Em Defesa da Democracia: Um Contraponto à Racionalidade Técnica na Educação
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Em Defesa da Democracia - Adriana Toso Kemp
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E TRANSDISCIPLINARIDADE
À Graciana e à Joana, filhas amadas,
que nasceram sob a égide,
ainda que frágil, da democracia no Brasil,
e agora lutam junto comigo para evitar sua extinção.
AGRADECIMENTOS
Ao professor José Pedro Boufleuer, por compartilhar generosamente seu conhecimento, instigando-me sempre à reflexão e à crítica durante todo o percurso de orientação para a elaboração de minha tese de doutorado, que deu origem a este livro.
À professora Vânia Cossetin e aos professores Paulo Fensterseifer, Sidinei Phitan, Amarildo Trevisan, Fábio Junges e Jayme Paviani, pela leitura atenta e pelas contribuições à qualificação do texto.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências, em especial aos da Linha 2 – Teorias Pedagógicas e Dimensões Éticas e Políticas da Educação –, com os quais tive o privilégio de dialogar nas disciplinas que cursei e nos grupos de estudos dos quais participei.
Aos colegas do Programa, com os quais tive a oportunidade de interagir durante o curso, especialmente à Sabrina Corrêa, à Franciele dos Anjos e à Cláudia Ilgenfritz, também pela amizade que transcende o espaço-tempo da Universidade.
Às secretárias do PPPGEC, pelo atendimento sempre atencioso e cordial.
Ao Instituto Federal Farroupilha, pela concessão da licença integral para qualificação durante os dois últimos anos do curso de doutorado.
A todas as pessoas que, de alguma forma, contribuíram para que eu pudesse escrever este livro.
MODOS DE DIZER
O povo que não lê
nem sabe escrever
cultiva pensamentos
nos quintais do poder.
Por certo ele entoará
com sua voz porosa
um hino à justiça
no seu modo de falar.
Se tudo é prático
e prática desmedida
a fadiga dos dias
será justificada.
A voz do povo
no ritmo do verso
sabe os detalhes
conhece a vida.
Quando o rosto reflete
o grito do existir
já é hora do barco
buscar outro rio.
(Jayme Paviani, 1982)
Tento juntar palavras para dizer às pessoas quais são os problemas, de onde eles vêm, onde se escondem, como encontrar ajuda para resolvê-los se for possível. Mas são palavras. E não nego que são poderosas, porque a nossa realidade, o que nós pensamos que é o mundo, esta sala, nossa vida, nossas lembranças, são palavras.
(Zygmunt Bauman, 2014)
PREFÁCIO
Coube-me a honra de prefaciar este livro que agora chega em suas mãos. Em defesa da democracia: um contraponto à racionalidade técnica na educação, mais do que um estudo ou uma defesa estrita das disciplinas de humanidades, pode ser tomado como um tratado sobre educação e seus vínculos para com uma sociabilidade que se pretende sustentada em princípios democráticos. Mediante uma interlocução com importantes e renomados autores contemporâneos, Adriana estabelece uma linha de reflexão que articula uma compreensão do tempo presente, as condições da vida humana simbolicamente configurada e as tarefas historicamente atribuídas à escola para, então, pensar o lugar das humanidades na formação humana e na formação escolar em específico.
Grosso modo, pode-se dizer que o presente livro articula uma compreensão de condição humana com o ideal de uma vida democrática. A partir do entendimento de que o característico do humano já não é a obviedade dos caminhos, já que, diferentemente das outras espécies animais, não mais pautamos nossas vidas em determinações instintivas, a abertura para um vasto horizonte de possibilidades é o que nos marca. Essa abertura do humano se apresenta de modo especialmente crucial para a vida coletiva, uma vez que os parâmetros de convivência necessitam ser estabelecidos no tempo histórico, ao mesmo tempo que demandam um acerto para com cada nova geração de humanos que chega ao mundo. E é pelo caráter de artifício desses parâmetros, como, de resto, de tudo o que integra o mundo humano, que a educação das novas gerações se torna uma tarefa imprescindível.
A novidade das sociedades democráticas em meio à vasta trajetória da humanidade está no fato de pretender orientar e suportar a vida coletiva nos próprios indivíduos que a constituem. Por óbvio, trata-se da recusa da noção de que alguém pudesse saber antes e melhor do que todos os demais quais os melhores caminhos a serem trilhados. É, por isso, a recusa da figura do ungido, do predestinado, de quem se sobrepõe aos demais em função de alguma pretensa diferença ou qualidade em relação aos demais humanos. A opção por uma vida democrática implica, por sua vez, no desafio de qualificar os próprios indivíduos, de todos e de cada um em particular, uma vez que será de suas opiniões e de sua capacidade de escolha que dependerá a maior ou menor razoabilidade dos caminhos a serem trilhados pela coletividade.
Essa dignidade que passa a assumir cada um dos indivíduos de uma coletividade que se pretende democrática põe novas exigências de formação, especialmente para a instituição escolar, que em sua configuração atual nasce exatamente com a instauração das modernas democracias republicanas. A ideia de formação que a ela se vincula já não se resume à capacitação para determinada tarefa operativa em meio à dinâmica econômica da sociedade. Mesmo assumindo que a formação possa e, em muitos dos casos, deva habilitar para algum tipo de função instrumental, não é e não poderá ser esse o horizonte exclusivo da escola. O aspecto a ser enfatizado é esse da compreensão do mundo em sua artificialidade e historicidade, o que pressupõe uma formação crítica acerca de todos os conteúdos comunicados, sempre com vistas a evitar que esses se reifiquem e já não apareçam como construtos humanos, o que pressupõe que poderiam estar configurados de outro modo e, acima de tudo, que são passíveis de ajuste, de renovação e, inclusive, de negação sob eventuais novas condições sociais e históricas.
