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Consensualidade no Direito Tributário: reflexões acerca da sua admissibilidade no atual modelo de cooperação processual
Consensualidade no Direito Tributário: reflexões acerca da sua admissibilidade no atual modelo de cooperação processual
Consensualidade no Direito Tributário: reflexões acerca da sua admissibilidade no atual modelo de cooperação processual
E-book441 páginas4 horas

Consensualidade no Direito Tributário: reflexões acerca da sua admissibilidade no atual modelo de cooperação processual

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Sobre este e-book

Esta obra visa analisar a consensualidade no direito tributário à luz do atual modelo de cooperação processual, notadamente, por meio de um estudo mais acurado acerca dos modelos administrativos de atuação da Administração Pública dos últimos três séculos, das principais transformações ocorridas no direito tributário e de alguns instrumentos efetivos de gestão processual. Sob essas lentes, o objeto desta pesquisa concentra-se no tema da consensualidade no direito tributário, sob a ótica da segurança jurídica, da proteção da confiança, da boa-fé objetiva, da eficiência, da isonomia, do desenvolvimento econômico e, em especial, da abertura normativa proporcionada pela Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), que passou a permitir a realização de negócios jurídicos processuais atípicos, da Lei n. 13.140, de 26 de junho de 2015 (Lei da Mediação), que autorizou a mediação no âmbito do poder público, das Portarias da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional n. 33/2018, 360/2018, 515/2018 e 742/2018, que proporcionaram um novo modelo de recuperação do crédito tributário, além da recente modificação promovida pela Lei n. 13.129, de 26 de maio de 2015 na Lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996 (Lei da Arbitragem), que possibilitou o uso da arbitragem pela Administração Pública, indicando, assim, uma nova perspectiva para a solução consensuada dos conflitos na seara tributária.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de ago. de 2021
ISBN9786525208770
Consensualidade no Direito Tributário: reflexões acerca da sua admissibilidade no atual modelo de cooperação processual

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    Consensualidade no Direito Tributário - Bruno Bartelle Basso

    1. INTRODUÇÃO

    A adoção de mecanismos que permitam a prevenção efetiva e o adequado tratamento de litígios entre a administração fazendária e os contribuintes ainda é um grande desafio a ser enfrentado, em especial, diante da complexidade do atual sistema tributário brasileiro.

    A edição da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), da Lei n. 13.140, de 26 de junho de 2015 (Lei da Mediação), das Portarias da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional n. 33/2018, 360/2018, 515/2018 e 742/2018, além da recente modificação promovida pela Lei n. 13.129, de 26 de maio de 2015 na Lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996 (Lei da Arbitragem) indicam, contudo, uma nova perspectiva de solução dos conflitos na seara tributária.

    É, portanto, a partir dessa nova realidade, da percepção do cotidiano, da observação diária, das experiências empíricas que atestam a tensa e hostil rivalidade entre o Fisco e os contribuintes, que surgiu a centelha inspiradora deste ensaio, justamente, com o objetivo de demonstrar a possibilidade de se ladrilhar novos caminhos para essa relação.

    No estado atual de maturação do ordenamento jurídico brasileiro, não se admite mais o tratamento estanque, formal e avalorativo da relação jurídico-tributária, cabendo não apenas aos sujeitos envolvidos, mas, à sociedade como um todo, buscar um modelo adequado à resolução dos litígios tributários.

    Esse novo perfil, voltado prioritariamente à cultura dialógica e participativa, necessita ser implementado e amadurecido, a fim de romper, paulatinamente, com o atual modelo anacrônico de tratamento da administração tributária para com os contribuintes.

    Este ensaio procura resgatar a concepção de integridade da relação jurídico-tributária como principal caminho para alcançar o primado do pleno desenvolvimento econômico, apoiando-se, para tanto, nos pilares da segurança jurídica, da proteção da confiança, da boa-fé objetiva, da eficiência e da isonomia.

    A partir da (re)adequação da relação jurídico-tributária, espera-se que as partes deem início a uma nova forma de envolvimento processual por meio do dever de colaboração e de cooperação mútua e simbiótica.

