Quase música
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Pré-visualização do livro
Quase música - Luiza Maria Camargo Xavier
luiza maria camargo xavier
quase música
sumário
Imago
As vilas
O fantasma
Sopa de aveia
A família
Avenida Piabanha
Os cascudos
Os anuros
O jardim
O jardim 2
Orange
Luiza Maria Luiza
O avião
Cappuccino
Fines herbes
Ravelianas
O violinista
Banana splícita
A boa jiboia
Mediúnica
Bandeiras brancas
Para Anita, Ícaro, Tábata, Anibal e Maria Sole
Aqueles que dançavam foram tidos como loucos por aqueles que não conseguiam ouvir a música.
friedrich nietzsche
imago
Sobre a cama, observo a luz que se propaga e não quer turvar o tom do quarto, apenas conservar o frescor e o ar de minhas manhãs de sábados. Sábado é o day after de um Fleur de Rocaille entranhado nos travesseiros e eternizado na pele de minha mãe.
A semana tem o perfume do couro da mala que protege meus cadernos e livros encapados com papel pardo, veem-se estrelas douradas coladas nas folhas por mérito e excelência de grau, aplicação.
A merendeira também é cheirosa, de um couro macio que deixa à mostra o copo da garrafa térmica prateada com minha limonada repousando ao lado de um pão francês recheado com patê envolto em papel laminado.
Meus tutus
e sapatilhas, assim como os cetins, filós e meias de malha, também exalam meu suor adocicado da infância. Mas gostar de dançar era pouco para insistir na ideia de um estágio no Bolshoi, como gostaria meu pai,
e minha bailarina pairava desde então sobre um corpo fragmentado, de desejos flutuantes.
Talvez isso explicasse em Lausanne eu ter levado na face aquele tapa de uma vizinha obsessiva, por causa dos fiapos de lã de um sweater mal programado na máquina de lavar comum a todos da cave, qui ça por mim ali deixados, como o substrato de uma inadequação!?
Seria o caso de um grand jeté para nocautear a inimiga mas, qual nada, a indignação e o susto pela surpresa do gesto paralisaram-me por completo.
Na verdade, vinha amadurecendo a ideia da volta para o Brasil, e essa foi a gota d’água. Não suportaria mais um inverno alpino hibernada naquele apartamento minúsculo, quebrando a cabeça num puzzle de mil e quinhentas peças sobre um quadro de Brueghel.
Precisava ver o Aterro, mais que qualquer outra paisagem do Rio. Engraçado, não tinha sede de mar como a maioria das pessoas quando estão fora; o verde, o azul
e a visão do espaço do Aterro do Flamengo me diziam muito mais, remontavam à época do primário, do Externato São Marcos, onde estudava, na Praça São Salvador.
Costumava passar por lá ao menos uma vez por semana com meu pai em direção à cidade para apertar meu aparelho no ortodontista. Geralmente fazíamos esse trajeto de táxi, o Ford preto de Seu José, um português muito educado que dirigia devagar e com cuidado para que fôssemos apreciando a beleza da Enseada de Botafogo, Morro da Viúva e a Praia do Flamengo.
Depois de sofrer marteladas em meus dentes de coelha, passávamos pela Cinelândia para tomar um sorvete patrone, que não era da Kibon, e estendíamos nosso passeio a tirar fotografias!
Imago era o amigo que andava sempre por perto, por dentro de tudo e de todos, lançando dados e dúvidas e inaugurando a passagem do abstrato para o concreto.Passeava flâneur a meu lado um pouco desconcertado por sua dificuldade de representação e vagava como um númeno procurando tornar mais viáveis os princípios apriorísticos de sua crítica transcendental. Meu pai, materialista, dialético, às vezes tinha ciúmes, temia que eu sucumbisse aos encantos da sereia metafísica.
O mundo então era um céu aberto de uma luz e azul absurdos, afetos e perfectos vibravam sob a fibra diáfana de meu diapasão. Sobre as construções e arquitetura da cidade, apenas os contornos eram relevantes, o que mais me