O que o leitor tem à disposição com este livro é um percurso reflexivo profundo, embasado em perspectivas teóricas que primam pelo lugar do sujeito no mundo humano e que consagram o espaço formativo, como o da escola, como um espaço de diálogo qualificado entre gerações. Diálogo que sempre pressupõe o reconhecimento do outro como irredutível a qualquer tipo de objetivação ou manipulação que cerceie os horizontes de possibilidade de sua vida. Coerente com a perspectiva hermenêutica que o texto assume, importa que a educação se apresente como um âmbito de leitura e de expressão de sentidos. E enquanto essa for a sua perspectiva, teremos o humano alçado em sua dignidade própria, como capaz de captar sentido e de se orientar por sentidos.
Ijuí, 21 de agosto de 2020.
Prof. Dr. José Pedro Boufleuer
Professor da Unijuí e do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências
Sumário
INTRODUÇÃO 15
CAPÍTULO 1
DA SOLIDEZ À LIQUIDEZ: DESAFIOS PARA A EDUCAÇÃO NA MODERNIDADE 25
1.1 Formação ou instrumentalização? 26
1.2 O projeto educacional da Modernidade Sólida à Modernidade Líquida ٣٠
CAPÍTULO 2
LINGUAGEM, SUBJETIVIDADE E EXPERIÊNCIA 41
2.1 A linguagem na tradição filosófica 42
2.2 A educação como prática discursiva de subjetivação 51
2.3 O empobrecimento da experiência no contexto da Modernidade Líquida ٥٥
CAPÍTULO 3
EDUCAÇÃO ESCOLAR: SUPREMACIA DO MÉTODO OU POSSIBILIDADE DA EXPERIÊNCIA? 63
3.1 O logos pedagógico como a produção de humanos em humanos 66
3.2 A escola no banco dos réus 69
3.3 As tentativas de domação da escola e do professor 72
3.4 Em defesa da escola republicana 80
CAPÍTULO 4
AS HUMANIDADES NA FORMAÇÃO DE SUJEITOS PARA A VIDA DEMOCRÁTICA 89
4.1 Educação para o desenvolvimento humano 90
4.2 O cultivo do pensamento crítico 98
4.3 A cidadania planetária 101
4.4 O cultivo da imaginação 107
CONSIDERAÇÕES FINAIS 117
REFERÊNCIAS 127
INTRODUÇÃO
Diante da crise da Modernidade, que é a crise do paradigma da racionalidade que nela se estabeleceu e, com ele, a crise do ideal universal de humanidade, corremos o risco de abandono da razão como esforço no sentido de construção de critérios de razoabilidade para a manutenção de um mundo humano comum.
Ao discorrer sobre o esforço de autocertificação, ou autofundamentação, empreendido na Modernidade, Fensterseifer (1999, p. 48), em sua tese de doutorado, destaca nesse movimento a busca de afirmação da razão
, e continua: mas se há necessidade de um esforço neste sentido é porque a razão não se afirma sem embates, o que evidencia que razão e crise são ‘velhas conhecidas’
. Ainda de acordo com o autor, a crise da Modernidade pode ser compreendida como uma crise que atinge seu cerne [...] enquanto forma da razão humana, abalando com isso os fundamentos desta em seu próprio exercício
(FENSTERSEIFER, 1999, p. 50). Nesse sentido, também Marques argumenta:
Culminou a modernidade numa exasperação da subjetividade, do individualismo, que teve início na opção do mundo ocidental pelo dualismo de sujeito e objeto que se acentuou no paradigma cartesiano da consciência fundadora das ideias claras e distintas. É esse paradigma que está em crise (MARQUES, 1993, p. 56).
Da pretensão de construir um mundo humano comum e ordenado, limpo e belo¹, pautado pelo conhecimento científico, na Modernidade Sólida², passamos à individualização exacerbada e à consequente descrença na busca de soluções coletivas, na Modernidade Líquida³. Da percepção dos limites e malefícios da racionalidade técnica⁴, especialmente a partir dos horrores sistematicamente produzidos com base nesse paradigma no século XX⁵, passamos à descrença, ao desprestígio da própria razão.
Entretanto, a pergunta como podemos ser razoáveis?
não perdeu sua atualidade e importância. Talvez, ao contrário, seja mais relevante do que nunca no contexto contemporâneo. E refletir acerca dessa pergunta aponta para a função social da educação escolar, uma vez que esta constitui o espaço-tempo por excelência destinado à formação das novas gerações. Nesse sentido, é pertinente recorrer ao que afirma Paviani (2009, p. 25): A educação efetiva-se na sociedade, em diferentes instituições, desde a família até a igreja ou o local de trabalho, mas a raiz profunda da educação formal é a que ocorre na sala de aula
.
Contudo, no Brasil, a desqualificação da escola pública é um problema histórico. O modelo em vigência não atende as demandas nem de formação como pessoa nem de produção do conhecimento. Corroboram essa afirmação os apontamentos feitos por Bongiovani, bem como por Houaiss, na obra Ensino das Humanidades: a Modernidade em Questão, publicada em 1991. Bongiovani já apontava, na época, a falta de professores em determinadas disciplinas e a desorganização das redes públicas como resultado da lei 5.692/71, criada para implantar o ensino profissionalizante, que na prática não conseguiu fazer a profissionalização competente e nem assegurou o ensino de formação geral de qualidade. Houaiss, por sua vez, destacava, com amarga ironia, a baixa carga horária destinada a determinadas áreas de conhecimento nos sistemas públicos