    Sob esse olhar, buscar-se-á abordar o tema da consensualidade tributária, sem que, contudo, tenha-se a pretensão de que este trabalho represente a bala de prata ou a solução irrefutável para os gravíssimos problemas que assolam a esfera tributária.

    A proposta deste ensaio consiste, tão somente, em trazer luzes a um tema que, até bem pouco tempo, sequer poderia ser aprofundado, justamente, em razão da predominância de alguns dogmas no direito tributário, como o da indisponibilidade absoluta do crédito tributário e o da supremacia do interesse público sobre o privado.

    É que diante do atual cenário democrático, não se pode mais admitir a ausência de debates acerca de assuntos envolvendo, diretamente, a participação ativa dos contribuintes no processo de tomada de decisão da administração fazendária.

    Mais do que simples ideias, entendemos que a ressignificação concreta e efetiva da relação jurídico-tributária é uma das medidas necessárias para combater o antagônico regime institucional adotado pelo Fisco.

    Como procurar-se-á demonstrar, em um ambiente hostil e pouco cooperativo, é praticamente impossível realizar os direitos fundamentais almejados pelos sujeitos dessa relação e obter resultados diversos dos catastróficos que se tem conhecimento na atualidade.

    O desconforto com a realidade tributária não pode servir de barreira para o alcance de um novo modelo cooperativo. Cabe à sociedade enxergar esse desafio como oportunidade para uma nova era processual.

    Com essa crença, acreditamos que a busca pela redução da litigiosidade tributária e pelo adequando tratamento das lides na seara do direito tributário poderão começar a ser concretizados, especialmente, por meio da adoção de mecanismos processuais que valorizem a colaboração mútua das partes envolvidas.

    A par dessas premissas, destacaremos, no segundo capítulo deste ensaio, logo após a Introdução, os modelos administrativos de atuação da Administração Pública e o seu respectivo processo de constitucionalização, a fim de se demonstrar a necessidade de proceder a uma verdadeira releitura dos pilares da Administração Pública, diante do atual estágio de maturação da consensualidade administrativa.

    É que, de fato, o estudo da consensualidade no âmbito do direito tributário pressupõe inseri-la em um contexto muito mais amplo de atuação da Administração Pública, em que a postura autoritária e unilateral vem sendo, paulatinamente, substituída por outra dialógica e plural.

    Entre outros tópicos, abordar-se-á, ainda, a Administração Pública do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito, o neoconstitucionalismo e a consequente constitucionalização da Administração Pública, o surgimento da Administração Pública contemporânea, a ressignificação dos princípios da legalidade administrativa e da supremacia do interesse público sobre o privado, além do escopo da consensualidade administrativa no Brasil.

    No terceiro capítulo, tratar-se-á acerca das principais transformações ocorridas no direito tributário, dando ênfase ao papel da tributação no desenvolvimento civilizatório, à discussão relacionada à pretensa autonomia científica do direito tributário, à interpretação no direito tributário, notadamente, no que diz respeito ao papel do intérprete, ao conceito de juridicidade tributária e à possibilidade de utilização ou não de conceitos indeterminados e de cláusulas gerais no direito tributário, passando-se, por fim, pelo debate do novo modelo de recuperação do crédito tributário baseado na integridade da relação jurídico-tributária.

    No quarto capítulo, procurar-se-á assentar as premissas do modelo contemporâneo de cooperação processual no direito tributário, dando-se destaque ao neoprocessualismo, ao processo cooperativo, ao dever de cooperação processual no direito tributário e aos fundamentos principiológicos do modelo cooperativo no direito tributário, especialmente, aos pilares da segurança jurídica, proteção da confiança, boa-fé objetiva, eficiência, isonomia e do desenvolvimento econômico.

    Por fim, no quinto capítulo, o livro abordará temas relacionados à consensualidade no direito tributário, à cultura do litígio no direito tributário, aos instrumentos de consensualidade tributária previstos no Código Tributário Nacional, aos meios extrajudiciais de solução de conflitos tributários, aos negócios jurídicos processuais e à possibilidade de se adotar convenções processuais no poder público e no direito tributário.

    Espera-se, assim, que o presente ensaio possa servir de estímulo à reflexão acerca de um novo modelo de gestão processual que efetivamente valorize a cooperação mútua, a lealdade e a previsibilidade das condutas dos sujeitos da relação jurídico-tributária.

