordar e a sonhar com a vida melhor, a parte da esperança que deixa saudade.
A população voltava a crescer desenfreadamente em São Paulo, pessoas vindas de todos os cantos do Brasil encaravam os grandes edifícios de concreto e ferro, as engenhosas máquinas de moer grãos, de fiar algodão sobre e ao longo dos trilhos que transportam ao mar cortando as alamedas e verrugas da terra.
Pessoas das grandes capitais e pequenas cidades da Europa e Ásia chegam aos milhares, confinadas pelo Atlântico atordoado e, apesar de todo sacolejo da noite, chegam na praia sorrindo junto com o sol, pois deixaram para trás fome, sangue e todo o estrondar de pólvora e trovão.
Essa cidade que, às vezes, amedronta-nos por sua virtuosidade em se transmutar, a agregar diferentes ao coletivo, a mundializar um pequeno pedaço do Brasil, que parece ser imparável a alcançar as maiores cidades do mundo, contém também tudo o que de ruim um homem pode esperar nessa vida. O que será que mais atrai a nós, seres humanos? O caos ou a calmaria?
— Marcos! Vamos, acorda, vai até a padaria ver com seu Joaquim... Ande logo! Antes que ele jogue os pães fora.
Dona Adelina chama pelo filho com sua delicadeza de mãe, acordando Marcos, lavando seu rosto com as pontas dos dedos, chamando seu nome três vezes baixinho, sem acordar os outros filhos, que estavam deitados na mesma cama.
Mais uma manhã normal de inverno para Marcos, que acordava antes de seu pai para ir à padaria ver com seu Joaquim, antes que ele abrisse a porta da padaria e jogasse os pães de ontem fora. Como o de costume, ele andava observando cada detalhe que ele já conhecia, dos pregos mal batidos no barraco do seu Benedito, que deveria evitar passar correndo por perto quando estivesse brincando de pique esconde à noite, ao varal baixo que havia entre os barracos da Sílvia, uma garota albina que quase não saía para brincar, filha do seu Ademar e Dona Lucinda, e o barraco do seu Cristóvão, um velho de idade, mas jovem de espírito. Ele foi abandonado pelo seu único filho pouco depois que sua esposa morreu, há mais de vinte anos. Não tem contato com seu filho, nem sabe se ele continua morando nesta cidade ou estado, mas, mesmo com a solidão física, ele continua acompanhado da alegria por viver.
De lá, Marcos consegue ver, por um espaço entre as casas, a parte mais alta do assentamento, a casa do amigo Pedro. Eles têm a mesma idade, e estudam juntos desde que Pedro se mudou para a favela do Vergueiro com sua mãe. Tão rápido viraram amigos que parece que sempre foram. Pedro contém um rosto ameninado, parece conservar seus dez anos de sorriso fácil; suas caretas e imitações performáticas, longe de serem deboches, fazem todos ao seu redor caírem em gargalhadas. Ele, como um prodígio da arte das relações, abre-se facilmente a todos.
Seu pai é um italiano que veio ao Brasil fugindo do regime fascista de Mussolini que perseguia seus opositores, invariavelmente convicto de que deveria erradicar aqueles que com ele não compartilhasse o mesmo desejo pela infertilidade do pensamento democrático. Conheceu a mãe de Pedro em um dos atos contra os discursos de Delfim Moreira na capital paulista. Os dois tiveram um relacionamento de três anos, até que desapareceu quando Pedro tinha dois anos. Pedro tem poucas memórias concretas do pai, possui apenas uma fotografia que guarda como a própria vida e essa história curta, que lhe foi passada por sua mãe, e que ele reproduz com todo orgulho.
Sua mãe, Teresa, é jovem e tem uma beleza singular. Seus fios de cabelo negros e longos, lisos como água, escorrem por sua pele morena, contornando seu rosto fino, com perfeita simetria. Seus olhos, entre o castanho claro e o verde, dependendo do dia, são flores desabrochadas aos jardins do sol. Descendente de indígenas e portugueses, ela herdou o melhor dos dois povos, consegue a atenção de qualquer pessoa quando quer ser doce, e tem uma bravura indomável que existia em poucas pessoas que resistiram aos encargos engenhosos que eram tributados ao povo. Ela estava sempre lutando por melhorias no assentamento, como encanamento de água potável e esgoto, por melhoria nas ruas e melhores condições nos empregos.
