Mozart em ritmo de samba
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Sobre este e-book
Neste livro de crônicas autobiográficas ela retrata a história de sua família, a fuga da Áustria e a chegada na Ilha das Flores, no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1949, como refugiados.
Até meus 27 anos foi apátrida, quando então se naturalizou brasileira. Não recebeu a nacionalidade austríaca, pois na data do seu nascimento o pai teria de ser austríaco, e era russo. Sua mãe tinha nascido na Romênia, na Transilvânia, numa região pertencente à Alemanha, e ao requerer a nacionalidade brasileira teve de renunciar à sua nacionalidade alemã, pois o Brasil não aceitava dupla nacionalidade.
Depois de morar nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Tailândia, Irina voltou de vez ao Brasil, e apresenta estes relatos intimistas de uma vida bem vivida, valendo-se dos fatos e da lembrança mas também com muita liberdade de estilo para desenvolver algumas situações inusitadas e imaginárias, criando uma imediata empatia com o leitor.
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Mozart em ritmo de samba - Irina Tuermorezov de Paula
Sumário
Mamei o medo
Era uma vez
E la nave va
Emigrantes imigrantes
Teclas brancas/pretas, silencioso para sempre, o pianinho de brinquedo
Companheiro
Óleo de fígado de bacalhau
Oh Jesus! sim!
Pasárgada
Quadros sem moldura
Charretes com cavalos enfeitados de flores
A caminho dos profetas
Minotaura
Quando éramos crianças
Jaulas
Tic-tac, tic-tac
Era uma Eva, minha tia
Vestido vermelho
Refrão
Grito mudo
Como poderei viver, sem a tua companhia
Pai
De todas a maior aventura
Beijo
Prazeres tão burgueses, tão deliciosos
Numa rua de São Paulo
Casinha branca com janelas verdes
Mulher
Belém do Pará
Serendipity
Objetos vivem
No armário um monstrengo?
O fim de franzkafka
Quando o avô precisa do neto para saber se não vestiu sua cueca do avesso
Faisão ao vinho
Na Terra, na Lua
Freud
1971
Pátria amada, salve, salve!
Ordem e progresso
Bendita televisão
Comédia
Por favor, não estrague a fofoca com fatos!
Enquanto você nascia
Em Washington D.C.
Nem um nem outro
Triste Paris
Pagando mico
Husky
O mágico
Quimera
Eros
Sutil travessura
Mar
E dá-lhe peixe!
Se fosse Mozart na Amazônia
Girassóis
Círculo
Carta a um amigo
Com chave de ouro
Primaveras
Assalto ao contrário
Estou viva
Em família negra ovelha branca?
No Paradise Cottage
Enigmas
Christmas
Tailândia
Infinita
agradecimentos
Sobre a autora
Texto de orelha
Dedico este livro aos meus filhos Isadora, Raphael, Roman e Dorian e ao meu neto Matheus
Imagino eu como seria ser o vento, voando pelo mundo sem fronteiras......
Raphaël
Mamei o medo
Mamei o medo nos túneis subterrâneos de Viena no período de 1944 e 1945, quando 100.000 bombas foram lançadas sobre a cidade somente naquele ano.
Nasci e mamei enquanto sirenes anunciavam a aproximação de aviões e aviões de bombardeio, cobrindo a terra de morte e pavor.
Minha mãe se refugiava comigo bebê recém-nascida num dos abrigos subterrâneos, correndo, disparando, com o medo bloqueando o peito, o cérebro, a alma, o terror nos olhos dilatados, mulheres carregando seus filhos, crianças perdidas, velhos se arrastando; homens jovens ou em idade madura não havia mais; Hitler havia recrutado todos, desde os meninos a partir de catorze anos.
Estavam eles lá no alto ou em países longínquos provocando a morte, perdendo pernas, braços, perdendo a visão, mutilando o rosto, enquanto suas esposas e mães ali embaixo davam à luz os seus filhos, seus irmãos e tentavam preservar a vida, espantalhos desesperados.
Aquele medo todo mamei no peito de minha mãe, a incerteza dos instantes, o futuro explodindo em pontas de chumbo, a agonia, o vazio dos olhos mortos, esse holocausto, marcou meu inconsciente.
Era uma vez
Uma criança na Áustria. Mora no campo. Já é quase verão, mas ainda o vento traz das montanhas o cheiro fresco da neve. Inspira fundo essa delícia correndo por um colorido de flores e se joga em seu meio como se fossem uma onda no mar. Deitada ali, escondida, pode ver as flores de baixo para cima bordando o céu, o céu azul, tão azul.
Aí vem seu amigo, o carneiro de chifre enrolado — símbolo de seu signo — chega, empurra-a de leve com a cabeça, que se levante e lhe faça companhia. Passa os dedos por sua lã embaralhada e macia. Seu fauno.
Mas um dia, meu pai chegou em casa e disse:
Precisamos ir embora agora.
Deixamos tudo, a casa, a minha avó, avó sempre ocupada com filosofia e nos contando histórias à noite ao irmos dormir, histórias de gnomos e anões, vivos na luz do fogo todas as tardes aceso no grande fogão à lenha, uma obra de arte, de ladrilhos de porcelana, ocupando do chão ao teto todo um canto da sala a esquentar a casa inteira.