    2. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CONSENSUAL

    O estudo da consensualidade no âmbito do direito tributário pressupõe inseri-lo em um contexto muito mais amplo de atuação da Administração Pública, em que a sua postura autoritária e unilateral vem sendo, paulatinamente, substituída por outra dialógica e plural.

    Ao longo deste capítulo, procurar-se-á demonstrar que a utilização da consensualidade administrativa pode ser vista como uma nova possibilidade de atuação da Administração Pública, notadamente, diante dos paradigmas estabelecidos a partir do Estado Democrático de Direito.

    Para tanto, buscar-se-á realizar uma breve incursão histórica nos modelos administrativos utilizados ao longo dos últimos três séculos, com o objetivo de demonstrar o atual estágio de maturidade da consensualidade na Administração Pública e dos influxos necessários para o seu pleno desenvolvimento.

    Abordar-se-á, ainda, o neoconstitucionalismo e a consequente constitucionalização da Administração Pública, o surgimento da Administração Pública contemporânea, a ressignificação dos princípios da legalidade administrativa e da supremacia do interesse público sobre o privado, além do escopo da consensualidade administrativa no Brasil.

    2.1 OS MODELOS ADMINISTRATIVOS DE ATUAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

    A compreensão acerca da consensualidade na Administração Pública como imposição de uma nova realidade social pressupõe, como raciocínio antecedente, uma visão histórica dos modelos precursores utilizados a partir do Estado Liberal.

    Alertamos, contudo, que não se trata de uma simples narrativa linear, nem, tampouco, do reflexo de uma mera evolução temporal, mas, apenas, do retrato das principais características da Administração Pública ao longo dos últimos três séculos.

    Inicialmente, destacamos que há, basicamente, duas versões para a origem do vocábulo Administração. Para alguns doutrinadores, deriva de "ad (preposição) mais ministro, as, are (verbo), que significa servir, executar; para outros, vem de ad manus trahere, que envolve a ideia de direção ou de gestão. Nas duas hipóteses, há o sentido de relação de subordinação, hierarquia"¹.

    De uma maneira ou de outra, é preciso consignar que existe na relação de administração uma relação jurídica que se estrutura no influxo de uma finalidade cogente, cingindo o administrador ao cumprimento da finalidade, que lhe serve de parâmetro²:

    Como critério explicador, a relação de administração informa o direito positivo e fixa as pautas para interpretação de toda norma, de cada ato administrativo. Nela se vai encontrar o sentido – objeto de tanto cuidado de Recaséns Siches – do sistema do direito administrativo e de cada um de seus institutos, no clima republicano³.

    O termo Administração Pública, por sua vez, pode ser utilizado em vários sentidos:

    Administração Pública em sentido formal, é o conjunto de órgãos instituídos para consecução dos objetivos do Governo; em sentido material, é o conjunto das funções necessárias aos serviços públicos em geral; em acepção operacional, é o desempenho perene e sistemático, legal e técnico, dos serviços próprios do Estado ou por ele assumidos em benefício da coletividade. Numa visão global, a Administração é, pois, todo o aparelhamento do Estado preordenado à realização de serviços, visando à satisfação das necessidades coletivas⁴.

    Comumente, é empregada em sentido subjetivo, formal ou orgânico, designando os entes que exercem a atividade administrativa; em sentido objetivo, material ou funcional, designando a natureza da atividade exercida pelos referidos entes⁵.

    Para os fins a que se destina este ensaio, a expressão Administração Pública possui um significado amplo, representando tanto os entes públicos, quanto as atividades administrativas por eles desempenhadas no exercício de seu mister constitucional.

    2.1.1 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO ESTADO LIBERAL

    A Administração Pública do Estado Liberal vivia da contraposição entre uma esfera de liberdade, por definição ilimitada, e uma esfera de atuação estadual, que era por princípio limitada⁶, cabendo a ela conservar uma conveniente distância dos cidadãos, a fim de se tornar relativamente impermeável a interferências externas em sua atividade, quer dessas vindas, quer mesmo dos próprios administrados⁷.