Marcos observou também o pé de Cambuci com seus olhos grandes de um castanho que parecia uma folha seca, que podiam muito bem criar os frutos para seu gosto, mesmo fora da época. No beco da saudade, que liga o chão de terra dos barracos à rua de pedras mal batidas, entre a casa das gêmeas Almeida e o restaurante da dona Selma, no auge do inverno, o sol mal bate naquela terra que permanece úmida durante longos dias. Ele pulava os buracos, que hoje estavam cheios de água, sorria para os pássaros, cumprimentava todos que por ele passava.
Seu corpo forte para um garoto de treze anos faz com que lhe dêem atenção de adulto. Tem uma esperteza em seus olhos, esperteza que se transmuta em curiosidade. Sabe de cor, todos os caminhos que levam até o Centro da cidade, sabe quais frutos das árvores pode comer, sabe assobiar como o sabiá e o trinca-ferro, e em tons agudíssimos e tão altos, que seus amigos reconhecem seu chamado de uma extremidade a outra do conjunto de barracos. E, se quisesse se esconder no mato para nunca ser achado, ninguém, mesmo com o maior esforço, jamais o encontraria.
Só agora dona Adelina sentia que o inverno chegara. Ela, que tinha um calor de mãe, um calor que estava remendado à sua pele parda, castigada pelo sol, mas que ainda conserva a maciez de fazer dos abraços os mais aconchegantes de todas as estações. Dificilmente sente frio.
Seu corpo já está acostumado a subir e descer o morro equilibrando, com a destreza de um artista de circo, um balde cheio d’água na cabeça. Ativa como se estivesse ligada à eletricidade, como os bondinhos. É forte como deve ser uma mãe que cria seus filhos em uma favela de São Paulo. Ela nasceu em uma cidade do interior, ao norte de Minas Gerais, que sofre com a escassez de recursos, onde a seca transforma a vontade de viver em luta. Ela era uma criança quando seus pais decidiram partir em busca de mais perspectivas na cidade, que ia sendo impulsionada pelo seu primeiro surto migratório em grande escala, com o fim da escravidão, no final do século passado.
Enquanto Marcos vai à padaria, ela faz o café no fogão de barro e bambu, improvisado nos fundos do barraco de madeira e barro, onde há uma abertura para a fumaça ganhar o céu.
Seu Antônio levanta todos os dias no mesmo horário, como se tivesse um despertador em seus sonhos. Vai até o lado de fora ver o tempo, enquanto enrola seu cigarro de palha. Esse é o seu ritual matinal, é o seu tempo para reorganizar seus conhecimentos. Às vezes, ele ficava tão perdido em seus pensamentos e nos fios de fumaça densa que se entrelaçavam ao seu corpo, que dona Adelina precisava chamá-lo mais de uma vez para pegar café.
Seu Antônio hoje trabalha como carpinteiro, faz bicos pelos cortiços e pelas favelas da cidade. Veio do interior de Pernambuco para São Paulo muito novo, para trabalhar nas lavouras de café, mas, já no primeiro ano morando na cidade, entrou para a indústria. Seu primeiro emprego foi em uma metalúrgica, onde os constantes atrasos pela distância de onde morava não permitiram que ficasse por muito tempo.
Logo depois, foi contratado por uma fábrica de tecidos, para fazer o carregamento e entrega das cargas. Naquela época, a indústria têxtil crescia como a cidade, e seu Antônio conseguiu ao longo dos anos chegar a ser operador de máquina de tecelagem, algo do qual se orgulhava e sentia prazer em fazer, contava ele. Mas, com o declínio da indústria têxtil, que concorria com as grandes empresas estrangeiras, ele acabou perdendo o emprego. No mesmo ano, nascia seu primeiro filho com dona Adelina.
Hoje ele traz, exposta em sua pele, toda a vida desgastante que teve. Ainda conserva sua vitalidade e se diz pronto para qualquer tarefa que lhe apareça, com um sorriso de fazer inveja aos donos das chácaras e fazendas. Mas está perceptível aos olhos de todos a ação do tempo em sua fisionomia, nos seus gestos. Com o tempo, ganhou a calma e a paciência.
Ele tem cinco filhos. Teve dois com uma mulher que conheceu logo que se mudou para São Paulo, Amélia. Ele tinha dezessete anos quando a conheceu. Ela era a arrumadeira da pequena pensão onde ele se estabeleceu quando chegou à cidade, localizada ao sul, na capela do Socorro, onde passou seus dois primeiros anos em São Paulo. Amélia, dez anos mais velha que o jovem garoto, seduziu-o com seus conhecimentos mais didáticos sobre a vida e seu belo corpo forte e brilhoso.
Eles tiveram dois filhos, Paulo e Felipe, em um caso que durou um ano e meio. Amélia teve que voltar para o interior de São Paulo, quando seus pais adoeceram, e