Largamos as roupas, os baús, abandonamos o lar, com seu porão onde eram armazenados dezenas de recipientes de vidros de geleia e outras iguarias em conserva, onde eram secadas as maçãs, os tomates e defumado o toucinho, tudo preparado durante os meses de verão e outono para enfrentar o rigoroso inverno, deixamos para trás os queridos, o coração, e partimos no meio da noite, meu pai, minha mãe e eu com cinco anos incompletos, na neve, para atravessarmos a fronteira com a Alemanha.
Ficamos escondidos na casa de uma amiga dos meus pais, não podíamos sequer aparecer à janela. Teríamos de pegar a primeira embarcação que saísse da Alemanha e levasse consigo refugiados de guerra, e essa foi para ser a nossa salvação, um navio americano, que seguia para o Brasil.
À espera da chegada do navio moramos ainda cerca de dois meses num acampamento de fugitivos, apinhados em espaços destinados a cada uma das famílias ali em igual situação, equipados de camas beliche, de uma pequena mesa com abajur.
Cozinhava-se do lado de fora. E no acampamento também um jardim de infância russo, que eu frequentava.
Era dezembro, e meus pais conseguiram celebrar a véspera de Natal ali para mim, estimulando minha imaginação, secretando seus preparativos já durante a tarde atrás de um fino tecido que fazia as vezes de cortina. Quando anoiteceu, acenderam a pequena luz sobre a mesinha, aí consegui adivinhar algumas formas veladas por detrás do véu.
Um pequeno e enfeitado pinheiro verde exalava o cheiro das florestas europeias, serpentinas prateadas embalavam seus galhos, bolas brilhantes refletiam a luz em suas cores, pequeninos enfeites pendurados aqui e ali, um minúsculo limpador de chaminés com o rostinho chamuscado de fuligem segurando sua escadinha — símbolo de boa sorte, um boneco de neve coberto de glitter branco, um miniursinho marrom dirigindo seu trenó; velinhas de cera de abelha, presas e acesas uma em cada galho e a grande estrela dourada no topo do pinheirinho, tudo isso trazido por eles, salvo na mala às pressas ao fugirmos da Áustria.
Tal era a importância da tradição do Natal para os meus pais.
Armaram e decoraram a pequena árvore enquanto eu, do alto do beliche, tentava decifrar as imagens dissipadas. E ainda arrumaram um burrinho de pano para me dar, meu presente de Natal. Alguém da barraca vizinha veio tocar violino e eu imaginei, na realidade eu vi, e vi mesmo, através do diáfano tecido que me separava da cena, um anjo com suas asas prateadas e longo vestido branco, flutuando naquele ambiente rústico e desprovido, a imagem que eu tinha do Christkind desde a Áustria — a criança Cristo, figura símbolo de acordo com a tradição austríaca, um anjinho que vinha escondido na noite da véspera de Natal para deixar presentes debaixo do pinheirinho, pois a concepção de Papai Noel foi surgir mais tarde.
Naquelas dificuldades, na adversidade gelada daquele inverno, em meio a um monte de gente preconceituosa — uma vez vi um rapaz sendo apedrejado e vi seu cabelo ficar cheio de sangue, por algum motivo em razão de nacionalidade — as pessoas com a guerra tinham aprendido mais ruindade, barbárie — ainda meus pais interiorizaram para mim uma oferenda de religiosidade naquele meu último Natal na Europa.
Eu ainda não sabia, mas a partir daquele momento, eu me tornaria uma espécie de nômade a viajar por aí à procura do desconhecido e, principalmente, da proteção de um lar.
E la nave va
Depois, o tempo.
Parou.
Só no horizonte sombrio fluindo o céu para dentro do mar, uma vaga profecia, ritmando nossa esperança.
Imaginávamos chegar a um país paraíso com as palmeiras em charmoso cortejo nas praias de areias brancas e o mar cintilando turquesa. Imaginávamos nós à sombra de frondosas árvores de imensas copas, distraídos pelos micos no alto. Imaginávamos comer bananas, fruta diferente de tudo, às margens de lagoas com flamingos cor-de-rosa, araras e papagaios voando cores e chamados. A atração do exótico, do desconhecido. A cornucópia dos trópicos.
E minha mãe esperava encontrar nem sei o quê, ela que só conhecia as frutas silvestres meio escondidas nos bosques da Europa e até lá nunca tinha sequer posto os olhos em uma pessoa de pele negra.
Não sei quanto tempo durou a viagem daquele navio cruzando o grande oceano. Umas três semanas ou mais e durante todo o trajeto minha mãe e eu ficamos sem ver meu pai, sem nenhum contato com ele, pois os homens permaneceram em um compartimento e as mulheres e crianças separadas deles, em outro.
Num dia de vento forte, ondas que pareciam tudo poder engolir, mar turbulento, todos fomos chamados para o convés. E ali permanecer. Fazia muito frio. Nunca senti enjoo