    A atuação administrativa, nesse período, restringia-se à manutenção da ordem pública, da liberdade, da propriedade e da segurança individual⁸, caracterizando-se por ser negativa quanto ao âmbito de sua atividade, contratual quanto à sua origem (contrato social) e formal do ponto de vista de ausência de finalidades próprias (negava-se ao Estado uma vontade própria, como, por exemplo, o bem-estar)⁹.

    O Estado Liberal do século XIX, com lastro na ideia de liberdade, empenhava-se em limitar o poder político tanto por meio da separação estanque entre os poderes, quanto pela redução de sua intervenção na sociedade civil, correspondendo às aspirações de uma burguesia que buscava se salvaguardar dos privilégios aristocráticos.

    O modelo administrativo adotado nesse período era, nitidamente, impositivo, em razão da atuação unilateral por parte do poder público, podendo ser vista como uma verdadeira administração agressiva¹⁰ pautada por uma posição de elevada superioridade em detrimento ao particular.

    A organização administrativa apresentava-se como unitária, uniforme, hierárquica, piramidal, monocrática, centralizada¹¹, com o objetivo de manter um poder ativo, constante e geral, para implantar a nova estrutura social após a Revolução¹², evidenciando-se, assim, um resquício do Absolutismo no Estado Liberal.

    Imperatividade e unilateralidade estavam em uma verdadeira relação de simbiose nesse período, cabendo aos cidadãos obediência plena, incondicional e irrestrita às ordens emanadas pela Administração Pública, em razão da relação verticalizada até então existente.

    A Administração Pública aparecia como um mero instrumento de execução da lei, sem vontade própria subordinada, agindo de modo neutro, gozando de uma função marginal e subsidiária¹³, estabelecendo-se um nítido espaço de reserva entre as vontades estatais e as sociais.

    O modelo de Administração Pública no Estado Liberal era o de administração-poder, por meio de atos típicos unilaterais susceptíveis de execução forçosa¹⁴. Em linhas gerais, era assim caracterizado:

    No que respeita às formas de atuação, por fazer do ato administrativo o seu modo quase exclusivo de agir; quanto à organização administrativa, por apresentar uma estrutura concentrada e centralizada; e relativamente à fiscalização dessa atividade, pelo sistema de justiça delegada¹⁵.

    Tratava-se de uma concentração de poder coesa e coerente, a serviço de uma classe, a burguesia urbana, que ascendia, em confronto com outra monoclasse, a nobreza, protegida pelo absolutismo, que sucumbia¹⁶.

    A ruptura do Estado absoluto para o Estado liberal, contudo, não se deu de forma imediata. Por debaixo dos princípios ideológicos e estruturais definidores do Estado constitucional existiam linhas de continuidade, por meio das quais eram vertidos conteúdos do Antigo Regime¹⁷, embaralhando-se concepções antigas do absolutismo com as novas do liberalismo.

    A Administração Pública, na realidade, recolheu resíduos do absolutismo estatal e tornou-se meio de sua perpetuação¹⁸, valendo-se da confluência do direito de polícia, dos princípios introduzidos pela Revolução Francesa e do espírito de racionalidade dos franceses, sem apresentar qualquer destaque significativo na efetiva absorção dos princípios liberais.

    Sob a égide do Estado Liberal, aliás, a Administração Pública representou uma nítida forma de reprodução e reformulação das práticas do Ancien Regime, servindo-lhe apenas de revestimento e aparato retórico para a sua perpetuação fora da esfera de controle dos cidadãos¹⁹, com base em institutos que reforçavam o poder de império do Estado.

    As ações absolutistas e os ideais revolucionários convergiam em uma única direção, fortificando o poder estatal e assegurando a ordem pública estabelecida pelas leis formalmente editadas, tendo sido o Estado Liberal autêntico herdeiro – a benefício de inventário – do monarca absoluto, sobretudo, no âmbito da Administração Pública²⁰.

    A não intervenção da Administração Pública e a separação radical entre Estado e sociedade, em que pese terem representados uma melhor garantia ao pleno desenvolvimento da liberdade política, resultou na Administração por documentos, em que a preocupação com a legalidade (na verdade legalismo) deixa em segundo plano o aspecto de resultado ou de mérito²¹.

    O absenteísmo inerente ao Estado Liberal provocou imensas injustiças no corpo social, desvelando, naturalmente, a insuficiência da postura administrativa no exercício do seu mister, de modo que a questão social e as crises cíclicas do capitalismo, dos finais do século XIX e início do século XX, vieram colocar novos desafios ao poder político, chamando o Estado a desempenhar novas funções de tipo econômico e social²².

    Tornava-se necessária a transformação do "Estado devedor em Estado administrativo, ou seja, impunha-se o objetivo de reapropriação do Estado (repropriation des states) ao revés do objetivo negativo de expropriação do expropriado"²³. Era preciso abrir promessas de direitos econômicos, sociais e culturais, sem se colocar de lado o necessário respeito às liberdades e garantias individuais²⁴:

    A passagem do Estado garantidor ao Estado-providência responde ao duplo movimento de radicalização e de correção: radicalização como extensão e aprofundamento do Estado garantidor clássico; correção, no que diz respeito à necessidade de corrigir e compensar os efeitos de certo desentrosamento social²⁵.

    Nascia o Estado-providência, com caráter nitidamente assistencialista, caracterizando-se pela assunção de tarefas pelo Estado, voltadas à entrega de prestações positivas de caráter social e ao intervencionismo na economia²⁶, deixando a atividade administrativa de ser pura mantenedora da situação vigente, para se tornar realizadora das demandas coletivas.

    2.1.2 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO ESTADO SOCIAL

    Nesse modelo, procurou-se dinamizar a própria significação dos direitos fundamentais ao acrescentar à sua função de garantia das liberdades existentes, a descrição antecipativa do horizonte emancipatório a alcançar²⁷.

    O Estado Social, em contraposição ao Estado Liberal, necessitava se apresentar como um aparelho capaz de atender aos direitos individuais, a fim de ser prestacional, repartidor, distribuidor e partidor, no qual as garantias não se referiam a limitações, mas a prestações positivas, não à liberdade, mas à participação²⁸.

    O individualismo exacerbado do Estado Liberal foi substituído pelo humanismo democrático, mantendo-se em relevo a garantia dos direitos fundamentais, sem se descurar, contudo, dos direitos sociais e da concretização da igualdade material, buscando-se conciliar a liberdade com a isonomia democrática²⁹.

    A participação social, nessa relação, passou a ser verdadeira condição de existência do cidadão individual, nessa passagem da administração tipicamente interventiva para um perfil de administração prestacional³⁰, proporcionando o surgimento de uma nova relação jurídica, muito mais duradoura, estável e recíproca.

    A Administração Pública do Estado Social tornou-se efetivamente o centro das atividades estatais, invocando-se no lugar de um modelo agressivo e opressor outro constitutivo e prestador, passando o poder público a ser visto como o principal instrumento de concretização dos valores sociais.

    A clássica separação entre Estado e sociedade desaparece, dando azo a um novo fenômeno de intensivização dos direitos fundamentais pelo Estado prestador e pelo direito das prestações³¹. A Administração Pública assume uma feição criadora, conformadora e constitutiva, ao contrário daquilo que era a satisfação dum pensamento meramente executivo, expresso na ideia de um Estado de direito formal³².

    A atividade de administrar adquiriu um significado muito mais amplo, implicando verdadeira intenção de reconstituição explícita do sentido e da coerência normativa e dogmático-sistemática do todo da ordem jurídica³³, dando início à disjunção antropomórfica entre Administração Pública e governo, por meio da pulverização das competências administrativas entre os cidadãos.

    Diversamente, portanto, da Administração Pública do Estado Liberal, que fazia do ato de autoridade o instrumento privilegiado e exclusivo da sua intervenção, o Estado prestador tendia a diversificar suas formas de atuação, substituindo o uso dos meios autoritários por outros modos de agir mais consensuais, tornando o aparato administrativo cada vez mais plurirrelacionado com o entorno social.

    Vários fatores, contudo, trouxeram o esgotamento do Estado Social. Um dos principais impasses do welfare state surgiu, justamente, da dificuldade em se conciliar as necessidades populacionais com a crença da inesgotabilidade dos recursos públicos. Chegou-se ao final desse período com amplo questionamento acerca da sua eficiência, tanto para gerar e distribuir riquezas, como para prestar serviços públicos³⁴.

    A crise de governabilidade acabou por estremecer não apenas a estrutura econômica do Estado, mas, principalmente, o próprio consenso democrático em torno do modelo político até então adotado, gerando uma verdadeira crise institucional decorrente da inaptidão da Administração Pública em atender, de maneira eficiente, as tarefas que lhes eram imputadas.

    A ineficácia da máquina pública aliada à crise da democracia representativa e à proliferação de autoridades administrativas dissociadas do meio social aceleraram a transição do Estado Social para o Estado Democrático de Direito, a fim de buscar a implementação efetiva das promessas não realizadas pelo antigo modelo.

    A hipertrofia do Estado, da mesma forma que antes à euforia da liberdade conquistada, resultou também em:

    uma intoxicação progressiva do poder político e como curioso resultado, a sociedade, embora vitoriosa no século anterior, voltava à subserviência de novo sistema monoclasse imperial, em que não lhe restava senão o papel de massa de manobra nas ferozes estratégias de expansão do poder estatal³⁵.

    Buscou-se, a partir desse momento histórico, combater a hipertrofia estatal, diminuindo o intervencionismo e aumentando a participação popular, para a consecução de seus objetivos por meio de uma vontade conjugada, com base no ideal de interesse coletivo, em razão da atuação ineficiente da Administração Pública.

    Procurou-se superar a dramática encruzilhada entre a visão do racionalismo, inspirado em

    Inconcebíveis experiências de concentração de poder, de autoritarismo e de exaltação estatista, enquanto que a ela se opunha a antevisão da crescente incapacidade de substituir-se o Estado à sociedade sem correr o risco de subjugá-la, de emasculá-la e de criar férreas oligarquias dominantes de poder³⁶.

    O Estado se vê obrigado a aderir a um conjunto de princípios e de valores que se beneficiarão de uma consagração jurídica explícita e que serão providos de mecanismos de garantia apropriados³⁷, substituindo-se a concepção formal por um modelo substancial que a engloba e a excede.

    2.1.3 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

    No Estado Democrático de Direito, os ideais do modelo até então existente passaram a ser sopesados com os anseios do liberalismo, procurando-se eliminar a insensibilidade do Estado Social com a questão financeira (reduzindo-se o intervencionismo estatal direto) e se acrescentar novas exigências para a garantia dos direitos fundamentais e sociais³⁸.

    A sociedade civil começa a habitar, timidamente, o nicho público que era preenchido exclusivamente pelo Estado, desaparecendo-se a crença de que a Administração Pública fosse o único veículo indutor à inclusão social e ao resgaste das camadas populacionais mais necessitadas.

    Inicia-se o modelo de Administração Pública consensual, no qual a atuação conjugada de vontades e a consensualidade administrativa passam a ser, paulatinamente, incorporadas à rotina estatal, privilegiando-se a privatização, a contratualização e a terceirização da Administração Pública³⁹, podendo mesmo se falar em uma espécie de "fuga para o direito privado (flucht in das privatrecht)"⁴⁰, em busca da eficiência.

    O modelo estatal imposto pelo Estado Democrático de Direito passa a exigir da Administração Pública maior compartilhamento do processo de tomada das decisões administrativas com outros atores sociais.

    No lugar da Administração monológica, avessa à comunicação com a sociedade, erige-se uma Administração dialógica, paritária e consensual; em lugar do Estado impositor, apresenta-se o Estado mediador⁴¹, sendo decisiva para a maneira pela qual o público vê o mundo – particularmente, o mundo político – e seu próprio lugar nele⁴².

    A liberdade revela-se, pois, coletiva e não mais individual, exigindo-se da Administração Pública transparência, imparcialidade, eficiência e a previsão de uma estrutura fragmentada e compartilhada em substituição a um modelo hierarquicamente estanque e engessado.

    A preocupação com a disciplina e a democratização dos procedimentos formativos da vontade administrativa é evidenciada por meio da criação de mecanismos que auxiliam a participação popular ativa e do incremento do nível de informação da Administração Pública em relação às repercussões fáticas e jurídicas das medidas por ela implementadas.

    A interação da sociedade civil no processo para a tomada de decisão pela Administração Pública passa a ser uma garantia de maior ponderação de todos os interesses envolvidos, implicando, por consequência, reequacionamento do papel do Estado na sociedade, assim como a necessidade de proteção integral e eficaz do indivíduo perante toda e qualquer forma de poder (‘velha’ ou ‘nova’, pública ou privada)⁴³.

    A Administração Pública começa a deixar, teoricamente, de ser o direito de uma administração toda-poderosa, para passar a ser o direito dos particulares nas suas relações com a administração⁴⁴, impondo, por um lado, a efetivação de valores claramente individuais e, por outro, a realização de valores coletivos.

    Testemunha-se o surgimento de uma nova dimensão ou um novo âmbito da atividade administrativa, designada de administração prospectiva (Rivero, Nigro), prefigurativa (Nigro), constitutiva, planificadora (Tschira, Schmitt Glaeser, Brohm, Von Muench, Dirk Ehlers) ou infraestrutural (Faber, Parejo, Alfonso, Stober, M. Sudhof)⁴⁵.

    Muito mais do que um mero instrumento autoritário e coercitivo, a Administração Pública começa a se tornar um importante instrumento compositivo de interesses, caracterizando-se pela multilateralidade de relações e pelo alargamento da proteção jurídica subjetiva.

    Os diversos atores sociais passam a exigir a substituição de métodos impositivos por estratégias de negociação, pelo trabalho conjunto de todos os intervenientes, dando origem ao desenvolvimento de estruturas de cooperação em numerosos domínios do direito público⁴⁶, por meio de relações jurídicas multilaterais em que, tanto a Administração Pública, como os destinatários da norma, são partícipes no processo de formação da atuação administrativa.

    O início da democratização do exercício da atividade administrativa é marcada, assim, pela "abertura e fomento à participação dos administrados nos processos decisórios da Administração, tanto em defesa dos direitos individuais (participação uti singulus), como em nome de interesses gerais da coletividade (participação uti cives)"⁴⁷, baseando-se na responsabilidade política dos governantes, frente ao parlamento ou diretamente ao povo, pelas ações e omissões administrativas, na medida em que se encontram habilitados a dirigir, orientar, supervisionar e controlar as respectivas estruturas da burocracia estatal⁴⁸.

    A questão central passa, portanto, pela possibilidade de redirecionamento a um modelo que busque não apenas atender às necessidades de conformação do sistema posto, mas que tenha como norte uma atuação estatal voltada à realização das demandas sociais, por meio de instrumentos eficientes e participativos.

    A consensualidade administrativa torna-se um dos ideais a serem atingidos tanto pela Administração Pública, quanto pela sociedade, dando início à busca por um modelo cooperativo e não mais apenas impositivo.

    2.2 O PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

    A Administração Pública, ao sustentar ao longo de séculos, a necessidade de se manter total independência em relação aos administrados, por meio da adoção de práticas autoexecutórias, acabou criando em torno de si uma conveniente distância dos demais poderes e da própria sociedade, dando azo a um paradigma praticamente insuperável, no sentido de que o interesse público é um interesse próprio da pessoa estatal, externo e contraposto aos dos cidadãos⁴⁹.

    As promessas nascidas a partir do Estado Social acabaram se convertendo em meras divagações inconsequentes, proporcionando não apenas o surgimento de uma crise do modelo existente, como, também, o nascimento de um novo paradigma.

    2.2.1 NEOCONSTITUCIONALISMO

    A pós-modernidade⁵⁰ não nasceu do dia para a noite, mas foi produzida como consciência ao longo de todo o século XX, com cada fracasso, com cada engodo, com cada engano, com cada destruição, com cada abalo da modernidade que se provocava com doloridas marteladas político-econômicas, sobretudo as advindas dos países desenvolvidos⁵¹.

    Esse conjunto de transformações representou uma verdadeira transição paradigmática inserida em um ambiente de incerteza, de complexidade e de caos que se repercute nas estruturas e nas práticas sociais, nas instituições e nas ideologias, nas representações sociais e nas inteligibilidades, na vida vivida e na personalidade⁵².

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